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Igreja evangélica brasileira, conservadorismo e participação social

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Igreja evangélica brasileira, conservadorismo e participação social

Igreja evangélica brasileira, conservadorismo e participação social

A igreja evangélica brasileira é plural e diversa. Essa diversidade se estabeleceu desde o momento que o protestantismo se implantou no país, seja por imigração ou missão, quando foram criadas juntamente com igrejas locais, apoiadas por organizações missionárias, diversos tipos de instituições de serviço e cooperação: bíblicas, educacionais, sociais, culturais.

Assim, o envolvimento da igreja com questões sociais e políticas foram variadas, mas buscavam assegurar a relevância da presença missionária, especialmente nos principais centros. Inicialmente preocuparam-se obviamente com a liberdade religiosa e a atuação educacional: a primeira, para sua própria sobrevivência e desenvolvimento; a segunda, para chegar às classes médias e às elites, mas também para possibilitar o contato dos segmentos populares com a leitura das Escrituras, valor muito caro ao protestantismo.

Ser uma religião de minoria possibilitou, até meados do século vinte, um olhar distanciado e mais de longo prazo atento aos desdobramentos sociais e democratizantes da jovem república, que também recém abandonara a escravidão, com uma ampla parcela negra, pobre e analfabeta, com baixa participação política (o voto feminino, estabelecido em 1932, só foi equiparado ao masculino em 1965). Assim, não é surpresa que na primeira fase de cooperação evangélica, através da Confederação Evangélica do Brasil, os evangélicos tenham se colocado a favor da plena liberdade religiosa, do voto secreto, da completa laicidade do estado, do acesso popular à justiça, da educação pública obrigatória, das reivindicações típicas do liberalismo político e da primeira geração de direitos humanos, os direitos civis e políticos.

Com a ampliação da organização e formação de uma consciência nacional brasileira, o pós-Segunda Guerra assistiu a emergência de uma democracia mais consolidada e denominações evangélicas com maior consciência da sua responsabilidade com a garantia e ampliação de direitos sociais, e a possibilidade de um desenvolvimento que incluísse amplas parcelas rurais e urbanas ainda à margem. Essa consciência de sua presença cada vez maior tanto entre classes médias, mas também entre setores populares (sobretudo com a presença das igrejas pentecostais), e as demandas de segmentos rurais, urbanos e estudantis organizados, leva os evangélicos para uma intensa participação social e política no desenvolvimento de uma consciência nacional.

A nova experiência nos anos 1950-60 de reflexão teológica e engajamento social e político na sociedade civil, que também impactou a Igreja Católica Romana do Concílio Vaticano II (1962-1965), criou tensões na sociedade e nas igrejas, levando a 21 anos de Ditadura Militar, com setores conservadores das igrejas sendo cúmplices, omissos e participantes ativos. Embora as iniciativas socioassistenciais e educacionais das igrejas seguissem seu curso, inclusive com a chegada de novas organizações sociais cristãs internacionais, setores progressistas foram cruelmente perseguidos, caluniados, indo muitos deles para o exílio ou a clandestinidade.

Com o fim do período ditatorial nos anos 1980, a resistência ao autoritarismo deu lugar a um reflorescimento da democracia, com crescentes setores das igrejas ocupando espaços e descobrindo formas novas de atuação social. No Brasil, como também na América Latina, a Teologia da Libertação (nascida simultaneamente em espaços ecumênicos e católicos) e a Teologia da Missão Integral (oriunda da reflexão da Fraternidade Teológica Latino-americana e do movimento missionário estudantil latino-americano) deram impulso a um engajamento renovado, a partir de múltiplas expressões como congressos, publicações, iniciativas e abordagens teórico-metodológicas na perspectiva assistencial, mas também na de incidência pública, através de participação em conselhos e conferências de políticas, nos movimentos sociais e em projetos de ONGs que ofereciam oportunidades de promoção da cidadania e direitos humanos.

Na virada dos anos 2000, enquanto a participação social evangélica continuava a crescer na própria esteira do seu aumento numérico, e na medida em que políticas públicas foram se ampliando também para incluir minorias e promover direitos de 4ª geração, o envolvimento dos evangélicos pentecostais, hegemônicos numericamente no protestantismo brasileiro, alterou o cenário. Se é verdade que os evangélicos estão presentes nas periferias e rincões do Brasil sendo uma real alternativa para pessoas marginalizadas e empobrecidas que encontram nas igrejas apoio material, emocional e simbólico para sua sobrevivência, desenvolvimento social e autonomia cidadã, também não se pode deixar de notar que a influência do neo-pentecostalismo, com suas expressões adaptativas ao neoliberalismo por meio da Teologia da Prosperidade, juntamente a sua inclinação a adotar uma espiritualidade bélica e a rejeitar qualquer revisionismo moral, alijou a narrativa evangélica da participação sociopolítica de inclusão social e promoção de direitos.

Ao mesmo tempo em que o período de redemocratização ensejou o fortalecimento do estado de bem-estar social preconizado pela Constituição de 1988, ampliou a participação de segmentos excluídos e minoritários secularmente esquecidos pelo Estado brasileiro. No entanto, os equívocos atávicos do patrimonialismo e da corrupção do sistema político-partidário e das elites econômicas, permaneceram mesmo com a esquerda no poder, levando uma parcela expressiva da sociedade brasileira a dar lugar a um projeto que desconfia das instituições e revisa conquistas sociais importantes e mundialmente reconhecidas.

A atual onda conservadora que bate no Brasil, com expressiva e ativa participação dos evangélicos e suas lideranças políticas e religiosas, representa o alinhamento de políticos de extrema-direita e representantes da elite econômica liberal com as pautas morais, especialmente as relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos. Ao declarar-se “a favor da família”, nos termos evangélicos — contra o aborto, os direitos das pessoas LGBTI, contra a legalização da maconha, a favor do armamento e do punitivismo penal —, o bolsonarismo oferece aos evangélicos uma ancoragem segura na moralidade cristã hegemônica e legitima a pretensão das elites evangélicas de consolidar o projeto de substituir o catolicismo como religião civil da nação brasileira. Como já disse em outro lugar, a pretensão de hegemonia religiosa e cultural faz com que se encontrem o “poder político”, habilmente aquilatado em 30 anos de presença na política partidária, com o “poder religioso”, que cresce a olhos vistos, e que se ressente da desconstrução de seu “poder moral”.

A expectativa equivocada dos evangélicos conservadores de emular suas contrapartes estadunidenses da Moral Majority e querer impor ao país o que eles entendem como “valores cristãos”, recusando a diversos segmentos sociais subalternizados o reconhecimento de seus modos de vida e sua sobrevivência perante o Estado, não deixa aos evangélicos moderados e progressistas outra alternativa nesse momento a não ser defender o resgate da perspectiva evangélica de uma fé pública e socialmente engajada e promotora da vida e da dignidade humana para todas as pessoas.

Antropólogo, com pós-doutorado pela Universidade de Montreal (Quebec), ativista de direitos humanos e editor da Novos Diálogos. Idealizador do Festival Reimaginar. Organizou com Clemir Fernandes a coletânea "Reimaginar a Igreja no Brasil: 40 Vozes Evangélicas". Foi secretário executivo da Aliança de Batistas do Brasil e atualmente trabalha com consultoria a organizações baseadas na fé em temas de direitos humanos, coordenando diferentes iniciativas através da Plataforma Intersecções.

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