O papel dos cristãos que apoiam a comunidade LGBTI
[De IHU Online]
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Cresci numa igreja fundamentalista e minúscula, onde me diziam todo domingo que homossexuais eram criaturas do mal. A voz do pastor tremia de raiva quando ele comparava gays a pedófilos. Até aquele ponto eu já sabia que era lésbica, mas, quando pensava em mulheres, imediatamente suprimia esses pensamentos – porém não antes de ser tomada por uma onda de terror.
“Vou me interessar por meninos quando entrar na faculdade”, eu repetia para mim mesma. “Vou me interessar por meninos quando me formar. Logo mais me sentirei normal”.
Por mais que eu tentasse, o desejo heterossexual nunca se materializou em mim, e isso fazia com que eu me sentisse isolada e sozinha. Quando comecei a sair com mulheres, tinha frequentes ataques de pânico e sentia náuseas tão fortes que vomitava várias vezes por semana.
Desde que saí do armário, entendi a importância de contar minha história e de fazê-la com tanta frequência que agora as palavras saem da minha boca com facilidade. Conto minha história porque quero que as pessoas saibam o mal que a religião pode fazer. Quero que as pessoas não sintam o mesmo que eu. Mas, toda vez que compartilho minha experiência, sempre ouço uma resposta: “Sinto muito por você, mas isso não é o cristianismo verdadeiro.”
Embora minha história de abuso religioso seja somente minha, ela não é única. Na realidade, quase todos os meus amigos que são LGBTI ouviram alguma variação dessa frase. No meu caso, apesar de tê-la ouvido várias vezes a esta altura, ela continua me magoando. Dizer isso para quem acabou de contar sua história é desviar o olhar enquanto as pessoas da sua fé abusam uma comunidade que já é marginalizada.
O cristianismo é perigoso para quem é LGBTI. Fingir o contrário é ignorância, na melhor das hipóteses. Segundo a agência de notícias Reuters, jovens LGBTI que cresceram em famílias religiosas são 52% mais propensos a pensar em suicídio. Um estudo da National Gay and Lesbian Task Force indica que 40% dos jovens sem teto se identificam como LGBTI. Outro estudo, do Albert Kennedy Trust, indica que 45% desses jovens sem teto não têm onde morar porque foram rejeitados por suas famílias.
Conversei recentemente com uma amiga cristã sobre este assunto. Ela disse ficar horrorizada com o tratamento dispensado pelos cristãos à comunidade LGBTI. Também admitiu ter usado a frase “sinto muito por você…” e explicou que queria deixar claro para os amigos LGBTI que ela é uma pessoa segura.
Aprecio a intenção, mas essa frase nunca me fez me sentir segura. Na realidade, essas palavras só me fazem me sentir ainda pior. Se as intenções são puras, porque essa frase machuca tanto? Porque a formulação é manipulativa. Como um cristão “de verdade” jamais seria capaz de tal violência, como a experiência de trauma religioso poderia ser verdadeira? É quase uma forma de gaslighting (termo feminista usado nos Estados Unidos para indicar quando uma mulher é manipulada mentalmente): “Um cristão ‘de verdade’ jamais faria uma coisas dessas com você. Tem certeza de que isso aconteceu contigo?”
Quando contamos nossas histórias de sofrimento para os cristãos, é compreensível que eles possam ficar na defensiva. É compreensível que os cristãos sintam culpa porque sua religião magoou tanta gente. Mas recusar-se a aceitar a responsabilidade, usando esse tipo de desculpa furada, não é a solução.
Tentar falar mais alto que nós, dizendo que “o cristianismo real não é assim”, significa silenciar as histórias da população LGBTI. E isso só serve para empoderar ainda mais os cristãos homofóbicos que literalmente nos silenciam com leis e políticas. Em vez de tentar sobrepujar nossa voz, os cristãos que querem afirmar a população LGBTI deveriam ouvir e amplificar nossa voz.
A frase é condescendente e acusatória. Implica que quem é LGBTI deveria ter continuado na igreja – que deveríamos ter nos esforçado mais para encontrar o “cristianismo de verdade”.
Quem cresceu na igreja, como eu, sabe exatamente o que os cristãos mainstream pensam dos LGBTI. Durante anos tentamos nos “curar com orações”. Muitos gays foram enviados a terapias de conversão. Muitos viraram sem-teto. Sugerir que não nos esforçamos para encontrar o “cristianismo de verdade” é inconcebível. Para muitos, a escolha de abandonar a igreja é questão de vida ou morte.
Para quem é cristão e quer demonstrar aos amigos LGBTI que é uma pessoa segura, há outras maneiras de fazê-lo sem recorrer a esse clichê. Em primeiro lugar, afirmar 100% de nossas identidades é crucial. Estamos acostumados aos cristãos homofóbicos que lançam mão do velho “ame o pecador; odeie o pecado”. É imperativo ouvir que todos os aspectos das nossas pessoas são amados e válidos. Não consigo me sentir segura com alguém que acha que vou para o inferno porque minha parceira é mulher.
Em segundo lugar, é importante reconhecer a dor que o cristianismo infligiu nas comunidades LGBTI. Em vez de expressar uma culpa vazia e esperar que os gays te assegurem de que você não é homofóbico como os outros cristãos, um pedido de desculpas real faz toda a diferença.
E, finalmente, os cristãos que querem afirmar os gays devem cobrar a responsabilidade dos outros cristãos. Precisamos ver nossos aliados cisgêneros e heterossexuais prometendo nos defender – e cumprindo essa promessa.
Como tantos amigos que cresceram em ambientes religiosos tóxicos, faço terapia. Durante décadas me disseram que meu corpo era perigoso, que meus desejos eram do mal, que meu âmago era pecador. O cristianismo me fez tão mal que provavelmente passarei o resto da minha vida lidando com isso. A terapia ajudou a reprogramar meu cérebro e a acreditar que sou suficiente.
Apesar de tudo, ainda acredito que a religião possa ser algo belo. Mas espero não ouvir mais de alguns cristãos que eles “não são como os outros”. Sou grata pelos cristãos que se educam e entendem o mal que o cristianismo fez para a comunidade LGBTI. Sou grata pelos cristãos que ouvem nossas histórias e amplificam nossas vozes. Sou grata pelos cristãos que cobram responsabilidade dos outros cristãos. Sou grata pelos cristãos que me oferecem amizades seguras e leais.
Apesar de não ser mais uma pessoa religiosa, os cristãos que afirmam a comunidade LGBTI têm um papel crucial neste momento da história. Este mês, a Suprema Corte começou a analisar um caso sobre as proteções estendidas a queers e transgêneros no ambiente de trabalho.
Com um plenário conservador e cristão, é possível que a Suprema Corte decida que a população LGBTI possa ser alvo de discriminação no trabalho. Em um país dominado por cristãos evangélicos e que tenta marginalizar homossexuais diariamente, o papel dos cristãos que afirmam a comunidade LGBTI nunca foi tão importante.
* Publicado originalmente em Huffington Post Brasil