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Jonas, o primeiro teólogo da libertação palestino

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Jonas, o primeiro teólogo da libertação palestino

Como eu comecei a ler a Bíblia quando garoto, bem antes de ir para o seminário estudar teologia, já estava firmado no conhecimento bíblico. Meu pai me treinara para ler uma vez ao ano todo o Antigo Testamento e duas vezes o Novo Testamento, como ele costumava fazer. Ele dizia que isso era central para minha fé.

O livro de Gênesis e partes do Êxodo eram divertidas. Levítico e Deuteronômio eram maçantes, mas parte do livro de Números continha histórias que eu gostava. As histórias dos livros de Josué e Juízes eram interessantes, mas quando chegava aos profetas tinha que ler página após página de informação que não desfrutava e não podia entender. Em meio ao que parecia para mim terra árida, chegava ao oásis de Jonas, que considerava refrescante.

O livro de Jonas compreende quatro capítulos curtos. É uma bonita história; simples o bastante para as crianças. Na superfície, não parece tão profundo quanto Isaías ou Jeremias, mas eu sentia que era uma história que podia compreender, uma narrativa leve colocada no meio de uma série de livros proféticos que eram prolixos e tediosos. Minha imaginação juvenil corria solta quando pensava em Jonas no meio de uma tempestade no mar e na barriga de uma baleia.

Quando fiquei mais velho, a parte mais difícil da história era o grande peixe. A história era realmente verdadeira? Eu fui criado acreditando que se estava escrito na Bíblia, devia ser verdade, e literalmente. Afinal, Deus é capaz de fazer qualquer coisa. Eu me lembro de discutir esta história com meus amigos. Se alguém duvidava da historicidade da história eu saltava em defesa da Bíblia. Sentia que era meu dever como cristão. Ainda me lembro uma vez lendo uma história no jornal que sugeria que uma pessoa podia realmente sobreviver na barriga de uma baleia. Eu recortei e mostrei aos meus amigos para provar a credibilidade da Bíblia. Muitas histórias similares têm circulado através da história, especialmente entre pessoas que vivem do mar, de baleias e monstros marinhos engolindo pessoas e cuspindo-as vivas; algumas pessoas têm visto estas histórias como evidências para a historicidade de Jonas.

A História

A interpretação tradicional do livro centra normalmente na missão que Deus deu a Jonas de pregar arrependimento ao povo de Nínive e a maneira como Jonas desobedeceu e fugiu da face de Deus. O livro de Jonas tem servido como um recurso poderoso para missões interculturais, que é como a tradição da igreja tem olhado esta história.

A erudição bíblica moderna interpreta o livro de Jonas como uma metáfora, similar às parábolas de Jesus no Novo Testamento. Seu significado mais profundo enfatiza o cuidado e o interesse de Deus pelos judeus, mas igualmente pelos não-judeus — em outras palavras, a natureza inclusiva de Deus. Eu interpretei a história de Jonas nesse sentido em meu primeiro livro (1). Desde então, depois de muita reflexão, eu passei a compreender o texto de um modo mais radical e revolucionário. Minha experiência tem sido como aquela do homem cego que gritava após ser curado por Jesus — “Eu era cego mas agora eu posso ver”. Eu senti esta mesma emoção e encantamento ao sentir o poder da história de Jonas no contexto da teologia do Antigo Testamento e sua relevância para o conflito atual entre Israel e Palestina.

A história de Jonas pode ser um recurso significativo para o estabelecimento da paz e para se chegar a uma solução para o conflito atual no Oriente Médio. Para mim, o escritor de Jonas é o primeiro teólogo da libertação palestino, alguém que escreveu o maior livro do Antigo Testamento. Embora Jonas reflita fielmente o engenho e clima da teologia do Antigo Testamento, sua teologia também se aproxima bastante da do Novo Testamento.

Graças à religião hebraica, o livro foi conservado e incluído no cânone. Com sua profunda crítica ao nacionalismo estreito da época, como este livro sobreviveu? Os judeus realmente entenderam a natureza revolucionária de sua mensagem? Ou era uma história tão atrativa que a tradição não poderia descartá-la?

Teologia de Deus

No livro de Jonas, Deus é o único Deus, o criador do mundo e o Senhor da história: “o Deus dos céus, que fez o mar e a terra”.(1:9). Deus é soberano sobre tudo. Deus não está limitado a um país ou a algum lugar em particular; ninguém pode se esconder de Deus. Jonas descobriu que Deus estava nas profundezas do mar. De fato, o mar e tudo o que nele há, assim como toda a natureza, obedecem a Deus, seu criador e soberano. Para Jonas, Deus é um “Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor” (4.2). Deus é libertador e salvador do povo pecador e oprimido, e um Deus de justiça que demanda vida reta de todas as pessoas.

Quando Deus toma a iniciativa de agir no mundo, ele convida todas os que erram e cometem o mal ao arrependimento e busca sua salvação e libertação. Deus não mostra parcialidade para com qualquer cultura, nação, raça ou grupo étnico. O amor de Deus abarca toda a humanidade, não apenas o povo de Jonas. Deus ouve a todo que se volta para ele em oração sincera. Na história de Jonas, até os marujos pagãos se voltam para Deus em oração (1.16). A história de Jonas é uma descrição de Deus que critica toda compreensão nacionalista e estreita.

Teologia do Povo de Deus

A essência da história de Jonas é que o povo de Deus não é restrito a Israel. Aqueles que falam do povo escolhido de Deus e limitam-no a Israel tem uma teologia inadequada do povo de Deus. Não é suficiente acreditar que Deus cuida e mostra compaixão por outros povos “dignos”: o amor, cuidado e compaixão de Deus se estende mesmo aos assírios, os inimigos mais terríveis de Israel. Importante recordar que a destruição do reino do Norte aconteceu em 722 a.C, pelas mãos dos assírios. De sua base de poder em Nínive, a capital, os assírios destruíram Israel e capturaram a elite dispersando-a por todo seu império. Samaria foi completamente devastada. A história de Jonas anuncia provocativamente que mesmo os selvagens, feios, brutais e asquerosos chamados assírios estavam sob o cuidado e acolhimento de um Deus que mostra preocupação com seu bem-estar.

O autor de Jonas abordou uma das questões mais difíceis que enfrentava a comunidade. De muitas maneiras, sua mensagem buscava libertar Deus da teologia estreita da época e libertar seu povo, os israelitas, de uma mentalidade tribal que produzia arrogância, soberba e presunção. Eles necessitavam acordar para o fato de que Deus é o Deus de todos e que eles constituíam uma pequena parte do povo de Deus. Deus não podia ser restringido por uma teologia estreita e limitada.

Teologia da Terra

A teologia da terra apresentada no livro de Jonas é tão revolucionária quanto a teologia de Deus e do povo de Deus. A atividade e presença de Deus não estão limitadas a uma terra. Deus não pode ser confinado aos limites da terra de Israel. Na verdade, o exílio estendeu o conceito de terra de muita gente. Não importa onde se viva, ainda estamos na presença de Deus. Alguns profetas pós-exílicos expressaram esta visão universal, e mesmo antes do exílio o profeta Amós expressou a preocupação de Deus por outras terras e outros povos.

“Vocês, israelitas, não são para mim melhores do que os etíopes”, declara o SENHOR. “Eu tirei Israel do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir. (Amós 9:7)

No conflito contemporâneo sobre a terra, as pessoas devem entender que uma teologia bíblica abrangente da terra é inclusiva, não exclusivista. A mensagem dos dois testamentos juntas se move claramente para maior inclusividade. Aqueles que ainda mantêm uma visão exclusivista devem ser instados a seguir adiante. Quando apelos são feitos à lei internacional ou a resoluções das Nações Unidas em nome dos direitos políticos e humanos dos palestinos e a resposta é que “Nós estamos interessados nos direitos divinos, não nos direitos humanos”, a referência é a uma interpretação exclusivista da Bíblia que dá ao povo judeu um direito prioritário e mais elevado. Tal teologia não se presta à paz e deve ser rejeitada em bases teológicas e exegéticas.

Qual a relevância de Jonas para o conflito palestino-israelense?

A mensagem teológica do livro de Jonas é tão profunda que muitas pessoas perdem seu impacto devido à simplicidade da narrativa. Parece tão prosaica e cômica, às vezes, que muitos podem perder suas implicações radicais. Seu impacto é similar ao uso das parábolas de Jesus: como ele lembra seus discípulos, “A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas, Para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados.” (Marcos 4:11-12). O fim cínico desta citação de Isaías descreve a apatia e dureza de coração do povo que não tinha interesse no desafio ao arrependimento e no voltar-se para Deus.

A história de Jonas é lida a cada ano no dia de Yom Kipur, o Dia da Expiação, nas sinagogas de todo o mundo. Aparentemente, os judeus percebem-na como a única história na Bíblia hebraica na qual Deus estende perdão a uma comunidade inteira. Os judeus compreendem hoje a natureza revolucionária da história ou suas implicações para o Israel moderno e seu relacionamento com os palestinos? Como eles entendem e respondem à sua mensagem hoje? Além disso, como os cristãos sionistas, a maioria dos quais fundamentalistas que certamente conhecem a história de Jonas, interpretam e compreendem a teologia de Deus, do povo de Deus e da terra?

A mensagem de Jonas tem grande relevância para aqueles de nós que vivem em Israel-Palestina já que ela se dirige às questões religiosas e teológicas centrais subjacentes ao conflito. Muitos judeus religiosos continuam a se ver em uma relação especial com Deus: eles são o povo escolhido de Deus, Deus pertence apenas a eles, e toda a terra da Palestina é seu patrimônio eterno da parte de Deus. Eles são relutantes a mesmo considerar a ideia de compartilhar a terra com os palestinos. Essencialmente, o que o autor do livro de Jonas estava combatendo no final do 4o século a.C ainda constituem os principais problemas teológicos que nós palestinos enfrentamos no conflito hoje. Em nome de uma teologia tribal antiquada que ainda insiste num Deus judeu particularizado, dos privilégios de um povo de Deus especial e de um direito excepcional judeu a toda a terra da Palestina, os palestinos são oprimidos e desumanizados, e sua reivindicação da terra na qual muitas famílias têm vivido por séculos é negada.

Os cristãos sionistas que têm colocado o povo judeu no centro do plano de Deus para a história são cúmplices. Ao invés de ver Cristo no centro do propósito de Deus para a história, eles veem Israel. Embora tenha sido o sionismo secular que provocou a fundação do Estado de Israel em 1948, uma mudança gradual começou a ocorrer depois da guerra de 1967 quando mais judeus religiosos conservadores cresceram no poder. Dez anos depois da guerra, eles venceram a eleição nacional e assumiram a liderança política em Israel através do partido de direita Likud. Esta mudança foi o começo de um relacionamento novo e especial entre o governo de Israel e os cristãos fundamentalistas nos Estados Unidos.

Hoje, uma forte aliança nos Estados Unidos reúne sionistas judeus e cristãos com os políticos conservadores de direita em Washington. Juntos, eles ditam a política externa americana no Oriente Médio e fazem lobby pela supremacia financeira, política e militar de Israel. Alguns fundamentalistas cristãos têm, em última instância, uma agenda teológica antijudaica — eles acreditam que no fim da história dois terços dos judeus serão massacrados e o remanescente se converterá à fé cristã. Obviamente que os judeus não gostam desse cenário mas o toleram diante de um objetivo maior: eles necessitam do apoio incondicional deste milhões de cristãos fundamentalistas comprometidos com o bem-estar do Estado de Israel e do povo judeu, aconteça o que acontecer.

Extremistas religiosos judeus e sionistas cristãos advogam pela expulsão e transferência dos palestinos da Palestina para a Jordânia. Esta forma de limpeza étnica através da aniquilação ou expulsão dos povos autóctones é, na verdade, sugerido nas escrituras hebraicas, como no livro de Números, quando Deus dá a Moisés instruções para atravessar os israelitas: “Diga aos israelitas: Quando vocês atravessarem o Jordão para entrar em Canaã, expulsem da frente de vocês todos os habitantes da terra. Destruam todas as imagens esculpidas e todos os ídolos fundidos, e derrubem todos os altares idólatras deles. Apoderem-se da terra e instalem-se nela, pois eu lhes dei a terra para que dela tomem posse” (33.51-53) (2). Como está amplamente claro, as justificativas teológicas de uma posição como esta são exatamente o que o autor de Jonas condenou séculos antes. A mensagem de Jonas é tão relevante hoje como foi na época.

Para os cristãos, a mensagem teológica de Jonas pode servir como uma ponte que liga o Antigo Testamento com o Novo. O Novo Testamento, na verdade, intensifica a mensagem básica de Jonas. Em cada oportunidade, Jesus tentou romper com os conceitos estreitos e exclusivistas de Deus, do povo de Deus e da terra. Deus é um Deus que ama e cuida de todos, um Deus que santificou o mundo todo por meio da criação, encarnação e redenção. É errado restringir o amor de Deus. As crenças dos sionistas judeus e cristãos traem a natureza, o caráter e o conhecimento de Deus.

O livro de Jonas refuta e condena todas as teologias exclusivistas, restritivas ou estreitas. Embora escrito cerca de dois mil anos atrás, sua mensagem continua relevante hoje. A mensagem de Jonas, na realidade, é apaixonante e libertadora, e provê um clímax adequado para a teologia do Antigo Testamento. Para nós cristãos palestinos, é nossa tábua de salvação teológica e espiritual. Obrigado, Deus, por Jonas!

Notas

(1) ATEEK, Naim Stifan. Justice, and Only Justice: A Palestinian Liberation Theology. Maryknoll: Orbis Books, 1989.

(2) Outras referências de expulsão ou destruição dos povos da terra podem ser encontradas em Deuteronômio 7:1-2; 9:1-3; 20:16-17; Josué 6:21. Ver também Alexander, T. Desmond. Beyond Borders: the wider dimension of the land, in: Johnston, P. & Walker, P.(eds) The Land of Promise: Biblical, Theological, and Contemporary Perspectives. Downers Grove: IVP, 2000.

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