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Que Bíblia leem os que apoiam o apartheid de Israel?

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Que Bíblia leem os que apoiam o apartheid de Israel?

Que Bíblia leem os que apoiam o apartheid de Israel?

Resistência palestina e solidariedade profunda

A primeira vez que tive a oportunidade de conhecer o Sabeel [Ecumenical Liberation Theology Center -Centro Ecumênico de Teologia da Libertação], foi em uma atividade da campanha de desarmamento Arms Down!, da Rede Global de Juventude de Religiões pela Paz, para a qual tinha atuado como consultor e parte da equipe executiva da rede latino-americana (1), rede que reunia as principais organizações de jovens religiosos (cristãos católicos, protestantes, ortodoxos, judeus, muçulmanos, budistas, sikhs, bah’aís etc.) do mundo. Lá em Nova Iorque, em atividade paralela à Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares 2010, em que encontraríamos o Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, para entregar as cerca de 20 milhões de assinaturas (2) que coletamos ao redor do mundo para incidir sobre a Conferência, conheci Omar Harami, jovem palestino da Igreja Ortodoxa que já desenvolvia um trabalho importante com jovens palestinos e israelenses, cristãos, judeus e muçulmanos, pela reconciliação e pela paz justa na região.

Logo depois procurei conhecer melhor, ler a respeito sobre a situação na Palestina e buscar entender por que Omar expressava com tanta veemência a necessidade de enxergar para além do que me havia sido ensinado sobre o tema e via através dos olhares dos meios de comunicação. Aliás, mesmo tendo sido exposto à possibilidade de explorar melhor o tema através do encontro com amigos e amigas de outras tradições religiosas, especialmente judeus e muçulmanos latino-americanos, entre os quais fui construindo boas amizades, a questão palestina sempre foi um tópico de conversa meio interditado, provavelmente devido ao seu potencial tensionamento à proposta de cooperação inter-religiosa.

Tive finalmente a oportunidade de conhecer pessoalmente a realidade da qual compartilhava Omar, em março deste ano, quando participei do Congresso internacional do Sabeel, entitulado Jesus Cristo Libertador, antes e agora, e da reunião do Conselho Diretor de Christian Peacemaker Teams (CPT-ECAP), como membro at-large.

Após ter passado cerca de 10 dias na Palestina, só posso concordar com as palavras do arcebispo Justin Welby, líder máximo da Comunhão Anglicana, que acaba de voltar de sua visita oficial àquela terra ocupada: “Você não pode vir e ouvir os testemunhos que ouvi, você não pode ouvir das pessoas que vivem aqui, sem que seu coração se torne mais e mais pesado, e mais e mais incomodado, com aquele sentimento do povo cuja história os tem levado a um lugar onde tudo que eles conhecem está desintegrando”.

Por que os palestinos resistem?

“Existir é resistir” é um slogan palestino que evoca perseverança na adversidade, e um senso de dignidade e identidade impossível de se eliminar. Através de quase sete décadas de desterramento e perda de seus meios de vida, os palestinos têm se mantido comprometidos com sua sobrevivência comunitária. Como diz o crítico literário americano-palestino Edward Said, é o poder da resistência palestina, de seres humanos como nós, postos em uma situação de sofrimento e desespero, a despeito de todos os seus fracassos e todos os seus erros, que se recusam a capitular ou a se render, que tem sido responsável para que a comunidade internacional coloque sobre a mesa renovadas propostas de paz cujo objetivo não é, no fim das contas, trazer paz (3).

Nessa semana, é rememorada pelos Palestinos na Palestina e em todo o mundo a Al-Nakba (15 de maio), termo árabe para “a catástrofe”, que se refere à expulsão e deslocamento de cerca de 700.000 a 800.000 palestinos e 530 vilas e cidades destruídas quando foi estabelecido o Estado de Israel em 78% da Palestina pré-1948. A maioria dos palestinos deslocados se tornou parte da comunidade na diáspora por todo o mundo árabe, sejam como refugiados ou residentes. Em dezembro de 1948, as Nações Unidas aprovaram a Resolução 194, estipulando o retorno dos refugiados a suas casas e terras, além de compensação por suas propriedades destruídas. Israel ignora esta resolução, assim como todas as outras resoluções internacionais que questionam seu projeto colonial.

Há 69 anos, Israel tem ocupado a Palestina e se recusa a buscar o caminho da paz justa, onde a dignidade de todos e todas na região seja reconhecida. Seguindo o caminho do colonialismo e da negação da realidade palestina, o projeto sionista, apoiado também por evangélicos fundamentalistas estadunidenses e de outras partes do mundo como o Brasil, tem aprofundado um modelo de ocupação colonial hipermilitarizado, que se tornou uma indústria lucrativa de 2.5 trilhões de dólares. Pesquisadores e ativistas como Jeff Halper têm denunciado o que já tem sido chamado de apartheid israelense como parte de uma estratégia não apenas militar mas política e econômica, que dá alta vantagem competitiva a Israel e seus clientes ao redor do mundo, aos quais provê sistemas de controle de alta tecnologia testados na ocupação palestina para conter contrainsurgências internas e conflitos de baixa intensidade, no que ele chama de “securitização global” e “neoliberalismo militarizado”.

Essa matrix de controle que submete populações à “pacificação” é vantajosa política e economicamente a Israel como um nicho, levando Halper a afirmar que o apartheid que Israel impõe na Palestina se transformou num recurso e não num peso. “Esse controle populacional é o que fazemos há 70 anos. Somos um laboratório, controlamos palestinos e isso é o que nos diferencia no mercado: milhões de palestinos indo para os checkpoints diariamente”, analisa.

Isso também explicaria, segundo Halper, o apoio que Israel goza da comunidade internacional, seja ele explícito como no caso dos Estados Unidos, ou implícito como no caso do Brasil: “Israel está em todos os países, não apenas diretamente no sentido militar, mas em termos de treinamento, exportação de armas, unidades de operação especial, segurança presidencial. Está mais dentro das sociedades do que os Estados Unidos, exatamente porque eles ficam nos termos militares e nós vamos para a segurança, a polícia, as prisões”, explica. E acrescenta: “Dessa forma, Israel escapa do fato de fazer uma ocupação há 50 anos, de estar realizando crimes de guerras, dezenas de violações da lei internacional da ONU. Mesmo com tudo isso o status internacional de Israel é positivo. A única explicação para isso é a política de segurança de Israel, um país minúsculo que transforma segurança militar e policial em poder político”. Seria exatamente esse papel internacional que livraria o país de condenações com consequências reais como sanções, entre outras.

No caso do Brasil, “tanto o treinamento quanto a renovação bélica da Polícia Militar e do Exército brasileiro para os megaeventos esportivos entre 2014 e 2016 foram importados das Forças Armadas israelenses”. Segundo especialistas no tema, o Brasil é um dos maiores clientes da indústria de armamentos de Israel. Conforme a Folha de S. Paulo em janeiro deste ano, o Exército Brasileiro fechou acordo de milhões com a empresa israelense Elbit para compra de armamentos nos próximos anos, empresa que é acusada de ter construído drones que mataram 164 crianças palestinas em Gaza, durante a ofensiva de 2014 (ONG Defense for Children International Palestine-DCI).

Que Bíblia leem os que apoiam o apartheid em Israel?

Tudo isso não seria possível se não fosse acompanhada de uma teologia da violência que precisa também ser desafiada. Pedro Grabois, em artigo chamado “Unidade Eclesiástica Pacificadora”, argumenta que a “se a igreja quer promover a paz, se quer ser de fato ‘pacificadora’, precisa abandonar sua aliança com a ‘paz armada’ vendida pelo Estado e pelas empresas privadas de segurança”.

Como cristão protestante, a experiência de ter estado na Palestina e vivenciado uma pequena parte do apartheid imposto pelo governo israelense aos palestinos tem o poder de suscitar muitas perguntas e questionar o modo como temos escolhido negar a realidade em prol de uma certa maneira de ler e interpretar as Escrituras. E talvez façamos essa escolha porque a realidade realmente interpela nosso modo de ler e interpretar as Escrituras. Não tenho dúvida disso. A espiritualidade cristã, infelizmente, tem se apoiado ao longo da história em uma leitura que é cúmplice de injustiças e violências como a Escravidão, o Colonialismo, o Holocausto ou o Apartheid, denunciando que algo está muito errado com nossas concepções sobre Deus e Jesus. Essa leitura, que é a base da nossa espiritualidade mas também do nosso fazer missionário, denuncia de que lado temos escolhido estar ao longo da história, e de como necessitamos de uma conversão profunda.

O arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu, tendo experimentado o horror do Apartheid em seu país, foi categórico ao dizer que na Bíblia não há apartheid. “Então que Bíblia leem os brancos? A que Deus dirigem as suas preces?”, se pergunta constrangido. Essa pergunta também deve ser feita a todos os que têm escolhido uma leitura sionista da Bíblia. O Deus bíblico não é sionista, exclusivista ou nacionalista, mas inclusivo, como o demonstra o teólogo palestino Naim Ateek. Numa leitura do livro de Jonas (4), ele nos recorda que “Deus não mostra parcialidade para com qualquer cultura, nação, raça ou grupo étnico. O amor de Deus abarca toda a humanidade, não apenas o povo de Jonas. Deus ouve a todo que se volta para ele em oração sincera. (…) A história de Jonas é uma descrição de Deus que critica toda compreensão nacionalista e estreita”.

O pastor luterano e pesquisador Roberth Smith, que pesquisa há 20 anos o Sionismo Cristão, é claro ao dizer que estamos diante de uma visão extremista das Escrituras, e que sendo uma teologia imperialista, serve a “interesses de mestres militares e corporativos fornecendo legitimação religiosa para a violência de Estado”. O resultado do que ele chama de “um imaginário literariamente construído de interpretação bíblica anglo-americana” é a “criação de sistemas teopolíticos que buscam implementar ideologias baseadas, primeiro e principalmente, no triunfalismo etnorreligioso, a saber, a hegemonia global dos Brancos Anglo-Saxões e Protestantes”.

Solidariedade profunda

Só os que clamam ao lado dos palestinos têm direito a cantar hinos e cânticos de louvor a Deus.

Talvez esta frase possa te chocar. Mas ela foi dita numa versão um pouco diferente por Dietrich Bonhoeffer, depois da Noite de Cristal, em 9 de novembro de 1938, quando forças paramilitares e civis alemães queimaram mais de 250 sinagogas, destruíram cerca de 7.000 estabelecimentos comerciais judaicos, saquearam hospitais, escolas, cemitérios e residências judias, mataram dezenas de judeus e prenderam 30.000 homens judeus alemães, enviando-os para campos de concentração (5).

“Só os que gritam ao lado dos judeus têm direito a entoar cantos gregorianos”, foi a frase magistral cunhada por Bonhoeffer, que se destacou posteriormente na resistência ao nazismo, tendo sido preso e executado em 1945, logo antes da rendição dos alemães.

Martin Luther King Jr., em um sermão que fez 50 anos em abril, “Além do Vietnã”, ao assumir abertamente uma posição antimilitarista, clamou que era necessária uma verdadeira “revolução de valores” para superar os gigantes do racismo, do materialismo extremo e do militarismo, uma revolução que nos levasse além de nossas fidelidades sectárias. Nas suas palavras: “Esse chamado a um companheirismo universal que eleva o respeito fraterno acima de tribos, raças, classes e nações é, na realidade, um chamado a sentir pela humanidade um amor totalmente abrangente e incondicional”.

Seu clamor ainda ecoa hoje, e faz coro às vozes de Bonhoeffer, de Desmond Tutu, de Naim Ateek, e de milhões de palestinos e palestinas que estão resistindo à ocupação israelense, com a cumplicidade internacional e a legitimação do Sionismo Cristão. O convite à solidariedade profunda (ou a esse companheirismo universal), conforme defende o teólogo metodista Joerg Rieger, é reconhecer que nada mudará se agirmos isoladamente, de que os problemas estão interconectados e estamos juntos no mesmo barco. No final das contas, a realidade de apartheid e opressão que vivem nossos irmãos palestinos e palestinas não está desconectada da realidade de militarização e exclusão dos que vivem em nossas favelas e periferias nas grandes cidades brasileiras. Ao nos solidarizarmos com a realidade palestina, e eles com a nossa, estaremos construindo uma compreensão mais clara e profunda das formas de opressão que estão sendo construídas e gestadas em nosso tempo.

Como experimentar concretamente essa solidariedade profunda? Que ações concretas podem ser desenvolvidas? Em primeiro lugar, ela precisa encontrar eco nas nossas orações e leituras comunitárias: 1) Ore e busque dialogar com os cristãos e cristãs da Palestina. 2) Leia o documento Kairós Palestina, um clamor dos cristãos palestinos para que a igreja global compreenda e se envolva com sua realidade; 3) Participe mais ativamente, e envolva sua comunidade de fé, em momentos chaves de conscientização global sobre o apartheid na Palestina através da Semana Mundial pela Paz na Palestina e Israel, que acontecerá de 17 a 24 de Setembro.

Mas também se envolva em esforços sociais e políticos para que a Palestina seja ouvida e desfrute da paz justa: 1) O movimento global de luta contra o apartheid israelense na Palestina se expressa de forma mais contundente hoje na Campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções – BDS. Informe-se e participe, mobilize as pessoas e sua comunidade; 2) Outra forma de engajamento sociopolítico importante é visitar a Palestina e ter contato direto com a realidade da ocupação. Existem algumas organizações que trabalham diretamente com o acompanhamento da luta palestina e oferecem espaços de envolvimento de curto prazo e médio prazo, como o EAPPI-PEAPI, o Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e Israel, e o já citado Christian Peacemaker Teams-Equipes Cristãs de Ação pela Paz (CPT-ECAP), ao qual tenho tido a oportunidade de contribuir mais direta e concretamente nesse último ano.

Notas

(1) Pelo meu envolvimento na Campanha de Desarmamento no Brasil, em 2014 e 2015, após a sanção do Estatuto do Desarmamento, na equipe do Viva Rio, trabalhando na mobilização de redes religiosas, e pelo meu vínculo histórico com a Aliança Bíblica Universitária do Brasil e a Rede FALE, fui convidado para representar o segmento evangélico na Assembleia de criação da Rede de Juventude Inter-Religiosa Latino-americana e Caribenha de Religiões pela Paz em 2005/2006. O convite oficial tinha sido dirigido à Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos- América Latina e Caribe (IFES-América Latina). A IFES-América Latina, por questões estatutárias, não assume espaços de representação em nome dos movimentos nacionais afiliados, tendo repassado o convite para a Aliança Bíblica Universitária do Brasil, dado o seu envolvimento, através da Rede FALE, na Campanha do Desarmamento.

(2) A petição da campanha tinha três objetivos: a) Abolir as armas nucleares; b) Deter a proliferação e o uso das armas convencionais; 3) Reduzir os gastos militares em 10% para tornar possível a realização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas (ODMs) no ano 2015. Ver: http://www.rfp.org/node/9

(3) Ver: https://www.lrb.co.uk/v25/n12/edward-said/a-road-map-to-where

(4) Ver: http://novosdialogos.com/jonas-o-primeiro-teologo-da-libertacao-palestino/

(5) Cf. verbete da Enciclopédia do Holocausto, do Museu Estadunidense Memorial do Holocausto: https://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007697

Antropólogo, com pós-doutorado pela Universidade de Montreal (Quebec), ativista de direitos humanos e editor da Novos Diálogos. Idealizador do Festival Reimaginar. Organizou com Clemir Fernandes a coletânea "Reimaginar a Igreja no Brasil: 40 Vozes Evangélicas". Foi secretário executivo da Aliança de Batistas do Brasil e atualmente trabalha com consultoria a organizações baseadas na fé em temas de direitos humanos, coordenando diferentes iniciativas através da Plataforma Intersecções.

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