Jesus e o “espírito” do Natal
A relação de Jesus com o Natal parece óbvia. Já com o “espírito” do Natal há controvérsias. Quer se comemore ou não o Natal, a relação com Jesus está implícita, mas no “espírito” do Natal abrem-se exceções. Deixe-me explicar.
Natal, em tese, é comemoração do nascimento de Jesus. Entretanto, o “espírito” do Natal possui afinidades eletivas com o “espírito” do capitalismo. Antônio Flávio Pierucci na apresentação de “A Ética Protestante e o espírito do capitalismo” faz menção à cautela e à ênfase sobre a palavra “espírito”. Max Weber pretendia com isso identificar seu objeto de análise que não era o capitalismo como sistema econômico ou modo de produção, mas, sim, o capitalismo enquanto cultura, “cultura capitalista moderna, o capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida de todo dia”. “Noutras palavras, o ‘espírito’ do capitalismo como conduta de vida: Lebensführung.” (2004, p.7).
Pode-se levantar a hipótese de que o Natal, enquanto data festiva, foi vendido e transformado por algo parecido com o que Adorno e Horkheimer chamaram de “indústria cultural”. É o que também pensa Pedro Funari, historiador e arqueólogo da Unicamp, para quem o capitalismo e a indústria culturais difundidos pelos Estados Unidos são os responsáveis pela atual configuração da festa de natal. Virou objeto de venda, de comercialização. Algo a ser consumido.
Falar de Natal vende, assim como falar de passado vende mais do que o presente, como nos filmes de Tarantino com a tônica do retrô. Natal é “retrô”. O passado é decorativo e assume um papel mitológico, de algo que se perdeu e só possui um valor mercadológico e nostálgico. Lojas, mercados já não escondem suas intenções. A melhor época do ano para o comércio é o Natal. A chama do consumismo é acesa e legitimada pela data que foca a posteriori no comprar e dar presentes.
Essa época é como uma estrela que reacende os ânimos de cofres públicos e privados. Além disso, aumenta também as dívidas dos consumidores para o próximo ano. Estimula-se o crédito com parcelamentos a perder de vista. Quando o consumidor termina o pagamento já está na hora de fazer mais uma dívida. Um círculo vicioso. Sem o qual não há vida, para muitos. Esse é o espírito do Natal, a “jaula de aço” (Weber, 2004, p.165), a crosta do modus vivendi capitalista (ou neocapitalista), que já foi naturalizado pelo ocidente, que dita regras com uma aura de santidade.
Não passa pelo crivo de qualquer sociedade pensar em Natal sem pensar em consumo. Até mesmo as igrejas sucumbiram. Nada de novo nisso. Não se trata de um “economicismo ingênuo”, de uma lente só, através da qual se enxerga tudo ao redor. A lente é multifocal, todavia, com maior predominância da economia. A lógica do campo econômico, como disse Bourdieu, é parâmetro/matriz para todos os demais campos. Há uma autonomia relativa, mas não prescinde de um outro campo. Dizer que a lógica predominante nas religiões é de ordem econômica não quer dizer que outros fatores não existam inclusive aquilo que os cientistas da religião chamam de irredutível. Não é de agora que a religião virou uma fonte de riquezas. Não é de agora que a fé virou meio e não fim. Não é de agora que líderes religiosos usam desse expediente para convencer seus rebanhos a doarem o sacrificado dinheiro que possuem como forma de fidelidade. “As janelas do céu se abrirão para quem trouxer os dízimos a casa do tesouro”, argumentam de forma inapropriada com o texto do profeta Malaquias (3.10).
O “espírito” do Natal é um contrassenso. Jesus, apresentado pelos evangelhos, diz que não dá para servir a Deus e a Mamom (Mateus 6.24; Lucas 16.13). Como diz o teólogo Jung Mo Sung: “Mamom é dinheiro elevado à categoria de Deus”. Jesus condenou veementemente os que transformaram a “casa de Deus” em comércio, “covil de salteadores” (Mateus 21,13).
Conta-se que o filósofo Kierkegaard, em uma celebração de natal, ouve uma mensagem sobre as virtudes da pobreza presentes no nascimento de Jesus. Presentes, também, a elite econômica e política da Dinamarca que concordam unânimes, com o pregador. O curioso é que ninguém ri! Conclui. Ora, se não somos capazes de rir de si e do mundo é sinal de que não estamos sensíveis à tragicomédia da vida. Consciente tanto de seus erros quanto de seu sofrimento ético, rir de si mesmo é perceber sua condição finita diante do inteiramente Outro e a desproporção entre eles.
Talvez nesse Natal estejamos sendo desafiados a rir de nós mesmos pelo abismo infindável entre Jesus e o “espírito” de Natal. Afinal, o “espírito” de Natal não evoca em nada o espírito dessa data.
Fontes:
ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1985.
WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.
O Natal ao redor do mundo – A história e a influência das culturas europeia e norte-americana. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/345811-o-natal-ao-redor-do-mundo-a-historia-e-a-influencia-das-culturas-europeia-e-norte-americana-0931/