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Pessoas LGBTI+ cristãs: e nossa saúde mental?

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Pessoas LGBTI+ cristãs: e nossa saúde mental?

Pessoas LGBTI+ cristãs: e nossa saúde mental?

* Por Gabriella Morena

Me lembro da primeira vez que tive um ataque de pânico. Foi há 4 anos, quando precisei rever as bases da minha fé. Depois de congregar ativamente numa igreja evangélica por muito tempo, aos 32 anos de idade, já morando com minha esposa, trilhei o árduo caminho de me questionar sobre a espiritualidade que tinha. Não há corpo e saúde mental que aguente a violência dos discursos proferidos contra a liberdade de pessoas LGBTQIA+ que frequentam a maior parte das igrejas evangélicas no Brasil. Por isso, criar outras referências é necessário.

Neste final de semana, por alguma razão, voltou a circular um vídeo de 2016 onde Ana Paula Valadão, pastora da Igreja Batista da Lagoinha e líder do grupo musical Diante do Trono, expôs sua visão sobre a relação entre pessoas do mesmo sexo. A explicação veio a partir de uma fala jocosa que condena as experiências de todas as muitas sexualidades que estão fora do padrão heterossexual, além da distorção de informações e desconhecimento sobre HIV/Aids.

A partir da fala do convidado que estava ao centro do palco com ela, num bate-papo, Ana Paula Valadão sentiu necessidade de explicar que a “união entre dois homens não é normal” e acrescentou

“Deus criou o homem e a mulher e é assim que nós cremos. A qualquer outra opção sexual é uma escolha do livre arbítrio do ser humano e qualquer escolha leva a consequências e a Bíblia chama qualquer escolha contrária ao que Deus determinou como ideal, como Ele nos criou para ser, de pecado. E o pecado tem uma consequência, que é a morte.”

Até o dia de hoje, o número de visualizações deste vídeo no YouTube é de mais de 186 mil, além das pessoas presentes e da transmissão pela Rede Super, canal de televisão que pertence à igreja.

Durante 25 anos eu sentei em frente ao púlpito mostrado neste vídeo e ouvi o que pastores, pastoras e líderes de diversas partes do mundo tinham a dizer. Esse tipo de fala explícita sobre as pessoas LGBTQIA+ não eram comuns, ficavam restritas a alguns acampamentos, reuniões e aconselhamentos pastorais que aconteciam nos gabinetes em privado, ainda que não faltassem evidências de que a homossexualidade era vista como pecado e como abominação. Não só por aquelas pessoas ou por aquela igreja. Tampouco pela Teologia que lhes servia como referência. A visão proferida era a de que Deus vê a homossexualidade como pecado porque estava escrito na Bíblia. E quem é que vai questionar Deus? O máximo que era possível fazer era pedir à Ele, a partir destas referências de leitura bíblica, para mudar.

Este ciclo perverso, bem arquitetado e que se encerra em si mesmo, é ouvido por milhares de pessoas todos os dias. Neste texto, meu foco será nas consequências psíquicas destas armadilhas. E o direciono às pessoas que ouvem tais discursos e se sentem angustiadas por não poderem viver em liberdade sua sexualidade, principalmente as pessoas LGBTs que estão nestas igrejas evangélicas e, ainda mais, as que seguem sentando-se nestes mesmos bancos onde eu também me sentei por anos.

Meu processo de saída do armário durou 10 anos e incluiu a busca de cura e mudança da minha sexualidade através de reuniões de oração, psicoterapia, aconselhamentos pastorais e acampamentos. Na época, eu conhecia, no YouTube, todos (eu disse todos) os vídeos em português sobre homossexualidade e a Bíblia. Esta plataforma ainda estar em expansão e o tema não ser amplamente abordado como hoje eram algumas das razões para que o material em vídeo fosse escasso. Observe o ponto: o foco era mesmo os discursos cristãos sobre a homossexualidade a partir da Bíblia, mas que apresentassem narrativas diferentes das que eu conhecia. Até vi alguns vídeos com depoimentos de pessoas LGBTs, mas não conseguia me conectar, pois minha espiritualidade já estava programada para condenar aqueles discursos que acolhiam outras sexualidades.

Como estamos numa sociedade que estabelece uma norma e a torna compulsória, a experiência de quem se percebe fora deste modelo sofrerá grandes impactos, com diversas consequências subjetivas. E o padrão, sabemos, é heterossexual, cisgênero, branco, monogâmico e eurocêntrico. Viver este processo dentro de uma igreja evangélica fundamentalista é adicionar uma camada a mais de complexidade nesta jornada marcada por muitas violências. É alguém tentando nadar correnteza acima, em solidão e, sobretudo, ligada a este espaço, a esta crença e às pessoas que ali estão. Fazer esta negociação é um processo difícil, pois geralmente a sensação é de se estar perdendo absolutamente tudo.

Hoje eu vejo que cabia um estranhamento quando candidatos a vereador e a deputado estadual – sempre homens – subiam no púlpito num culto de domingo para “receberem oração” e, claro, falarem sobre suas candidaturas. Devia ter estranhado quando, estudando na escola da igreja estava eu, aos 13 anos, aprendendo sobre criacionismo e, logo depois, a teoria da evolução seria introduzida no currículo com o discurso de que “era apenas para o vestibular”. Devia ter estranhado quando a divisão “música cristã” versus “música do mundo” era dada como a forma de separar não só canções, mas inserir tudo na classificação sagrado/profano, ou melhor, certo/errado. Foi mesmo estranho quando vi um pastor, recém-chegado, liderando um congresso para milhares de pessoas – tudo em Lagoinha é assim, a partir de três zeros – e chamando áreas de atuação e conhecimento como as artes, a política, a ciência etc. de sete montes que seriam conquistados para Deus. Devia ter estranhado quando todas as religiões – incluindo algumas cristãs – eram taxadas como desvio, fora da verdade, abominação, diabólica, seita, sobretudo as religiões de matriz africana, evidenciando o racismo religioso que só anos mais tarde tive condições de aprender a nomear.

Durante anos, eu simplesmente não tinha outras formas de ver a vida, concordava com quase tudo isso e seguia tentando me adequar. Mesmo questionadora, encontrava alguns limites para minhas dúvidas e retornava ao caminho que era possível. Nesta estrutura, quem questiona o modelo, com ações ou palavras, não é bem-vindo. Esta é uma separação difícil de ser feita, pois estas pessoas eram amigas da escola, da igreja e do grupo de dança. Pessoas que eu amava e me relacionava muito bem.

Este era o contexto que eu estava inserida. Se sair do armário foi um movimento que durou anos e parecia impossível e doloroso, rever minha fé me custou muito mais. Não conseguia fazer minhas orações sem pensar que estava errada, já que ia contra tudo o que aprendi na vida, além de estar me distanciando das amizades e das famílias que convivi por longos anos. Esta acusação martelava na minha cabeça: “Estou sendo conveniente. Agora que assumi minha sexualidade e estou me relacionando com uma mulher, quero acreditar que isso é possível aos olhos de Deus.”

Surpreendentemente, foi esta sentença que me impulsionou ao lugar que estou hoje e me ajudou, não só a entender que Deus criou, ama e celebra a diversidade, mas também me apoiou a questionar todas as bases da minha espiritualidade. Não era mais uma opção para mim seguir incluindo as homossexualidades de forma conveniente e não rever tudo. Precisava reconstruir como eu via as pessoas trans, desfazer meu preconceito com outras formas de crença e de não crença, desconstruir o racismo bastante presente na minha tradição de fé, perceber que os textos bíblicos estão carregados de sexismo e machismo, modelos de sociedade daquela época e dos dias atuais. Como seguir crendo e, ao mesmo tempo, rever as estruturas da minha fé?

O discurso é adoecedor e merece ser revisto com atenção. As pregações nos púlpitos não são transmitidas como fruto de uma experiência devocional legítima e honesta que respeitosamente deixa espaço para quem ouve absorver, refletir e colher o que lhe é útil. A mensagem vem como “a voz de Deus”, “a Bíblia diz que”, “Deus quer que”, “a vontade de Deus é”. Seria mais honesto algo do tipo:

“Olha, você também tem uma Bíblia em casa, você pode ler e pedir sabedoria para que estas palavras iluminem a sua jornada”.

“Minha tradição teológica é a teologia tal e o que vou compartilhar vem também dos autores x, y, z que leio e que me ajudam a entender o que está escrito, a aplicar para a vida a partir da forma que eu vejo o mundo.”

“É deste lugar que vou partilhar com você, mas não há intenção de colonizar sua fé. Peça discernimento e veja se o que trago faz sentido para sua espiritualidade e, assim, podemos caminhar lado a lado, ainda que pensemos de forma diferente.”

Me lembro, inclusive, quando eu ouvi algo assim pela primeira vez numa igreja progressista, no Rio de Janeiro, que é minha comunidade de fé atualmente. Fiquei sem chão e me senti totalmente perdida, absolutamente angustiada. Como assim a pessoa que está pregando não vai me dizer pra onde devo ir? Foi uma dolorosa libertação.

Me senti assim por um grande período, sem lugar. Enquanto se troca as lentes, há um intervalo de tempo, bastante desconfortável por sinal, que ficamos sem nenhuma. Ou, nas palavras de André Gide, um escritor francês, Nobel de Literatura em 1947: “Para se descobrir novas terras deve-se estar disposto a perder a terra de vista por um longo tempo.” E foi neste período que tive um episódio de pânico, sentia o coração acelerar, suava frio, faltava ar, uma dor física se instalou no meu peito, os pensamentos colapsavam e tive convicção de que eu ia morrer naquele dia. Estava perdendo a minha terra, segurança, certezas, minha base.

Desta forma, quero propor uma reflexão sobre um discurso comum neste mês, que é nomeado de Setembro Amarelo, onde falas sobre saúde mental recebem ênfase, incluindo dentro das igrejas. Líderes religiosos geralmente o fazem individualizando esta perspectiva e trazendo a fé como caminho de cura e libertação emocional para as pessoas ou fazendo uma crítica rasa a este mundo que “é do maligno”, sem identificar os sistemas opressores. Muitos citam, inclusive, dados sobre suicídio, depressão, stress entre outros sintomas, personificando os cuidados e responsabilizando as pessoas por estarem nesta ou naquela situação.

Questões relacionadas à saúde mental precisam ser vistas como um sintoma de um problema social, deslocando o olhar para perceber um sistema que adoece corpos e almas, questiona o capitalismo e suas estruturas violentas marcadas pelo machismo, racismo e LGBTfobia.

Falas como as da Ana Paula Valadão adoecem e a perversidade está em, enquanto de um lado se enrijece um sistema violento, do outro se oferece individualmente saídas para lidar com o que se diz não ser o padrão de Deus para sua vida – e muitos destes recursos são livros, camisetas, CDs, congressos e outras fontes de renda destas igrejas.

É urgente olhar para outras referências, ter outras perspectivas, construir novas formas de lidar com estes discursos que, por terem poder de emparelhamento ideológico, possuem espaço, voz, atingem milhares de pessoas todos os dias.

Te convido a se encorajar para criar, a seu modo e em seu tempo, outros pontos de apoio e a questionar esta estrutura, esta igreja, estas falas que te adoecem. Se a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam, como diz Frei Betto, o meu caminho tem passado por ler outras pessoas, ler mulheres, LGBTs e deixo alguns nomes para te fazer companhia: Ivone Gebara, Lusmarina Garcia, Henrique Vieira, Ronilso Pacheco, Ana Ester, Odja Barros, Nancy Cardoso.

Te convido a trilhar este caminho e quero te dizer que você tem companhia. Lembre-se que você não está só.

* Gabriella Morena é Psicóloga clínica, mestranda em Estudos de Gênero (ISCSP-Universidade de Lisboa), especialista em clínica de famílias e casais e em metodologias colaborativas, imigrante, lésbica, cristã e feminista. Integra coletivos relacionados a estas temáticas, incluindo o Evangélicxs pela Diversidade.

O Evangélicxs pela Diversidade é uma rede que reúne pessoas LGBTI e aliadxs que se identificam como evangélicas e que entendem que a diversidade sexual e a identidade de gênero devem ser celebradas como expressões da fé e espiritualidade, e que independente do gênero ou sexualidade, as comunidades de fé podem ser um lugar seguro para todxs.

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