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Jesus e seu par de nádegas
Festa do corpo de Deus
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
“Ó crux ave, spes única
Ó passiones tempore”
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
é próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor.
[Adélia Prado]
“Jesus tem um par de nádegas! Mais que Javé na montanha esta revelação me prostra”. Que força tem a estética na expressão do belo, do bom e do verdadeiro! Estética (do grego aisthésis: percepção, sensação, sensibilidade) diz respeito a como o ser humano lida com a realidade que o circunda, como ele a percebe. A realidade se oferece gentilmente e nós a sorvemos em goles maiores ou menores, conforme a sede que se tem. Perceber a realidade, ser atravessado por ela, é um direito inalienável. Alguma coisa pela qual se deve lutar para preservar. Mesmo que tal miragem sobre a realidade seja oposta a que eu possa dar, ela deve ser acolhida em sua alteridade.
A percepção da realidade é, portanto, a forma como cada grupo humano se insere na realidade interpretando-a de tal maneira que esta tenha sentido, que possua finalidade. Aqui surge uma questão importante: Quem controla a criação de sentido? Quem determina o que é belo, bom e verdadeiro? Nesse Rubicão as batalhas são travadas. A derrota da arte se dá quando ela é reduzida à política. Aí o estético se reduz ao dogma. As formas de expressão da realidade (que possibilitam os sentidos que organizam a vida) são reduzidas ao discurso correto, à pura retórica, portanto.
Em tempos de politização do estético o fascismo se torna moeda comum. O controle de corpos e almas toma conta da praça, do ambiente público, e constitui-se em mercado. Tudo se dá, no fundo, e às vezes na mais rasa superfície, por pura mercantilização. Quem domina discursos exerce controle e o distribui segundo as regras do mercado. Aqui estética se degenera em cosmética. Em “blush” que cobre o rosto do totalitarismo, fazendo-o parecer correção moral, zelo religioso e outras personas.
Quando os múltiplos olhares sobre a realidade são cegados por excesso de “rímel”, a liberdade é deformada e, surge a monstruosidade do pensamento único. No contexto de pluralidade no qual estamos inseridos, a diversidade é para alguns um desafio à autoridade retórica. É preciso silenciar as diferenças para que a verdade resplandeça em seu maior fulgor! Assim se organiza um bom discurso cosmético. Entre outros agentes promotores de tal discurso está certa expressão religiosa nostálgica de épocas de cristandade.
A pior expressão da cosmética é aquela que a religião produz. E pior exatamente porque disfarça a retórica com o manto do sagrado, torna o que é mais raso expressão do metafísico. “Deus é quem quer assim. Eu só sou seu agente sobre o qual recai a tarefa do controle do discurso”. Nesse momento tudo é matéria a ser enquadrada, enformada, definida. Nos últimos dias o alvo de tal investida sacra é a arte. O que ela pode e não pode expressar? Que textualidades ela pode tematizar? Que autonomia ela tem em face ao discurso modelar?
Isso se deu há pouco tempo com a demonização do livro “Enquanto o sono não vem”, de José Mauro Brant. O MEC recolheu milhares de livros das escolas públicas em função da pressão retórica sobre bons costumes. No livro, o conto “A triste história de Eredegalda” foi tomado como um incentivo ao incesto. O estético politizado decaiu em mera cosmética. A incapacidade de perceber a natureza poiética da obra ficcional é espantosa, não somente por sua superficialidade retórica, mas, sobretudo, porque se transforma em modelo de espiritualidade que torna o retórico num portador da palavra divina.
Agora a questão é a censura da exposição “Queermuseu” instalada no Santander Cultural. Os argumentos são muitos: ofensa a símbolos religiosos, apologias a esta ou aquela prática sexual, ataque aos bons costumes… Mais uma vez a politização da arte. Mais uma vez a negação da possibilidade de percepção da realidade a partir de lugares distintos. Mais uma vez um ataque à alteridade que se afirma no olhar estético dos muitos sujeitos que compõe uma sociedade plural.
A arte é expressão autônoma do espírito humano. E assim precisa ser considerada. Quando o outro fala, fala de si, de sua percepção. Não preciso tomar o olhar alheio como ameaça ao meu olhar, como ataque à minha forma de perceber a realidade. Não é preciso gostar. Mas é urgente preservar a alteridade de tais expressões. Até porque, à medida que afirmo a alteridade alheia, é a minha mesmo que estou afirmando. Quando defendemos uma sociedade que se oriente por valores evangélicos queremos ser respeitados em nossa visão de mundo. Apoiar censura é permitir que ela mesma possa ser aplicada sobre nós em algum momento.
A arte tem uma enorme capacidade de interpretar mais profundamente os textos que narram a vida em seus mais diferentes matizes. Tomo como exemplo uma obra da exposição anteriormente citada. Essa imagem propõe uma exegese (im)pertinente do conceito de redenção, ao menos como aparece no hino cristológico de Paulo na carta aos Colossenses.
Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis (…) Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas (…) Agora ele os reconciliou pelo corpo físico de Cristo, mediante a morte, para apresentá-los diante dele livres de qualquer acusação. [Colossenses 1:15-22]
Ou ainda o texto poético da crentíssima Adélia Prado:
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
é próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
O olhar da religião poderá não perceber estes mesmos contornos ao contemplar o mistério da redenção. Isso é absolutamente legítimo. Contudo, outros olhares são possíveis, exatamente porque outras pessoas são possíveis, porque outros mundos são possíveis. Afirmar o princípio da alteridade é tomar com seriedade o lugar da estética como espaço da afirmação ética. Não perceber isso é reduzir tudo a mera politização. É assumir, como modo de ser, a pueril superficialidade cosmética.
Nota importante aos cosmetas de plantão:
Essa é uma das mais antigas representações artístico-religiosas de Javé, o nosso Deus. A arte como intérprete da fé (da fé circunscrita a determinado momento da história e da cultura).
– Yahweh representado em inscrição hebraica (século VIII a.C.).