Guilherme de Carvalho, bolsonarismo e (a falta de) arrependimento
* Por Raphael Braga Freston
Conheci Guilherme de Carvalho em 2014, quando ele começava a ganhar fama por criticar ferozmente a esquerda evangélica e por propor uma versão um tanto refinada de Kuyper para a política brasileira. Para ele, o movimento evangélico progressista era uma praga que precisava ser erradicada das igrejas. Dentre suas muitas críticas, era necessário apaziguar os “males singulares” do PT que justificavam uma batalha feroz e acirrada a ser travada publicamente nas redes sociais, em artigos, blogs e movimentos estudantis.
Eventualmente, muitos evangélicos progressistas ficaram sem voz dentro das igrejas. Dado o crescente temperamento conservador e reacionário que ganhava notoriedade desde 2012, suas críticas foram bem aceitas por vários evangélicos, que viram nele alguém falando a verdade ao poder. Ele atacava supostas ameaças dos esquerdistas seculares à liberdade religiosa, do identitarismo totalitário à democracia, e de marxistas pós-modernos à cultura cristã. Boatos diziam, ouvi isso de mais de uma fonte, que ele se autoproclamou um profeta na luta para defender a igreja evangélica da praga do coletivismo identitário. Independentemente desses boatos serem verdadeiros ou não, não é difícil perceber em seus escritos e suas ações uma crença messiânica e egocêntrica.
Nada parecia elevar mais o seu senso de dever do que fazer ataques ferozes à esquerda, em geral, e à esquerda evangélica, em particular. Se não fosse seu discurso predileto com relação à “ideologia de gênero”, ele causaria rebuliço nas redes sociais apenas com eventos aparentemente banais como quando Evo Morales entregou ao Papa Francisco a polêmica Cruz de Espinal, ou quando uma mulher transgênero foi simbolicamente crucificada durante uma parada LGBT. No entanto, não foram suas divergências com os “estudos de gênero” ou com a esquerda latino-americana que realmente marcaram sua persona pública. Foram seus ataques direcionados aos evangélicos progressistas, não apenas por supostamente permitirem as atrocidades do governo petista, mas por supostamente se curvarem a uma ideologia anticristã. Era a idolatria da esquerda evangélica, do culto ao Estado, ao partido, ao identitarismo e ao relativismo que precisavam ser combatidas. Quando o congresso votou pelo impeachment de Dilma, quem recebeu o peso de suas críticas não foi o assombroso elogio de Bolsonaro ao torturador da presidenta, mas o congressista gay Jean Wyllys.
Pelo que sei, nunca houve qualquer apoio aberto de Guilherme de Carvalho ao Bolsonaro. No entanto, ele tinha relativamente pouco a dizer sobre as ameaças explícitas de Bolsonaro à democracia, às minorias, como indígenas, negros e LGBT, e ao meio ambiente. O silêncio em relação à violenta retórica de Bolsonaro, quando contrastado com suas contínuas manifestações contra a esquerda, mesmo diante de claras indicações da adesão maciça de evangélicos ao bolsonarismo, só poderia ser interpretado como apoio tácito, mesmo que envergonhado.
Além disso, não é difícil ver como Guilherme de Carvalho e Bolsonaro podem concordar em algumas coisas. Ambos elogiaram o livro “Idolatria do Estado”, de Franklin Ferreira, que basicamente enquadra a esquerda como uma ameaça totalitária, e o Estado como um destruidor de liberdades civis. Guilherme de Carvalho também elogiou um vídeo incendiário de Yago Martins contra o aborto, comparando a sua legalização ao holocausto. Aliás, embora nunca tenha adotado um discurso “antiglobalista” cortante e seco como Yago Martins e Franklin Ferrreira, Guilherme de Carvalho foi um companheiro de viagem nessa retórica venenosa. Tanto Guilherme de Carvalho quanto Jair Bolsonaro atacaram a suposta “ideologia de gênero” e afirmavam estarem defendendo valores cristãos como a família tradicional. Uma grande quantidade de apoio evangélico ao Bolsonaro se deve a essas supostas ameaças em que o próprio Guilherme de Carvalho propagou. Outrossim, o argumento dele de que a esquerda, rendida à ideia gramsciana de um partido revolucionário como o príncipe moderno, apresentava uma ameaça totalitária ao ocupar e manipular o Estado e a sociedade civil é um tema recorrente elevado por Olavo de Carvalho, guru filosófico de Bolsonaro.
Não é preciso dizer que muitos não foram pegos de surpresa quando ele aceitou uma posição numa das secretarias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiada pela ministra Damares Alves. Pelas interações que tive com ele, dos dedos em riste à esquerda evangélica e suas diatribes contra as supostas ameaças aos valores cristãos, só posso supor que foi sua autoestima elevada que o fez, ingenuamente, querer se tornar uma voz de moderação interna no governo de Bolsonaro. Ledo engano. Esse governo tem promovido políticas calamitosas contra o meio ambiente, as minorias e as pesquisas e universidades. Aliás, a sua inclusão no governo só serviu para legitimá-lo aos olhos de quem procurava um conservadorismo menos abrasivo. Não tenho certeza sobre que tipo de moderação ele esperava ser quando tudo indicava que esse governo veio para destruir.
Deixou o governo, segundo ele mesmo, devido à calamitosa gestão da pandemia. Claro, ele deveria ter saído antes ou, mesmo, nem ter entrado, pra começo de conversa. Assim, ele não ficaria numa posição tão frágil agora. Lamentavelmente, ele próprio admitiu, em um texto escrito após sua saída, que ela se deveu ao fato de que perderia qualquer credibilidade como teólogo público se ficasse. Houve claramente um cálculo de salvar a própria pele nessa decisão. Pelo menos, alguns podem dizer, ele teve a clarividência de saber que a pandemia seria desastrosa para o governo. Uma leitura generosa de suas ações e justificações poderia fazer você acreditar que, ao sair do governo, ele pode ter, mesmo que tenuemente, uma vértebra moral. Infelizmente, essa vértebra é oportunista. O artigo após sua saída parece mais uma justificativa moral a posteriori por ter entrado nesse governo assombroso. Teve pouco ou nenhum sinal de arrependimento ou mea culpa, apenas algumas análises sobre como o núcleo ideológico do governo sabota tudo o que é cristão em suas políticas. Diferentemente de quando o PT estava no poder, ele acha tudo bem evangélicos fazerem parte desse governo; e seu grande insight no governo foi perceber os meandros do poder estatal.
Mais recentemente, ele vem dizendo que o movimento evangélico, embora vacinado contra a esquerda, tem sido atingido por teorias de conspiração. Não discordo, apenas aponto que os dois estão intimamente relacionados. Foram discursos como os que ele mesmo ecoou, contra a esquerda, que abriram o caminho para essas teorias conspiratórias. Diante de uma crise sanitária e combate a uma pandemia, chega a ser trágica como essas teorias e políticas neoliberais minaram a confiança pública necessária para salvar vidas. Como relacionei acima, Guilherme de Carvalho não foi passivo nessa crise. Ela foi desenhada paulatinamente há anos e um dos fatores é sem dúvida a falta de confiança em qualquer aparelho estatal.
Em suma, a dissonância entre suas críticas mudas ao governo iliberal de direita e suas diatribes histéricas contra a esquerda tem consequências. Dá ao público uma compreensão distorcida de onde vêm as ameaças mais imediatas à democracia liberal e dá à direita autoritária uma justificativa para atacar as instituições fundamentais das sociedades abertas. Apesar dos abusos claros de Bolsonaro, Guilherme de Carvalho continua a mirar suas críticas mais pesadas à esquerda, intercaladas com algumas reclamações tímidas, contorcendo o nariz a Bolsonaro. Recentemente, ele afirmou que não critica o bolsonarismo por considerá-lo um fenômeno “mindless”. Percebe-se que dele nenhuma resistência contundente virá. Além disso, visto suas manifestações públicas, parece que sua atitude pomposa não sofreu nenhum desgaste.
Guilherme de Carvalho pode ter se distanciado de Bolsonaro ou do bolsonarismo. Tenho certeza de que sua resposta autojustificada seria dizer que nunca foi um bolsonarista. Pode até ser verdade, no sentido de nunca ter votado em Bolsonaro, mas isso seria fetichizar o fenômeno social que se denomina bolsonarismo. É preciso ver as condições e as relações que contribuíram para esse apoio maciço. O bolsonarismo é uma conjunção de relações sociais que construíram uma percepção distorcida da realidade. Nesse sentido, Guilherme de Carvalho está sim no aprisco do bolsonarismo.
Mas a minha decepção não é porque ele sustentou (e sustenta) seu apoio ao bolsonarismo. Mesmo depois de denunciar evangélicos progressistas como inimigos da igreja e de sua participação nesse governo, ele tem fracassado em fazer uma humilde autocrítica. Ele erra ao não perceber suas contribuições ao bolsonarismo – embora seu peso mesmo seja pífio no quadro geral -, apresentando desculpas desajeitadas e justificativas sem considerar suas ações, e continua a lançar os evangélicos contra os cristãos progressistas. Exige frequentemente mea culpa dos cristãos progressistas, mas carece de humildade para ver seus próprios erros. Mas por que eu deveria esperar algo assim de alguém que está preso em suas certezas discursivas e construiu seu apoio público com base nesses preconceitos?
Raphael Freston possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, mestrado em Antropologia pela Universidade de Toronto e está finalizando outro mestrado em Estudos de Paz e Conflito pela Universidade de Waterloo. Seus interesses são em práticas comunitárias de pesquisa e em promover sociedades pluralistas, onde diversas formas de vida coexistem em harmonia e paz.