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Josh Hawley, Betsy DeVos e Abraham Kuyper: Um acerto de contas

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Josh Hawley, Betsy DeVos e Abraham Kuyper: Um acerto de contas

Josh Hawley, Betsy DeVos e Abraham Kuyper: Um acerto de contas

Por Janel Kragt Bakker*

No inverno de 1998, me juntei a um grupo de graduandos em Humanidades da Universidade Dordt, uma instituição acadêmica de tradição cristã reformada no noroeste do estado de Iowa. Num mesmo carro, dirigimos sem parar por vinte horas direto até Princeton, New Jersey, para comemorar os 100 anos das “Palestras sobre o Calvinismo” (1) de Abraham Kuyper, feitas no Seminário Teológico Princeton em 1898. Kuyper foi pastor, teólogo, jornalista e político holandês que atuou como Primeiro Ministro da Holanda entre 1901 e 1905. Uma das coisas que mais me lembro da conferência foi uma petição que circulou entre os presentes para reconhecer e repudiar a retórica racista de Abraham Kuyper, empregada por muitos de seus discípulos na construção do Apartheid. Para a minha surpresa naquela ocasião, meus professores da Universidade Dordt se recusaram a assinar a declaração, argumentando que Kuyper deveria ser apreciado como homem de seu próprio tempo e que não era razoável aplicar sensibilidades contemporâneas a uma figura de outro contexto. E não foram só meus professores. Vários estudiosos proeminentes de Kuyper, muitos representando a ala evangélica da tradição reformada na América do Norte, atestaram que, embora algumas das noções de Kuyper sobre raça e gênero sejam lamentáveis, Kuyper deveria ser celebrado por seus “insights mais profundos”, tendo delineado uma filosofia política e um projeto de sociedade distintamente cristãos.

Na Universidade Dordt, nossos professores neokuyperianos nos educaram sobre o valor de uma “cosmovisão reformada”, na qual não há separação entre o sagrado e o secular, ou entre natureza e graça, na qual cada domínio da vida deve ser trazido sob o “senhorio” de Jesus. Uma frase famosa do discurso de Kuyper na inauguração da Universidade Vrije de Amsterdã em 1880, fundada por ele como expressão de sua filosofia, era frequentemente citada em Dordt: “Não há um único centímetro quadrado em todo o domínio da existência humana sobre o qual Cristo, que é Senhor sobre tudo e todos, não reivindique: ‘é meu!’”. Nossos professores alegaram que Kuyper forneceu um roteiro para cristãos viverem em um contexto pluralista. Os cristãos deveriam construir instituições e sistemas distintamente cristãos para promover o “reino de Deus”, ao mesmo tempo em que deveriam trabalhar em prol do bem comum.

Depois de me graduar, mudei-me para Washington D.C. pronto para transformar o mundo como uma embaixadora desse reino de Deus. Comecei a trabalhar para o Wilberforce Forum, o think tank da Prison Fellowship de Charles Colson. Ao perceber que Colson e sua turma viam “a cosmovisão cristã” como uma arma a ser usada na guerra cultural, ao mesmo tempo que comecei a conhecer em outros contextos perspectivas de engajamento cristão na sociedade orientadas para a libertação, deixei rapidamente o cargo.

Embora meus laços com a tradição reformada tenham diminuído, nomes como “Abraham Kuyper” ainda me chamam a atenção quando os vejo no The New York Times e no The Atlantic. Repórteres dessas e outras publicações notaram o quanto republicanos com cargos na era Trump como a ex-Secretária da Educação Betsy DeVos e o senador Josh Hawley abraçaram Kuyper a serviço de sua agenda política. Em discurso feito em 2017 para o American Renewal Project, Josh Hawley, na época Procurador-Geral do estado do Missouri, invocou a citação do “centímetro quadrado” para enfatizar a autoridade de Jesus sobre todos os aspectos da vida humana. “Fomos chamados a levar essa mensagem para cada esfera da vida que tocamos, incluindo a política”, disse Hawley. “O nosso dever é levar o Senhorio de Cristo, essa mensagem, para a esfera pública. E buscar a obediência das nações. De nossa nação!”. Numa interpretação bizarra de Pelágio (o bispo do século IV que negava a doutrina do pecado original e foi condenado como herege), Hawley disse que a sociedade estadunidense contemporânea sucumbiu à heresia pelagiana na crença geral de que “liberdade é o direito de escolher o seu próprio sentido” e que liberdade significa emancipar-se “não apenas de Deus, mas da sociedade, da família e da tradição”. A filosofia pelagiana, segundo Hawley, tornou a sociedade estadunidense mais hierárquica e elitista. E a solução dele é “reconstruir” uma cultura que proteja o estilo de vida da classe média estadunidense. “Devemos reconstruir uma democracia que não é dirigida pelas elites, mas pelo grande americano médio, uma democracia que permita ao trabalhador e trabalhadora colocarem em prática sua capacidade de autogoverno dada por Deus e ajudarem a gerir a vida de sua nação”.

Dadas as ações de Hawley como senador, desde seu intenso apoio às falsidades do presidente Trump, sua ânsia por privar milhões de eleitores negros de seu direito ao voto, ao desafiar a certificação do Colégio Eleitoral do resultado das eleições presidenciais de 2020, sua expressão de solidariedade aos insurrecionistas que invadiram o Capitólio, à sua recusa de retirar as objeções à certificação eleitoral após o ataque, parece claro que o “populismo” de Hawley se limita aos nacionalistas brancos de direita. Ao escrever para o The New York Times, Katherine Stewart chama a perspectiva de Hawley de “neomedieval”, expressando a ideia de “uma elite com uma mentalidade direitista de indivíduos religiosamente puros que teriam como objetivo resgatar a sociedade da obscuridade eterna e remodelar essa sociedade de acordo com sua visão do que é divina e moralmente aceitável”.

Em um discurso feito em 2020 para a faculdade Hillsdale, a secretária DeVos invocou a defesa de Kuyper ao financiamento de escolas religiosas e sua insistência de que a autoridade sobre a educação pertence às famílias e não ao Estado. DeVos declarou que a educação “poderá ser restaurada” se as autoridades “se tornarem holandesas” ao reconhecerem a família como o “fundamento para todas as outras instituições” e instituírem um sistema de voucher para uma possível “escolha da educação” (2). Enquanto as escolas paroquiais financiadas pelo Estado na Holanda possuem políticas compulsórias e estritas de não discriminação em contratações e admissões, DeVos usou seu tempo como Secretária da Educação se esforçando para reverter as proteções a funcionários e alunos LGBTQ, para enfraquecer o Título IX (3) e sucatear ao máximo as escolas públicas mais vulneráveis, que atendem principalmente populações negras e pardas. Embora DeVos tenha renunciado a sua posição no governo Trump na semana passada [7 de Janeiro] por causa do papel de Trump em incitar os grupos violentos no ataque ao Capitólio, passou quatro anos alimentando a aliança entre Trump e a Direita Religiosa, reproduzindo os jargões e códigos racistas de Trump e se esforçando em proteger os aparentes interesses dos cristãos brancos acima de outros grupos. Ao renunciar na semana passada, ela preferiu se declarar inapta a responsabilizar Trump como membro do seu governo.

Os admiradores mais moderados de Abraham Kuyper podem logo se opor a ideia dele ser jogado na mesma categoria do nacionalismo cristão branco e da guerra cultural de gente como Charles Colson, Betsy DeVos e Josh Hawley. Eles podem apontar para como a visão política de Kuyper era pluralista, com os cristãos protestantes constituindo um eleitorado político dentre outros ou podem insistir que pensadores como Kuyper não podem ser responsabilizados pelo modo como suas ideias são mal utilizadas por outras pessoas e grupos.

Embora eu concorde com esses argumentos, também afirmo que nós, que herdamos os legados do cristianismo branco, somos chamados a reconhecer e procurar reparar o dano que foi cometido em nome de nossas tradições. A noção de Kuyper do senhorio de Jesus, articulada na famosa citação do “centímetro quadrado”, tem problemas que vão além de ser usada para dar validação religiosa a uma ampla gama de intenções e realizações questionáveis ou de dar a entender que os cristãos são os árbitros do reino de Deus. A própria noção de que Jesus é proprietário de todas as coisas tem conotações imperialistas, refletindo o triunfalismo cristão protestante europeu e branco de Kuyper, da era vitoriana. Ao mesmo tempo em que Kuyper celebrava a “pluriformidade” cultural, ele afirmava que fora da Europa e da América do Norte, a maioria das culturas não tinha beneficiado a humanidade como um todo e considerava a vida das “raças” africanas a forma mais inferior de existência humana, com o ponto mais baixo da humanidade marcada pela pele escura. Na chamada “política ética”, que introduziu em 1901 nas Índias Orientais da Holanda, Kuyper descreveu a responsabilidade dos holandeses para com os povos nativos como “tutela”, uma vez que tinham o dever de empregar sua superioridade a serviço de Deus. O paternalismo de Kuyper se estendia também às mulheres: ele defendia uma ideia de franquia patriarcal na Holanda, na qual o poder de voto seria apenas dos pais das famílias, que representariam os votos de suas respectivas unidades familiares.

No início da carreira de Kuyper como pastor na Igreja Reformada Holandesa, ele liderou um movimento separatista com base em seu desejo de preservar a pureza doutrinária, exigindo que todos os membros da igreja e do clero subscrevessem as Confissões Reformadas. Sua igreja cismática era conhecida como Doleantie, ou “aqueles que sentem tristeza”. Sua identidade era baseada nos ressentimentos que tinham acerca da Igreja Estatal. Kuyper também era conhecido por sua afinidade com de kleine luyden, ou “gente pequena”, um grupo de fazendeiros cristãos reformados ortodoxos de classe média. Embora os advertisse contra a agitação e os encorajasse a se contentar com sua recompensa celestial, ele se esforçou para proteger seus interesses políticos.

Mesmo quando levado em conta em seus próprios termos, há muito do legado de Kuyper a ser repudiado. E embora seja injusto rotular Kuyper de nacionalista cristão branco, é fácil ver como suas ideias podem ser usadas a serviço do nacionalismo cristão branco, com seu ethos de ressentimento, sua “neutralidade” como um disfarce para seu racismo, seu paternalismo, seu patriarcado e seu “populismo” favorecendo os interesses da classe trabalhadora branca.

No condado de Sioux, o canto noroeste do Estado de Iowa, onde está localizada a Universidade Dordt, os cristãos reformados de ascendência holandesa são a maioria. Quando era estudante universitária na década de 1990, eu experimentei os valores kuyperianos incrustados na comunidade, com sua rede de escolas e organizações sociais cristãs e sua centralidade nas instituições da igreja local e da família nuclear, tidas como amplamente positivas ou no máximo provincianas. Mas do ponto de vista de 2020, à luz do apoio quase total do condado de Sioux a Donald Trump, bem como minha própria exposição aos relatos de residentes não brancos e não reformados do condado de Sioux sobre suas experiências de trauma e marginalização, eu vejo o quadro de forma muito diferente. Para muitos nesta comunidade, a “cosmovisão reformada” parece se encaixar perfeitamente nas políticas identitárias brancas.

Na minha perspectiva atual, equidade e pluralismo político não são possíveis quando o poder não é compartilhado por minorias e quando os sistemas sociais de opressão não são desmontados. O basileia tou Theo a que Jesus se referia com tanta frequência nas narrativas do evangelho é melhor representada pela visão de Martin Luther King, Jr. e de outros libertacionistas da “comunidade amada” do que pela visão de Kuyper do “reino de Deus”. Jesus nunca descreveu o basileia tou Theo como um império que seus seguidores deveriam construir, mas sim como o reino da justiça, do amor e da paz de Deus, onde os primeiros são os últimos e os últimos são os primeiros. Um reino em que seus seguidores foram convidados a receber como uma dádiva e a acolher com a postura de crianças.

Um dos professores neokuyperianos que levou o nosso grupo da Universidade Dordt para a conferência em comemoração às palestras de Kuyper em Princeton era conhecido por sua convicção de que “ideias têm pernas”. Aqueles de nós com raízes em tradições religiosas específicas têm a responsabilidade de reconhecer e procurar reparar o mal causado por nossos heróis, assim como o mal cometido em seus nomes. Um espírito de humildade é essencial nesse acerto de contas, pois reconhecemos que também nossas ações, que nos parecem bem-intencionadas ou mesmo virtuosas, podem ser julgadas com severidade por gente de fora das nossas tradições ou pelas gerações futuras. Mas a inevitabilidade das nossas próprias deficiências não é uma desculpa para nos recusarmos a dizer a verdade ou deixarmos de responsabilizar aqueles que abusaram do poder, incluindo nós mesmos. Felizmente, nossas tradições também contêm uma riqueza de recursos para o trabalho de lamento, arrependimento, solidariedade e reparação.

Notas

(1) N. do T.: As Lectures on Calvinism foram traduzidas pela Editora Cultura Cristã, em 2002, num volume chamado Calvinismo.

(2) N. do T.: O conceito de sistemas de educação por voucher se relaciona à ideia kuyperiana de pilarização da sociedade e ao financiamento público de escolas confessionais e particulares que podem ser escolhidas como opções por famílias de diferentes confessionalidades e orientações.

(3) N. do T.: O Título IX das Emendas de Educação de 1972, é uma lei de Direitos Civis do Departamento de Educação dos EUA que protege as pessoas da discriminação com base no sexo em programas ou atividades educacionais que recebem assistência financeira federal.

Janel é Professora Associada de Missão, Evangelismo e Cultura no Seminário Teológico de Memphis e autora de ‘Sister Churches: American Congregations and Their Partners Abroad’. Seu trabalho atual vai no sentido de responder à guerra cultural nos EUA com uma missiologia de reparação, baseada na imagem de Jesus da basileia tou Theou (reino da justiça, amor e paz de Deus).

Tradução: Rafael Faria | Revisão: Flávio Conrado

Fonte: https://www.patheos.com/blogs/anxiousbench/2021/01/josh-hawley-betsy-devos-and-abraham-kuyper-a-reckoning/

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