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Desafiada pela coordenação do Festival Reimaginar a pensar sobre “Reimaginar em Tempos de Homofobia e Intolerância” para um Esquenta promovido em Belo Horizonte, MG, deparei-me, novamente, com todo o massacre ocorrido em Orlando. Como escrever sobre uma temática que me atravessa de maneira tão pungente? Entre textos e imagens, uma oração da Teóloga e Pastora Metodista, Nancy Cardoso, trouxe-me conforto:
Pulse-me Orlando!
Conjuro-vos, ó gentes desse lugar:
Não desprezeis
nem condeneis este amor
Por mais que não entendas.
Rendas. Fendas. Sendas. Aprendas…
Que toda maneira
de amor vale a pena.*
O MASSACRE
Os números impressionam. 49 mortos. 53 feridos. O maior massacre a tiros em solo norte-americano. Famílias órfãs. Amigos inconsoláveis. Do outro lado um número pouco expressivo: um. Um atirador. Um assassino. Um homofóbico. Ele poderia ter vários nomes, mas seu nome era Omar Mateen.
Segundo o jornal El País, o pai e alguns amigos de Omar afirmaram que ele costumava manifestar seu ódio pelos homossexuais. Conhecidos do atirador disseram a vários meios de comunicação dos EUA que Omar havia ido pelo menos 10 vezes à boate Pulse e utilizava um aplicativo que promove encontros entre homossexuais.
Diante dos fatos, uma pergunta recorrente foi: quais foram os gatilhos daquela arma? Um post de um professor universitário teve centenas de likes no Facebook no qual se questionava sobre os muitos gatilhos do massacre em Orlando. O professor afirmou: ele é homofóbico, ele é fanático religioso, ele é psicopata, ele é fruto da sociedade machista, ele é morador de um local onde armas são vendidas legalmente na esquina, ele aproveitou-se de uma falha dos serviços de inteligência. Concluiu, não podemos pensar em apenas um gatilho.
Realmente, em uma realidade marcada por interseccionalidades, não podemos afirmar que foi um único gatilho que disparou a arma que matou 49 pessoas em Orlando. As reflexões devem, sim, passar pelo crivo da geopolítica, da análise do terrorismo, do imperialismo das nações do Norte, e de tantos outros fatores que atravessaram aquela ação, mas eu, como membro da comunidade LGBT não posso deixar que aquela ação receba outro nome senão: crime de ódio contra os LGBTs, ou seja, LGBTfobia.
Li textos, assisti a vídeos dizendo que os LGBTs estavam se aproveitando do ocorrido para se promoverem. Promoção por meio da dor, da perda, do sangue, do desespero. Promoção por meio do medo. À semelhança de Cristo, que ouviu a dor de seus semelhantes, que foi ao encontro do Outro, da Outra, me propus a ponderar o ocorrido a partir do chão-da-vida, da concretude da existência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas transgêneras.
CRIME DE ÓDIO
Segundo a transativista Helena Vieira, existe uma produção estrutural da homofobia, que não pode ser diluída por esse discurso de “outros gatilhos”. Existe uma tendência em afirmarmos “não, não somos homofóbicos”, chamando de opinião o que é discurso de ódio.
No dia 14 de junho de 2016, em frente à Assembleia Legislativa, em Belo Horizonte, membros da comunidade LGBT e diversas outras pessoas que se compadeceram do ocorrido fizeram uma Vigília pelas vítimas da LGBTfobia. Números chocam, não é mesmo? Os dados do Grupo Gay da Bahia de 2015 mostram que no Brasil é como se tivéssemos SEIS massacres como os de Orlando por ano. Em 2015, foram 318 homossexuais mortos. A cada 27 horas um LGBT é morto no Brasil. Segundo a ONG Transgender Europe, O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
Helena Vieira nos alerta para o fato de que a homofobia, a transfobia são crimes de ódios e os crimes de ódio não se manifestam simplesmente no ato da morte, eles se constroem muito antes em práticas sociais.
Vejamos o exemplo da Igreja Batista de Westboro do Kansas, nos Estados Unidos, que existe desde 1955 e é conhecida pela posição extrema contra a homossexualidade. Na página principal de seu site institucional (www.godhatesfags.com), está o versículo de Levítico 20, 23(b), “Por terem feito todas essas coisas, causam-me repugnância”. A resposta deles ao ocorrido em Orlando foi: “Deus mandou o atirador para a Pulse”.
Pensemos, com honestidade, quantas das igrejas cristãs brasileiras não pregaram a mesma coisa? “É o juízo de Deus!”; “Jesus está às portas”. Discursos de ódio disseminados como opinião, ou pior, como crença religiosa. Nas redes sociais, imagens e notícias de ataques terroristas sob o comando do Estado Islâmico contra cristãos levantavam a questão: “por que essas notícias não repercutem na mídia?” A sutileza desses discursos (em muitos casos não tão sutis assim) só aumenta a polarização homossexuais e cristãos.
REINVENTAR
As investigações continuam. Muito provavelmente Omar Mateen não tenha tido ligação com algum grupo terrorista. Os desdobramentos das buscas já levaram um possível ex-amante de Omar à televisão, acusando sua ação de “vingança contra porto-riquenhos”. Terrorismo? Xenofobia? Nesse momento, o que fica claro é que ações como essas tiram a homofobia do armário!
1 x 49 não retrata a realidade da homofobia ao nosso redor. “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador”, é o que, gentilmente, os evangélicos têm a oferecer aos LGBTs. Entretanto, como o teólogo luterano André Musskopf disse em seu texto “Eu morri ontem em Orlando. Nós morremos ontem em Orlando” **, nós temos o direito de sermos amados por inteiro.
Como o profeta Jeremias, eu, também, “quero trazer à memória o que me pode dar esperança”. E, em Cristo, tenho a esperança da reinvenção de um mundo possível. Afirmo, sem medo de errar, que é por meio do diálogo, que podemos reinventar a nossa caminhada cristã. Contra a cultura do ódio, a cultura do amor e do respeito.
Termino com uma reflexão da Bispa da Igreja da Comunidade Metropolitana, Carmen Margarita Sanchez de Leon:
Diante da desgraça ocorrida em Orlando… Diante das tragédias do mundo…
Que nos beijemos mais, com beijos esperados, profundos…
Que nos beijemos mais, beijos eróticos, beijos de paixão…
Que nos beijemos mais, beijos ternos, cheios de amor…
Que nos beijemos mais, com beijos que consolam e acompanham as jornadas incertas, difíceis…
Que nos beijemos mais, porque nos faz jovens, nos dá esperança…
Nas palavras do poeta “o mundo nasce quando dois se beijam”
Então, como um beijo pode inspirar ódio?
Quando nos deformamos?
Quando deixamos de ser divinos, esquecendo que um beijo é o paraíso e a vida?
Quem é responsável por estes rios de sangue?
Um jovem de 29 anos perdido no desamor…?
Ou talvez tenhamos nos esquecido de nos beijar mais…
Com beijos que sobem muros, com beijos ponte…
Hoje só quero beijar…
E nesses beijos esperar com a salmista o encontro da verdade e do amor,
No momento em que se beijam, eroticamente, a justiça e a paz…***
Notas
* PEREIRA, Nancy Cardoso. Facebook, 2016. 13 de jun 2016. Disponível em: < https://www.facebook.com/nancy.cardosopereira?fref=ts>. Acesso em 20 jun 2016.
** MUSSKOPF, André S. Eu morri ontem em Orlando! Nós morremos ontem em Orlando! Disponível em: <http://andremusskopf.blogspot.com.br/2016/06/eu-morri-ontem-em-olrando-nos-morremos.html>. Acesso em 20 de jun 2016.
*** LEON, Carmen Margarita Sanchez de. Facebook, 2016. 12 de jun 2016. Disponível em: < https://www.facebook.com/carmenmargarita?fref=ts>. Acesso em 20 jun 2016.
Texto produzido para o evento de lançamento do Festival Reimaginar, ocorrido em Belo Horizonte, no dia 21 de junho de 2016.