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Procedimentos de controle do discurso teológico utilizados por neo-conservadores

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Procedimentos de controle do discurso teológico utilizados por neo-conservadores

Procedimentos de controle do discurso teológico utilizados por neo-conservadores

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. 

A verdade dividida – Carlos Drummond de Andrade. 

No cenário atual do protestantismo brasileiro está se intensificando (mais uma vez) a presença de movimentos teológicos e eclesiais que reivindicam o status de ortodoxia e se apresentam em continuidade histórica e doutrinária com tradições clássicas do protestantismo (o melhor exemplo desse fenômeno é o neocalvinismo). Tais movimentos tem um modus operandi peculiar no que diz respeito a sua apresentação, a busca de novas adesões e de fidelização de seus seguidores. 

Esses movimentos tendem a se apresentar em continuidade histórica harmônica com a sã doutrina (ficção teológica fruto de mentalidade metafísica), podendo, portanto, controlar (admitindo ao rechaçando) toda discursividade teológica. Tal modus operandi funciona tanto como força de atração, quanto como mecanismo de controle. 

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (1) 

Para refletir sobre estas questões me proponho, no diálogo com Michel Foucault em seu livro A Ordem do discurso, a discutir sobre os procedimentos de controle do neo-conservadorismo elencando três de suas estratégias: magistério protestante; sedução da continuidade histórica; sedução da harmonia estética. Para efeitos didáticos dividirei essa discussão em dois momentos: o primeiro com uma introdução e as questões sobre magistério protestante e o segundo com a sedução da continuidade histórica e a sedução da harmonia estética. 

Do controle da discursividade dissonante depende o discurso unívoco. Por isso, arrancá-lo da história se constitui numa tarefa importante. Porém, isso não é tudo. É preciso também estabelecer mecanismos de controle que consigam manter sua univocidade. Os mecanismos de controle operam no sentido de evidenciar a legitimidade e superioridade do discurso ortodoxo frente a qualquer outro discurso. 

M. Foucault classifica os mecanismos de controle do discurso em três grupos de procedimento de exclusão. O primeiro trata de limitar os poderes a partir dos instrumentos de interdição da palavra, segregação ou loucura e vontade de verdade. O segundo grupo de procedimentos de exclusão age no sentido de selecionar os sujeitos que falam nos espaços do ritual, na sociedade do discurso, na doutrina e apropriação social. O terceiro grupo aplica-se em dominar as aparições aleatórias ao discurso oficial.

É o espaço da vontade da verdade, que por sua vez, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: “é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios de hoje” (2). A verdade nesse caso está continuamente submetida as estrutura de controle que operam pela manutenção e distribuição do poder.  

Magistério Protestante como mecanismo de controle do discurso 

O primeiro mecanismo de controle é o que chamo aqui de “magistério protestante” ou, como chama M. Foucault, “sociedade de discurso”. Na perspectiva da teologia católica o termo magistério não precisa ser colocado entre aspas visto que é um dos três elementos autoritativos para a reflexão teológica. Na perspectiva protestante, porém, o magistério não é (oficialmente) reconhecido em função do postulado da Sola Scriptura. Contudo, sua não oficialidade o torna ainda mais potente operando como currículo oculto na formação da gramática apologética. 

A potência de tal mecanismo de controle de discurso está exatamente porque sua ação se dá, sobretudo, naqueles que desejam se estabelecer como agentes do discurso teológico. Os que querem ascender à condição de membros da sociedade do discurso teológico acabam por se submeter a seu controle, reconhecendo dessa maneira sua identidade normativa. Não sendo uma instituição localizável, o magistério encarna-se em personalidades performáticas. 

Reforçar o discurso unívoco, confundido ou afirmado como ortodoxo, se constitui num rito de passagem ao qual todo novo candidato à sociedade da verdade deverá se submeter, se quiser ser identificado como tal. Pensando nas condições do agente de discurso diante da sociedade de discurso, M. Foucault elabora o seguinte diálogo: 

O desejo diz:  

 – “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. 

E a instituição responde:  

 – “Você não tem porque temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma;  e que, se lhe ocorre ter algum poder,  é de nós, só de nós, que ele lhe advém”. (3) 

O “magistério protestante” é, portanto, quem seleciona os agentes de discurso que irão reproduzi-lo, constituindo-se também como representante da verdade. Os agentes são pessoas concretas, mas o “magistério” não é o somatório dessas pessoas; é, antes, a instituição guardiã do discurso unívoco. Ao ingressar nele, o agente deve abrir mão de sua condição concreta, bem como de seu horizonte existencial, para reproduzir e defender aquela verdade que supostamente emanou da essência das coisas. 

Identificar esse “magistério-sociedade” no interior de movimentos neo-conservadores é uma tarefa simples, sobretudo porque ele se localiza de forma difusa em certas personas marcadas por forte performance. Tais figuras são permanentemente catapultadas por instituições e vitrinizadas como modelos a ser mimeticamente seguidos. 

Mesmo não havendo uma instituição oficial que faça o controle do discurso – se houvesse seria mais fácil um diálogo crítico — há o mecanismo que opera coercitivamente, afirmando que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. (4) 

Sedução da Continuidade Histórica 

Como diz Alexandre Castro: “No ciclo vicioso de leituras des-historicizantes, a ideologia ressuscita ‘as verdades fundadoras’ toda vez que uma nova ideia ameaça a explicação até então vigente” (5). A pregação de uma linha histórica ininterrupta das “verdades fundadoras” até determinado grupo que a sustenta no presente (ortodoxia) é, sem dúvida, um elemento importante de coerção no âmbito da produção de discurso. Quem gostaria, ou mesmo ousaria se colocar à margem do “discurso original fundador”? (6) 

A história da igreja se transformou… numa determinada maneira de dispor e expor ‘a verdade’ já adquirida pela teologia (da repetição) sistemática… Assim não há espaço para qualquer análise crítica, existindo tão somente uma exposição de dados selecionados, decorrentes de uma configuração já dada (7). 

Juan Luis Segundo também considera essa questão naquilo que chama de “uma suposta continuidade perfeita ou visível de coisas e conceitos” (8). Ele identifica essa tendência no interior da ortodoxia católica, dizendo que ela: 

Esforçou-se, por exemplo, em fazer pensar que o “Pedro” de quem falam os sinóticos e a quem Jesus falou é igual a uma autoridade em quem Jesus já pensava para ser seu vigário e “sucessor de Pedro”, que esse por sua vez, é igual ao “bispo de Roma”; e, finalmente, que “bispo de Roma”, no século II, é igual a “sumo pontífice”, no século XX (9). 

Como se vê, busca-se uma linha histórica composta por uma sucessão de eventos arrumados ideologicamente. Isto é, uma cadeia (no sentido literal e metafórico) hermenêutica harmônica que sugere que o que se diz hoje é o que se disse numa origem providenciada pela força da própria divindade. 

Há, portanto, duas questões complicadas nesta perspectiva. A primeira, que sugere haver uma origem providenciada pela divindade e a segunda, que identifica a verdade com uma filosofia da história que exclui a dialética em nome de um todo harmônico. “O campo discursivo opera um deslocamento ideológico. Enquanto, em nível do discurso se diz que o passado deve determinar o presente, em outro nível, o que fica evidente é que as determinações ocorrem precisamente de modo inverso. O presente determina seletivamente a leitura do passado” (10). 

J. L. Segundo faz sua advertência e, propõe uma perspectiva que julga adequada:

A crítica histórica, no entanto, e em benefício da teologia […] não pode fazer outra coisa senão trabalhar contra esses anacronismos radicalmente enganosos. E isso não pelo prurido de tirar autoridade do sumo pontífice, mas para dar-lhe a autoridade de vida, e pelas justas razões que a apoiam de verdade (11). 

É exatamente contra esse tipo de pensamento que a “sedução da continuidade histórica” opera seu poder. Poder este que pode ser identificado como elemento harmonizador. A sedução se dá na capacidade de expor os temas da fé num todo harmônico e dedutivo, onde o crente encontra um “porto seguro”, ao menos na superfície do mar da fé, para sua prática religiosa. Deste elemento harmonizador, fruto da harmonização arbitrária e anacrônica da história, depende o “magistério” e sua atividade apologética. 

Sedução da Harmonia Estética 

Esse elemento harmonizador se constitui na terceira representação dos mecanismos de controle do discurso teológico operado largamente por movimentos neo-conservadores. É a “sedução da harmonia estética” que age em toda sua capacidade esterelizante, no sentido de promover um “bem-estar” que dirige à estabilidade. É como diz Jürgen Moltmann:  

Qualquer “summa” teológica consistente, qualquer sistema teológico, reivindica a totalidade, a perfeita organicidade e a coerência universal. De princípio, deve-se poder dizer algo sobre o todo e sobre cada parte. Todos seus enunciados devem ser isentos de contradições e ajustar-se mutuamente. A arquitetura deve ser como saída de uma fundição, inteiriça (12). 

Nisto está a “sedução estética” do neo-conservadorismo: a sensação de entrar em contato com a verdade teológica em toda a sua extensão e profundidade. A segurança tranquilizadora que surge da confrontação do crente com uma catedral, erigida minuciosamente no intuito de promover a percepção da harmonia entre todas as partes e em cada parte, em particular. Na contemplação desta “catedral”, só resta ao que contempla sentar-se em profunda admiração e permanecer contemplando. 

Exatamente nesta atitude de permanente contemplação é que se revela a força da “sedução estética” como poderoso mecanismo de controle. Como diz Moltmann: 

Todo sistema teórico, inclusive o teológico, ostenta por isso ao menos um certo atrativo estético. Mas nisto reside também o seu poder de sedução: os sistemas poupam a muitos leitores, e certamente aos deslumbrados, o pensamento crítico pessoal e uma decisão independente e responsável, porque não se apresentam para serem discutidos (13). 

E conclui dizendo: 

Mesmo quando não é fruto de dogmatismo, o pensamento dogmático se expressa  na teologia com clara preferência pelas teses; teses, porém, não colocadas em discussão, mas sim como enunciados que postulam ou a concordância ou a rejeição, nunca um pensamento independente e a responsabilidade pessoal. Induzem o ouvinte a pensar segundo elas, não segundo seu pensamento próprio (14). 

Desta forma, dá-se o ciclo dos mecanismos de controle do discurso teológico, bem como sua operação pelo neo-conservadorismo: um “magistério” que fundamenta sua verdade, identificando-a como a verdade original fundante, a partir da “sedução da continuidade histórica”, que, por sua vez, lança mão do recurso harmonizador, no sentido de imobilizar toda discursividade nas teias da “sedução da harmonia estética”. 

Esse ciclo de controle opera na direção de legitimar o processo de desistoricização do discurso teológico, que age na intenção de impossibilitar novas mediações culturais. Esse processo, por sua vez, impede que o evento nuclear da teologia se dê no interior das comunidades de fé, barrando, sobretudo, a experiência de fé e sua capacidade inventiva, bem como seu poder mobilizador. 

Notas 
(1) FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2003. p.8-9. 
(2) Ibid.: p.17. 
(3) Ibid.: p.7. 
(4) Ibid.: p.37. 
(5) CASTRO, Alexandre de Carvalho. A Sedução da Imaginação Terminal. p.57. 
(6) Ibid., p.60. 
(7) Ibid., p.69-70. 
(8) SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta. São Paulo: Paulinas, .230. 
(9) Ibid. 
(10) CASTRO, Alexandre de Carvalho. Op. Cit. p.71. 
(11) SEGUNDO, Juan Luis. Op.. Cit. 
(12) MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, p.11. 
(13) Ibid. 
(14) Id. Ibid. 

Graduado em Teologia e Filosofia, especialista em Educação e Ciências da Religião, mestre em Teologia e Literatura, doutor em Teologia, com pós-doutorado em Literatura. Foi diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio, pesquisador da Cátedra UNESCO da PUC-Rio, professor da FAECAD e da Faculdade Unida de Vitória e pastor da Igreja Batista em Itaipava.

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