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E que venham os dragões! Juntas resistiremos!
Por Odja Barros
Saudações feministas no lançamento da rede TEPALI. Estou participando a partir da cidade de Maceió – Estado de Alagoas, no Nordeste brasileiro. Destaco esta posição geográfica porque as regiões norte e nordeste são de maior índice de exclusão e pobreza. Falar então a partir do Nordeste significa falar não a partir do centro, mas da periferia brasileira. Uma das “Galiléias” do Brasil, mas nordeste é também espaço de resistências. Resistências sobretudo de mulheres, indígenas, negras, pobres, quilombolas. Mulheres em busca de vida melhor.
O Nordeste brasileiro, região de onde migrou a família pobre do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que a despeito dos equívocos, priorizou o enfrentamento da pobreza extrema que atingia sobretudo famílias das regiões esquecidas e empobrecidas do Norte e Nordeste do Brasil. É apropriado neste momento político de total desmonte dos processos democráticos que resultou no impeachment da primeira mulher eleita presidente Dilma Rousseff e agora, na prisão do ex-presidente Lula, nos juntarmos ao grito popular de Lula Livre! Lula Livre!
Como mulheres cristãs feministas, temos no Brasil lutado contra a apropriação do uso da fé cristã e das Escrituras bíblicas pelas forças evangélicas conservadoras. A Leitura Popular e Feminista da Bíblia tem sido instrumentos importantes para as mulheres e comunidades religiosas que buscam construir um projeto de resistência. As comunidades religiosas, igrejas locais são espaços importantes de resistência. Precisamos chegar com a teologia feminista nos espaços das igrejas locais. Por isso, tenho atuado há vinte e três anos como pastora e biblista desenvolvendo um trabalho de leitura popular e feminista da Bíblia.
Para além da atuação nas igrejas, surgem novos movimentos de feministas cristãs no Brasil que tem assumido agenda importantes e corajosas no enfrentamento das violências, racismo e a questão da descriminalização do aborto. Movimentos como Vozes Marias, Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Frent Evangélica pela Legalização do Aborto. São novas linguagens e agendas que se somam a luta de nossas ancestrais da Teologia Feminista no Brasil. Mulheres que abriram caminhos e inspiram até hoje nossa caminhada. Me sinto uma filha que bebeu e bebe da fonte de mulheres como Ivone Gebara, Nancy Cardoso e tantas outras que seguem conosco.
Quero deixar uma imagem bíblica. A mesma que usei na minha fala no Fórum Social Mundial no dia seguinte ao assassinato de Marielle Franco. Não podemos falar de novas opressões, mas as mesmas opressões que se apresentam com outras formas e linguagens. Lutamos no Brasil e na América Latina com o poder dos “dragões”, “bestas” que tem fome de morte e que perseguem sobretudo as mulheres e grupos que representam as resistências.
A luta da mulher contra o dragão
Apareceu no céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Ela estava grávida e gritava de dor, pois estava para dar à luz. Então apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, tendo sobre as cabeças sete coroas. (Apocalipse 12:1-3)
Essas é uma das visões centrais do livro do Apocalipse. Está bem no meio do livro e faz parte do chamado livro da profecia das comunidades, parte central que denuncia a violenta perseguição desencadeada pelo império romano contra as comunidades que resistiam e enfrentavam a fúria do dragão faminto de morte e de sangue. Essa visão representa uma luta desigual. O império representado no dragão faminto perseguindo a mulher grávida, prestes a dar à luz, que é a representação das comunidades perseguidas. Quais as possibilidades que essa mulher tem de resistir ou vencer o dragão? É assim que muitas de nós nos sentimos diante do poder violento e opressor que parece sempre se vestir com novas roupas, reaparecendo sempre mais forte e invencível.
A visão de Apocalipse 12 remete a uma mulher que geme e se retorce em suas dores de parto, enquanto procura fugir de um monstruoso dragão. O drama se desenrola em clima de horror e desespero. Ela corre, grita, se esconde e o dragão continua perseguindo-a, buscando devorar o filho que ela está prestes a parir.
A violência tornou-se dimensão incontornável da realidade que vivemos, atingindo principalmente os corpos das mulheres, os grupos e comunidades mais pobres e vulnerabilizados, gerando medo e perplexidade. O retrato da violência de hoje é tão assustador quanto era na época do livro de Apocalipse. A violência e o poder do mal parecem só mudar de nome e endereço, mas continuam com a mesma fúria de poder, destruição e morte. A mulher e a criança na cena do Apocalipse querem representar ao mesmo tempo fragilidade e força. Na aparente fragilidade esconde-se a força da resistência.
Se fossemos escrever o apocalipse hoje, a imagem da mulher e da criança perseguida pelo dragão continuaria sendo apropriada para descrever a correlação de forças desigual e para representar os corpos mais ameaçados pela ira dos dragões de ontem e de hoje. De muitas formas esta imagem corresponde à experiência que estamos vivendo no Brasil e na América Latina. A violência e a injustiça arrebatam nossos corpos todos os dias.
Assim como na visão, a luta é contínua e permanente. Somos e continuamos sendo ameaçadas, o dragão não desiste! No entanto, resistimos! Juntas somos capazes de construir resistências que ameaçam o poder dos dragões. A Rede TEPALI é um dos sinais desta resistência! Surge em um momento importante e necessário para reunir nossas forças e lutas e esperanças!
A comunidade perseguida está sempre celebrando as pequenas vitórias e antecipando a destruição e vitória final contra o dragão. Nessa mística é alimentada a esperança e a fé. Vejo a retomada da Rede de Teólogas, Pastoras, Ativistas e Líderes feministas como uma dessas pequenas vitórias que temos que celebrar! E que venham os dragões! Juntas resistiremos!
Odja Barros é pastora batista, teóloga e assesora do Centro de Estudos Bíblicos, com experiência em Leitura Popular da Bíblia e Leitura bíblica de gênero. É doutoranda em Teologia pela Escola Superior de Teologia.
* Esta reflexão foi apresentada em 21 de abril de 2018, por ocasião do lançamento da Rede de Teólogas, Pastoras, Ativistas e Líderes cristãs, em San José, Costa Rica.