Artigos
“Destampou-se a panela”: O que fazemos com a missão integral?
Como bem disse Érika Izquierdo, depois das “Provocações” de Harold Segura dirigida aos Pais da Missão Integral (MI) e as reações que suscitou, não há mais volta. “Destampou-se a panela”, como se costuma dizer, e bem-vindo seja! Já era a hora! Como foi também mencionado, as palavras de Harold não representam algo novo já que muitos/as vimos falando, dialogando e compartilhando ideias similares.
Mas estamos numa conjuntura singular, um “sinal dos tempos” que faz com que a situação exija uma virada radical, já que tais questionamentos não advêm de nenhuma obsessão pela abstração mas emerge das próprias vísceras da indignação sobre o que está acontecendo com a igreja evangélica no continente.
O que nos leva a levantar estas questões? De modo claro e direto: a MI passou a ser uma bandeira do que originalmente questionou. Atualmente, esta proposta é utilizada como ponto de partida de um conjunto de discursos, práticas e militâncias que pouco tem a ver com a radicalidade de compreender a relevância da integralidade do ser humano a partir do Evangelho, de assumir os desafios do contexto, de levar a sério a defesa da vida e os direitos humanos no espaço público, entre outros. Creio, como muitos/as, que não podemos continuar fazendo ouvidos moucos nem vista cega a estes temas. Gostemos ou não, a experiência nos mostra com fartos exemplos este fenômeno.
Como já foi ressaltado, a MI se levantou em sua época como um grito de “revolução” dentro do campo evangélico, onde inclusive seus Pais chegaram a ser rotulados de comunistas, marxistas, liberais, e todo esse conjunto de rótulos que boa parte das igrejas evangélicas gostam de impingir aos que apresentam um pensamento crítico. Pois bem, o que aconteceu com tudo isso? É necessário dizê-lo sem rodeios: hoje, falar de MI já não desperta as mesmas reações. Pode ser que existam algumas igrejas que continuam utilizando estes rótulos, mas a realidade é que acontece o contrário: hoje, ser parte da MI para muitos espaços significa ser um conservador com aparência progressista ou ainda utilizar um discurso que permite articular uma dimensão política a partir de uma visão conservadora.
A pergunta do milhão continua sendo a seguinte: como a MI, que representou uma proposta crítica e radical dentro do segmento evangélico, pode ser hoje assumida comodamente pelos setores que em sua época criticou? Creio que podemos ressaltar dois aspectos. Primeiro, não podemos esquecer a história: a MI teve como objetivo inicial ser uma voz evangélica alternativa que não queria cair nos “extremos” da teologia da libertação e dos movimentos ecumênicos da época. Construir uma voz própria fora de certos setores eclesiais não tem nada demais. Mas o tipo de distanciamento que se criou diante do que se considerava como “liberal”, “marxista”, politicamente “extremo”, entre outros rótulos que em sua época a própria TMI atacou — e de alguma maneira hoje em dia continua esgrimindo —, foi uma péssima jogada. A timidez e ambiguidade de abordar certos temas de uma maneira mais “equilibrada” e “evangélica” acabaram levando a não assumir posicionamentos necessários que hoje deram lugar a serem retomados pelas forças contrárias.
O segundo elemento a considerar é que a MI manteve intactos alguns aspectos epistemológicos da teologia evangélica tradicional e conservadora a que respondia, a saber: certo método exegético e hermenêutico bíblico pouco crítico, uma metodologia que não trabalhou aberta e conscientemente — para não dizer que não reconheceu — os processos ideológicos e políticos do fazer teológico, e uma eclesiologia que devia “anexar” o compromisso sociopolítico, mas sem necessariamente transformar os aspectos mais fundamentais do ser-igreja. Por isso, concordo com Harold: a MI terminou promovendo um compromisso sociopolítico com o assistencialismo e não com uma transformação radical no sentido eclesiológico. Seria demais dizer que nenhum dos Pais da MI pregou isso. Mas a falta de um aprofundamento na radicalidade teológica e eclesiológica de suas propostas deu lugar a isso.
É por isso que diversas expressões teológicas e eclesiológicas conservadoras encontraram na MI a melhor expressão metodológica para articular suas pretensões ideológicas sem tocar uma vírgula de seus postulados teológicos. Em muitas partes eu já escutei: “Fazíamos missão integral sem saber”. Isso pode ser verdade. Mas como diz o ditado: “Tudo é nada”. Ou seja, a falta de clareza e especificidade da MI permitiu que em muitos casos se perdesse o “espírito” originário de sua proposta.
Como todo marco missiológico, a MI nunca pode pretender ser um corpo homogêneo com consequências e articulações pré-estabelecidas. Antes, é um significante flutuante, ou seja, um marco que é reapropriado segundo contextos, intenções e interesses. Neste sentido, a MI também é um significante cujos elementos são adaptados segundo contextos e conveniências. Podemos identificar diferentes tipos de apropriações. Por um lado, encontramos discursos conservadores que encontram na MI um filtro teológico para justificar sua saída para o espaço público. Portanto, serve como um impulso heroico de visibilização, mas sem mudar nem um til de seus posicionamentos teológicos ou sociopolíticos. Por outro lado, existe uma grande quantidade de igrejas e discursos que é difícil encaixar em algum parâmetro concreto. São evangélicas, mas questionam o conservadorismo. Também falam da necessidade do compromisso social, mas não adentram temas espinhosos para não ferir suscetibilidades ou não entrar em conflito com instâncias institucionais ou denominacionais mais amplas. Por último, encontramos uma minoria de pessoas e comunidades que articulam a MI a partir de diversas vozes (políticas e teológicas), reivindicando uma perspectiva mais crítica, seja com outras vozes evangélicas ou com outros imaginários sociais.
Agora, o que queremos dizer quando falamos de “paradigma teológico”? Mais ainda, acaso a MI é um marco teológico com uma metodologia própria e suficientemente desenvolvida? Por exemplo, Gustavo Gutiérrez sempre explicou que a singularidade da teologia da libertação foi exibir um novo método teológico, e não tanto um tipo de discurso específico. Creio que isto poderia se aplicar a todas as propostas teológicas que representam uma dobradiça no pensamento cristão.
Podemos dizer o mesmo da MI? Creio que não. E o vemos refletido na falta de abordagens metodológicas e epistemológicas de tal proposta. Os materiais escassos que conheço nessa linha são mais uma tentativa de dar conteúdo a certas intuições da MI utilizando outros marcos teológicos. Ou seja, não há uma proposta original própria.
Vale esclarecer que isto não parte de um vício academicista. Questionar que a MI carece de uma metodologia ou arcabouço teológico mais profundo é se dar conta desta ambiguidade que estamos apresentando. Em outras palavras, o pouco desenvolvimento de uma proposta teológica e, inclusive, sociopolítica, levou-a a ser muito oscilante.
A MI, em suma, representa — tal como mencionou Harold Segura — uma abordagem mais missiológica e pastoral, que não pretendeu avançar como uma proposta teológica abarcadora. Aqui está seu valor, como também seu tendão de Aquiles. Bom, isso dependendo do que pretendemos da MI. Em outras palavras, por acaso não estamos esperando muito desta proposta? Não é muito colocá-la no mesmo plano que um paradigma? Sim, já sei; me dirão: “Mas a TMI é um projeto que tem décadas de desenvolvimento e é reconhecida em muitos espaços”. Ao que respondo: Por acaso isso significa que a MI pode ser tratada como um paradigma teológico com todas as letras? Mais, isso demonstra que é um projeto intrinsecamente crítico? Não necessariamente.
De início, o fator tempo não implica a elaboração de um nível de profundidade necessário. E mais, me animo a dizer que se alguém lê a bibliografia em torno desta proposta nos últimos 20 anos é muito difícil encontrar alguma surpresa. Os discursos são mais ou menos homogêneos e com pouca superação uns dos outros. Somado a isto, e aplicando certa teoria da suspeita: O que nos diz que uma proposta alcance tal nível de aceitação, por universos e setores tão diversos e até antagônicos? É isso por si só um valor ou acaso demonstra tal nível de fragilidade que pode ser utilizado caprichosamente por posições localizadas em caminhos completamente opostos, e portanto, fracassar em sua intenção original?
Perdão pela dureza, mas, por acaso isso não é uma demonstração da forte inconsistência da MI como paradigma? Esta é a pergunta que me faço não apenas diante deste discurso mas a diversas vozes que se dizem “críticas”, e que ao final são muito maleáveis e até funcionais. Onde reside sua especificidade? Acaso não poderíamos dizer que uma singularidade não é também assumir um posicionamento (político) de alteridade, heterodoxia e questionamento ao hegemônico? Novamente, creio que a TMI nasceu desta maneira, mas sua ambivalência original terminou sendo funcional em muitos casos.
Outra questão: O que dizer da relação entre espaços institucionais vinculados à MI e o nível de propriedade sobre sua proposta? A título de exemplo, pensemos em uma das principais instâncias promotoras da MI, a Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL). Como membro de tal espaço, considero que a FTL representa um conjunto de vozes dentro do campo de igrejas evangélicas e protestantes, com certas características em comum: um grupo de pessoas, organizações e igrejas que realizaram uma ruptura com discursos tradicionais e práticas denominacionais do campo evangélico, mas ainda se sentem identificados com muitas de suas propostas identitárias, como por exemplo certa eclesiologia congregacional (não episcopal), uma liturgia flexível e centrada na comunidade local — traço característico das igrejas livres —, e o que é mais difícil de categorizar mas está presente nestas expressões: um modo de definir as práticas de fé a partir do que defino como uma espiritualidade de características anabatistas.
Estes elementos — que sem dúvida são discutíveis e podem ser ampliados — levam a conclusão de que na realidade o que aglutina os diversos grupos vinculados à MI não é necessariamente a fidelidade a sua proposta, mas um conjunto de elementos históricos e eclesiológicos que não refletem uma homogeneidade teológica. Em outras palavras, a MI se relaciona com diversos setores, mas estes setores não necessariamente se identificam plenamente com a MI como único marco de leitura. Tanto a FTL como outras redes e organizações sociais compartilham vários elementos identitários, mas as articulações teológicas são muito mais heterogêneas que a própria MI.
Para finalizar, então, permitam-me fazer algumas perguntas ainda mais incômodas: Por que tanto afinco para imprimir uma pertença tão aglutinadora entra a MI e diversos posicionamentos dentro do campo evangélico? A MI tem o direito de reivindicar um status de paradigma teológico — com todas as consequências que isso acarreta em termos de sua especificidade —, ou representa antes um conjunto de intuições e posicionamentos que partiram de uma marca crítica, mas que ficou em um discurso homogeneizante e até resistente a certas inovações necessárias?
Enfim, eu me reconheço filho da MI, mas ela teve uma função particular: ajudar-me a despertar. E isso não é pouco. Agora, uma vez desperto devo reconhecer que esta proposta não me deu as ferramentas necessárias para continuar avançando e responder a outras perguntas que o caminho foi suscitando. Por isso, tive que seguir o caminho junto a outros discursos, experiências e práticas. Isto significa que a MI não tem valor? De jeito nenhum. Contudo, creio que fazer desta proposta algo que ela não é, pode levar a resultados negativos, como os que vimos denunciando até agora.
Agradeçamos e nos reconheçamos herdeiros de uma proposta que teve e tem seu lugar. Mas não caiamos no erro de colocar fronteiras que não existem, e que além de tudo se apresentem intransponíveis.
* Publicado originalmente em: https://nicolaspanotto.com.ar/2016/10/31/se-destapo-la-olla-que-hacemos-con-la-mision-integral/