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O racismo na história batista brasileira

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O racismo na história batista brasileira

O racismo na história batista brasileira

[Por Juçara da Silva Barbosa de Mello*]

O racismo na história batista brasileira: uma memória inconveniente do legado missionário é uma obra impossível de ser lida com indiferença.  O inconveniente anunciado é de fato apresentado. E o é de uma forma que irei chamar de consciente e equilibrada. João Chaves é um autor, cujo lugar de enunciação marca a excepcionalidade de sua análise. Seu lugar de fala –  como diria Michel de Certeau –  o autoriza a lidar com o tema num profícuo exercício de permanente circulação entre os saberes da teologia e das ciências humanas (história, antropologia, sociologia etc.).

Essa circulação cuidadosa e consciente torna esta obra um primor. Sua leitura é de absoluta necessidade para todos aqueles que em alguma medida são levados a concordar que  “quem se diz muito perfeito, na certa encontrou um jeito insosso pra não ser de carne e osso”. Essa irônica mensagem presente na canção da cantora  Zélia Duncan, me fez refletir sobre o fundamento maior do cristianismo, a sua própria razão de ser. Como é sabido, na teologia cristã, o único ser perfeito foi Jesus Cristo, e que assim permaneceu em se fazendo de carne (e o Verbo se faz carne…) e osso.

No entanto, como bem nos aponta João Chaves nas páginas deste livro, a história e a memória acerca dos missionários batistas até agora existentes, apresentam homens “de carne e osso” louvados e idolatrados por suas trajetórias absolutamente isentas de mácula, ou seja, imaculadas, heroicas, perfeitas. É certo – como bem adverte o autor – que não se deva desmerecer o árduo trabalho que representou ter levado o evangelho a tantos e tantas e por terras tão longínquas, mas também é certo que as motivações, circunstâncias, interesses, meios, nem sempre foram pautados por esforços no cumprimento do mandamento maior: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.

Digo esforços porque creio que o cumprimento pleno deste mandamento requer uma natureza divina, a qual o cristão consegue, no máximo, imitar. “Sede, pois, meus imitadores”, o grande Mestre Jesus, esse sim, em sua perfeição, sabia muito bem disso.  Outra ironia é que Cristo, que ao fim e ao cabo é quem justifica todo o vasto e reconhecido empreendimento da Convenção Batista do Sul, da Convenção Batista Brasileira e de tantas outros indivíduos, grupos e instituições que há séculos vêm indo “por todo o mundo e pregando o evangelho a toda a criatura”, em Sua condição humana jamais ocupou lugares de supremacia, que pudessem sugerir a subjugação de seu semelhante, fosse ele um moribundo, um estrangeiro, um criminoso, uma mulher etc. Contrariamente, esteve sempre ao lado dos marginalizados, segregados, subjugados. “Sede, pois, meus imitadores”. Há que ter algum sentido nisso, não!?

Enfim, o que desejo destacar é que a leitura deste livro corrobora o que a historiografia há algum tempo já afirmou: é preciso desconfiar de narrativas do passado que exaltem apenas os grandes feitos, as atitudes heroicas de determinados indivíduos. Essas histórias podem trazer fatos verdadeiros, mas certamente escondem, distorcem e manipulam contextos sociais e culturais, e fazem parte de projetos de poder que visam sempre a estruturação e manutenção da hegemonia de discursos ideológicos. Eis aí o perigo da história única, para a qual a nigeriana Chimamanda Adichie nos alertou.

Adichie vivenciou a situação de ser uma estudante imigrante negra nos Estados Unidos, e soube descrever muito bem como a história única tem o poder de invisibilizar a visão de mundo do outro, e por conseguinte o próprio outro.  Invisibilizado pelo discurso dominante, o outro deixa de ser. Não é um igual, não é um semelhante, não é um próximo. Assim, não é difícil compreender como foi possível aos missionários batistas (mas certamente não somente a eles) conciliar a defesa da escravidão, e posteriormente do segregacionismo e do racismo, com a mensagem de amor ao próximo, fundamento do evangelho que proclamavam.

João Chaves confronta obras apologéticas sobre o protestantismo batista especificamente, mas que certamente também se aplica a tantas outras denominações. Com uma narrativa envolvente e fluida, mas ao mesmo tempo elaborada a partir de rigorosa análise crítica –  aplicada um rico acervo documental – o autor, com sensibilidade e simultânea clareza e objetividade, desvenda o racismo que permeou o trabalho dos missionários da Convenção Batista no Brasil.

Faz isso a partir de seus conhecimentos no campo da teologia e da história. Mas são, sobretudo, seus saberes vivenciais, adquiridos subjetivamente por meio de experiências de relações sociais cotidianas, que o torna suficientemente conhecedor dos códigos culturais que subjazem às mensagens contidas nas fontes (cartas, relatórios etc.), a ponto de poder ser considerado um “intérprete” privilegiado.  Ao que se somou, também, sua inserção em espaços institucionalizados de socialização de conhecimentos, no quais experimentou, ele próprio, e de diferentes maneiras, o quanto a perpetuação de histórias únicas –  que ao negarem a validade de outros saberes, formas de viver e de crer–  continuam a servir à prática indiscriminada do racismo.

* Juçara da Silva Barbosa de Mello é Doutora em História Social da Cultura e Professora do Departamento de História da PUC-Rio.

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