As igrejas e a superação da ignorância quanto aos direitos humanos
Os 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos são celebrados com um misto de júbilo e preocupação. Júbilo porque o documento é resultado dos esforços pela paz com justiça de países que formavam a ONU, em 1948, depois dos traumas da Segunda Guerra Mundial e do nazismo.
Os 30 artigos da declaração representam um grande passo da humanidade ao afirmarem que todos os seres humanos têm os mesmos direitos e a mesma liberdade de ser, independentemente de cor, sexo, credo, nacionalidade ou qualquer outra distinção. Por isso, a declaração é “universal”, ou seja, diz respeito a quem habita qualquer país, sob qualquer tipo de governo, de qualquer condição social, gênero, idade, religião ou cor da pele.
Nesse sentido, por exemplo, quando o artigo 3º estabelece que todos têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, isto diz respeito tanto a quem vive em mansões ou condomínios, e deseja circular livremente pelas cidades, como também às populações das periferias que almejam, de igual modo, viver em paz e ter acesso livre a todos os lugares.
O termo “segurança social” também é parte importantíssima do documento. Não há segurança pessoal sem segurança social, nas formas previstas no documento como garantia de trabalho e de condições justas com remuneração satisfatória, repouso e lazer com férias remuneradas, padrão de vida que assegure à pessoa e à família alimentação, saúde, vestuário, moradia, segurança em caso de doença, viuvez, invalidez.
Entretanto, ainda que a declaração tenha servido de inspiração para Constituições nacionais, parâmetro para ações da comunidade internacional frente a conflitos localizados e gerado associações de defesa de direitos espalhadas pelo mundo, os 70 anos do documento são lembrados num clima de preocupação.
Visões e posturas extremistas mundo afora, alimentadas por lideranças políticas, têm reduzido a declaração a algo ideológico, como bandeira das esquerdas políticas. Críticas destrutivas são dirigidas à defesa dos direitos humanos com base apenas nos seis artigos voltados para a aplicação justa e digna de leis e tribunais para quem comete ilegalidades, classificando a busca de direitos dignos nestes casos como “defesa de bandidos”.
Tudo isto reflete o rancor de segmentos conservadores, exclusivistas, brancos, machistas, racistas, exploradores das minorias sociais historicamente estabelecidas, de quem quer manter privilégios e sustentar a desigualdade entre os humanos. Neste “quem” estão empresários, ruralistas, banqueiros, donos e profissionais de mídias, que dão suporte a este discurso. Ele acaba acolhido por muitos, pois simplesmente ignoram os artigos da declaração.
O desconhecimento do documento e sua aplicação na Constituição, por exemplo, reflete-se na incompreensão de que direitos humanos vão desde a segurança alimentar, ao direito ao voto, às condições justas de trabalho, ao direito à propriedade, à participação na vida cultural e no progresso científico de uma sociedade, e aos deveres que cada humano tem com sua comunidade.
Para citar alguns artigos ignorados por quem nunca leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a critica somente de ouvir falar.
Vale recordar que as igrejas cristãs contribuíram significativamente com a aprovação da declaração por meio do movimento ecumênico, que atua pela unidade das igrejas em diálogo e cooperação com as demais religiões na busca da paz com justiça.
O movimento ecumênico participou diretamente da elaboração do Artigo 18 sobre o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de crença, especialmente por meio da Comissão das Igrejas sobre Assuntos Internacionais (CCIA), criada em 1946.
Estas igrejas em diálogo e cooperação permanecem comprometidas e muito ativas na defesa da aplicação dos princípios da declaração.
Isto é resultado da compreensão de fé de que direitos e garantias de dignidade para os seres humanos correspondem à vontade do Deus Criador, que “ama o mundo e os que nele habitam”, de “que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Evangelho de João).
No Brasil, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) foi criada, em 1973, por cinco igrejas cristãs (Anglicana, Metodista, Pentecostal Brasil para Cristo, Presbiteriana do Brasil Central e Católica Romana) para a promoção, a defesa e os direitos humanos.
Foi em plena ditadura, no contexto da cruel violação de direitos humanos que o Estado de exceção agenciou. Uma das primeiras atividades foi a publicação de um livreto com o texto da declaração. O material era singular porque trazia textos da Bíblia relacionados a cada artigo.
Nos seus 45 anos, a CESE celebra os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos com a reedição do livreto, mantendo os textos bíblicos referenciais e incluindo artigos do Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), bem como declarações de igrejas participantes do movimento ecumênico. O material é gratuito e pode ser acessado aqui.
Vale a leitura para se renovar a esperança de que a ignorância plantada pela maldade dos agenciadores dos privilégios desumanos, lamentavelmente apoiada pelas lideranças de algumas igrejas, pode ser vencida.
Fonte: Carta Capital, Diálogos da Fé, 12/12/2018 – Foto: Chico Barros