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Acorda, Neo…
Acovardamentos, ousadias e delírios provocados pela carta de Harold Segura – “Provocações públicas aos meus mestres…”
Ao que parece, Harold Segura decidiu tomar a pílula vermelha (1). E por tudo o que foi desatado desde que seu artigo saiu publicado, a “Matrix” das últimas versões da Missão Integral ficou em evidência, e não tem volta.
Obviamente já apareceram, e continuarão aparecendo, os discursos de negação dxs adictos à pílula azul. Mas outrxs, agradecemos a todxs xs mártires evangélicos que tenha sido nosso irmão Harold, por fim, quem se animou a levantar publicamente algumas perguntas.
Embora significativa, o que se destaca em sua carta aberta não é uma primícia. De dentro, mas sobretudo a partir das margens onde se bebeu com emoção e gratidão da Missão Integral, muitxs disseram isto antes, recebendo, dos “Agentes Smith” de nossa Matrix, a correspondente recompensa bíblica para os profetas incômodos: pedradas.
Prometemos de acordo com nossas esperanças, e cumprimos com nossos medos
E me falaram de futuros, fraternais, solidários,
onde todo o falsário, acabaria no pilão.
E agora que não restam muros, já não somos tão iguais, tanto vendes, tanto vales, viva a revolução!
Reivindico a ilusão, de tentar ser a si mesmo,
essa viagem para o nada que consiste na certeza
de encontrar em teu olhar a beleza
(Luis Eduardo Aute)
Enquanto que o poder firme nos convida sempre à resignação, às não alternativas; é a insubmissão que vai engendrar e parir o futuro: as esperanças se concebem nas contingências. Os caminhos alternativos abrem suas veredas quando questionamos a homogeneidade.
Assim nasceu a Teologia da Missão Integral (TMI) no mundo evangélico. Foi iluminada pelas ousadias, a imaginação, o inconformismo e o santo delírio de uns jovens crentes rebeldes desafiando a teologia evangélica hegemônica de seu tempo. Os hoje chamados #Pais subverteram o establishment evangelical de seu momento histórico: levantando-se, denunciando, reinterpretando, buscando pontes.
Desde o início suas propostas incomodaram a muitos. Foram duramente criticados por grupos mais conservadores do mundo evangelical. Estes a nomearam transgressora, liberal, e inclusive marxista-comunista. Não poucos negaram a linhagem bíblica de sua proposta e com aquela arrogância do dominante opressor pretenderam desprezar a relevância de seu lugar teológico no mundo.
A René, Samuel, Valdir, Juan, Tito e Pedro, entre muitxs outrxs, agradecemos a linguagem profética que usaram no mundo evangélico para expressar a vontade de Deus, sua insistência que acolhamos Seu reino, e o trabalho coletivo de fazer teologia não como uma metafísica religiosa da especulação, mas com a urgência de vivê-la.
Mas ao que parece, então, em meio a persistência destas oposições, alguns setores da liderança da TMI, sobretudo das gerações seguintes, foram optando por se encarregar de normalizar o silêncio acrítico, colonizar suas causas teológicas, e reduzir à ortodoxia discursiva uma versão bastante aguada da Missão Integral.
Através dos anos, a metodologia da reprodução universalista desta abordagem teológica, a partir de sua versão diluída, e sua vigorosa adesão entre os círculos estudantis evangélicos e de organizações confessionais para o desenvolvimento na região, a tornaram uma teologia condicionada à voltagem que poderia suportar seu público cativo e aquele que sempre esperou alcançar, compostos pelxs da tradição evangélica ortodoxa.
A Matrix da TMI é uma Patrix
É possível que os #Pais não intuíram que um enunciado com a força da TMI continuaria interpelando as seguintes gerações que se encontravam com aquela a partir de seus próprios lugares epistemológicos. Que gente inquieta e inquietante como eles, continuaria escrupulosamente essa tarefa de desconstruir o normatizado, mas inclusive em dimensões mais desestabilizadoras que as primeiras denúncias proféticas dos #Pais à ortodoxia evangélica: gênero, raça, sexualidade, nações indígenas, cultura…
Ao perceber estes “brotos”, o instinto de conservação de algumxs lideranças da Missão Integral na América Latina se ocupou de vigiar o alinhamento das bases ao sistema patriarcal que lhes permitia de alguma maneira “reconciliar” com o evangelical ortodoxo. Assim foi como, usando seu poder, sancionaram com a invisibilização e/ou expulsão a quem se atrevia a revisar a TMI a partir da fidelidade ao que eles entendiam que convidava suas próprias demandas intrínsecas.
A história não oficial dá conta de muitos processos de controle. Como o que aconteceu no vibrante movimento nordestino brasileiro da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), que se arriscou a levantar posturas políticas incômodas aos evangelicais do establishment, a fazer teologia popular e a fazê-la a partir de todos os corpos excluídos. Ou como aconteceu às mulheres que tiveram que difundir de maneira apócrifa o manifesto que elaboramos durante o último CLADE, quando o grupo redator nos negou a inclusão de nossos temas “perturbadores” no documento final de Costa Rica. Também aconteceu o mesmo com os poderosos discursos contidos em um fanzine que jovens teólogxs da América Latina elaboraram durante a celebração dos 45 anos da FTL em 2015.
Assim, negada a escuta de que o rei estava nu, a tarefa teológica de muitos dos #FilhosdosPaisdaMissãoIntegral foi paralelamente minguando sua voz profética até chegar, em alguns casos, a apenas se deixarem instrumentalizar sem paixão em programas de ONG, ou a inventariar periodicamente, em eventos e publicações teológicas, aos freaks sociais, as vítimas, os agitadorxs e resistentes do sistema, mas a partir da negação da plenitude e diversidade epistemológica, a partir de uma relevância tardia, e a partir da invisibilização dxs sujeitxs marginalizadxs “não convenientes”.
E se falamos da tarefa reflexiva e teológica dominante da FTL, a participação real em sua liderança — ou seja, tomando decisões —, fora do padrão “homens/adultos/cisgêneros/propensos à altivez intelectual/não plenamente indígenas/não plenamente negros”, não esteve visibilizada durante várias gerações; e se esta ocorreu, em muitos casos continuou reproduzindo o discurso dominante de quem patriarcalizou a TMI; ou seja, a negação do poder da própria identidade epistemológica. Salvo, obviamente, por valiosas exceções que conviveram e convivem em atitude de resistência dentro desta “Patrix”.
Foi então que, sob a trama e o controle desta patrística latino-americana, se descartou o desdobrar-se de uma pluralidade de formas de sentipensar desde os mais diversos corpos, existências e lugares de processos culturais, sociais e políticos.
Não poderia eu mesma deixar de reconhecer que estes setores das lideranças da TMI não foram os únicos responsáveis pela crise do impacto da MI na América Latina. Todxs xs que temos nos aclimatado a suas leituras fáceis da realidade, ou desenvolvido projetos de assistência social esquartejando a TMI, ou assumido com o silêncio ou com fofocas de corredor nossa situação de reféns sem esperança, temos de alguma maneira uma responsabilidade compartilhada quando preferimos ser parte do mainstream da TMI, mantendo seus discursos e suas práticas doutrinais invés de perder nossa “imunidade” no mundo evangélico.
Por isso, ainda que a TMI tenha proposto argumentos reveladores que continuam cativando/perturbando xs que acolhem o reino em diferentes gerações, não poucxs temos vivido a esquizofrenia de nos percebermos progressistas, estando marcados pelo conservadorismo na forma de encarnação.
Como se pode fazer uma teologia transformadora desta maneira, irmão Harold? É muito difícil, e esse deveria ser o primeiro pecado a ser confessado: o lugar epistemológico monolítico ao qual nos acomodamos.
Frente à negação de questionamentos incômodos de nossos contextos, ou ao medo de perder espaços na ortodoxia evangélica, prefere-se calar subjetividades, silenciá-las de nossa reflexão teológica, sem se importar se com nossa omissão continuamos sendo parte dxs que esfolam a vida de milhões de oprimidxs na América Latina.
Esta percepção é que talvez possa nos explicar por que #OsFilhosdosPaisdaMissãoIntegral não tenham nem sequer levantado qualquer argumento teológico coerente com o dom do reino para enfrentar as letais manifestações políticas da bandeira ultraconservadora contra a chamada “ideologia de gênero”; quando lamentavelmente são estas, junto ao aborto, as únicas “causas cidadãs” nas quais a igreja parece militar. Silêncio.
O que temem estes grupos? Que a TMI perca a influência nas Igrejas Evangélicas de nossa América Latina? Notícia: com o que aconteceu recentemente através da mobilização da “força evangélica” no continente, está mais que demonstrado que mesmo querendo nos salvaguardar dentro da tradição ortodoxa, nunca conseguimos romper a influência do fundamentalismo, e menos ainda nos últimos tempos com as investidas de sua versão mais bárbara e maligna.
Entretanto, a exigência de Deus jamais variou em qualquer tempo ou contexto: Ele nunca nos demandou “sucesso”. Ele nos demandou, e continua demandando, Fidelidade.
“Calar agora seria morrer”.
O amor lança fora o medo
Não faz muito tempo, Gustavo Gutiérrez disse que fazer teologia era como escrever uma “carta de amor”, um escrito que vai se compondo de forma diferente de acordo com o momento da relação, embora o amor continue sendo o mesmo. Mas como nos dispomos HOJE a escrever nossas cartas de amor na América Latina? E o mais importante: como viver esse amor e evidenciá-lo no privado e no público?
Octavio Paz coloca desta maneira: “Amar é combater”. Sim, o verdadeiro Amor começa por problematizar a existência.
Deves amar
a argila que está nas tuas mãos;
deves amar
sua areia até a loucura
e se não,
não empreenda
que será em vão;
só o amor
ilumina o que perdura…
(José Martí)
Eduardo Galeano tinha razão: somos seres sentipensantes. Qualquer pensamento é antes um sentimento assustador que nos obriga a refletir. Por isso, a única forma de honrar um processo teológico que acolha o reino é amando. Sem amor não podemos fazer teologia.
Encarar esse amor, então, é claro que se torna angustiante, pois a vida dada por Deus se organiza e se experimenta de modos infinitos que muitas vezes nos sobressalta e assusta.
Por isso, o clima e o subtexto deste exercício de amor dever ser o encontro. Ver uns aos outros na altura dos olhos, não para conhecer sobre a pluralidade dxs outrxs a partir de uma posição teológico-cognitiva mas para nos encontrar de modo real e significativo. Porque uma teologia que nega a justiça existencial e cognitiva de toda a diversidade será uma teologia narcisista alienada em sua endogamia discursiva.
A TMI não pode se conformar a “ser a voz dos que não têm voz”. É necessário, como diria Isaac Palma, “uma teologia do reconhecimento, uma teologia de ressonância polifônica”, onde o Espírito fecunde a realidade devolvendo a voz a quem foi dela despojado, onde os que usualmente sequestraram a palavra e implementaram a postura teológica do calar, que nos tornemos ouvintes assertivxs desde o reconhecimento da dignidade e da justiça dxs outrxs, promovendo a escuta da multidão de pessoas, comunidades e situações históricas, e a partir da ressonância de sua própria voz, feita palavra e autoridade, descubram-se e nos ensinem do Deus que habita em suas lutas, em suas culturas, em seus corpos.
Porque ainda que muitxs sujeitxs sofredorxs possam ter sido deixadxs de lado, maltratadxs e até traídxs pela versão agorafóbica da TMI, na resistência do Espírito, que se move onde quer e como quer, nunca pararam de se narrar, e essa potência é a que os resgata definitivamente daquela segunda miséria a que costuma lhxs condenar a invisibilização das teologias domesticadas.
Esta é a demanda impostergável daquelxs que resistem a ser negadxs, ou pior ainda, a ser transformadxs, novamente, em mercadoria teológica discursiva de nossos eventos ou “destinatárixs” de nossos projetos sociais sem amor (1 Coríntios 13).
Elxs nos lembram de nossa Missão: que acolher o reino de Deus se trata, de forma condensada, de buscar Sua justiça: a confirmação de sua Epifania, transitando e dando sentido à infinitude dos firmamentos possíveis.
O amor, então, é um experimento, uma tentativa. E se em nossa América Latina, “continuam surgindo igrejas que não apenas falam mas praticam a missão integral com vistas à transformação”, é porque chegamos até aqui graças a todxs xs que profanaram e disputaram, os perdedorxs, xs de comportamento excêntrico, xs alheios ao dever ser. Porque muitas vezes, senão todas, segundo Jesus de Nazaré, honrar a vida é perder (Marcos 8.35).
Em uma das fecundas reações à carta de Harold em sua versão em português no Facebook, Alessandro Rocha cita o lema da casa dxs “perdedorxs” de Game of Thrones (2), os Stark: “the winter is coming”, o inverno se aproxima. Esta frase, tão conhecida pelxs seguidorxs da saga, é como esta família que vai perdendo tudo anuncia que vem tempos difíceis, e que por isso terá que se preparar e estar ainda mais unida.
Não podemos perder a perspectiva de que a defesa do reino é coletiva, em redes, em rebanho. Temos que voltar a nos reencontrar em toda a América Latina, aproximar as distâncias epistemológicas, geracionais, hermenêuticas, geográficas, linguísticas. Deixar de nos comportarmos como irmxs siameses que dão as costas um para o outro. Nós que já vamos envelhecendo sabemos que é a partir de determinada idade que estamos sendo responsáveis por nossos rostos e vamos nos parecendo mais a nossas coragens e a nossas covardias.
As grandes mudanças vêm de coisas que eram sonhos, que eram impossíveis de crer, inclusive de pensamento, mas que jamais venceram a Esperança, essa virtude teologal, que no coração do poeta Charles Péguy é “Essa menina de nada. Sozinha, levando pelas mãos o Amor e a Fé, atravessará os mundos revolvidos. Uma chama que traspassará as trevas eternas”.
Trata-se, então, de voltar à Esperança e de perder sobretudo os medos. De sair do ostracismo teológico conveniente que não suja as mãos nem a alma, e explicar a natureza descomunal, estranha e provocadora dxs sujeitxs sofredorxs e os universos em que habitam e os habitam, e decidirmos enfim a amar, a AMAR e sofrer a “comunidade de relatos” por mais diferentes/mais distantes/mais complicados/mais indecentes/mais perigosos que eles nos pareçam!
“Façam isto em memória de mim”.
“Eu quero desaprender para aprender de novo. Raspar as tintas com que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos…” (Rubem Alves)
Eu quero. Yo quiero.
érika izquierdo paiva, 29 de Outubro de 2016.
Notas
(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Matrix
(2) https://pt.wikipedia.org/wiki/Game_of_Thrones
Você pode escutar a autora narrar o artigo em espanhol: