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Quando o corpo do outro nos solicita
Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste
Senti ou não?Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve![…]Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.(Fernando Pessoa – Foi um momento)
O tato é o sentido que exige proximidade, que não permite nenhuma teorização que se possa fazer à distância dos olhares ou da audição. Tocar é comprometer-se com o corpo do outro e com tudo aquilo que ele representa: dores, alegrias, prazeres, misérias, vida e morte. Vamos ver como Jesus toca e é tocado por pessoas em circunstâncias de morte e falta de dignidade. Pelo toque o Mestre dos sentidos recobra a uns a vida e, a todos, a dignidade.
E estava ali certa mulher que havia doze anos vinha sofrendo de hemorragia. Ela padecera muito sob o cuidado de vários médicos e gastara tudo o que tinha, mas, em vez de melhorar, piorava. Quando ouviu falar de Jesus, chegou por trás dele, no meio da multidão, e tocou em seu manto, porque pensava: “Se eu tão-somente tocar em seu manto, ficarei curada”. Imediatamente cessou sua hemorragia e ela sentiu em seu corpo que estava livre do seu sofrimento. No mesmo instante, Jesus percebeu que dele havia saído poder, virou-se para a multidão e perguntou: “Quem tocou em meu manto?” Responderam os seus discípulos: “Vês a multidão aglomerada ao teu redor e ainda perguntas: ‘Quem tocou em mim?‘ “Mas Jesus continuou olhando ao seu redor para ver quem tinha feito aquilo. Então a mulher, sabendo o que lhe tinha acontecido, aproximou-se, prostrou-se aos seus pés e, tremendo de medo, contou-lhe toda a verdade. Então ele lhe disse: “Filha, a sua fé a curou! Vá em paz e fique livre do seu sofrimento”. (Mc 5.25-34).
Em primeiro lugar, vamos nos deter no episódio da mulher com fluxo de sangue e, na próxima lição, partilharemos o drama vivido por um dirigente de certa sinagoga que viu sua filha adoecer e morrer (Mc 5.21-24; 35-43). Nos dois episódios, porém, veremos que a dignidade e a vida chegam àquelas pessoas pelo toque, pela radical proximidade com Jesus. Quando aqueles corpos se encontram no compromisso afetivo representado pelo toque, uma novidade de vida surge para todos.
O sofrimento e a indiferença: dois lados de uma perversa moeda
Na sociedade e na religião, de ontem e de hoje, existem terríveis mecanismos de exclusão de pessoas que são marcadas por estigmas que não lhes permitem ter uma vida digna como a das demais pessoas. Um exemplo mais distante disso é o sistema de castas da Índia, onde um grupo da sociedade – constituído dos mais pobres – não pode ser tocado por ninguém, sob pena de se tornarem impuros aqueles que ousarem os tocar. Não precisamos, porém, ir tão longe para ver casos como esse. Nossa sociedade e também nossa religião elegem pessoas e as estigmatizam com a marca da impureza. A partir daí essas pessoas se tornam indignas de nossa proximidade, de nosso toque e, por isso mesmo, do nosso amor. Quando negamos a proximidade de nossos corpos e nossos toques a certas pessoas, estamos reproduzindo um pouco daquilo que aconteceu com aquela mulher que vivia há muito sofrendo de hemorragia. Como diz a poetisa:
O amor quer abraçar e não pode. A multidão em volta, com seus olhos cediços, põe caco de vidro no muro para o amor desistir. (Adélia Prado – Corridinho)
Na cultura e religião dos judeus nos dias de Jesus uma mulher com fluxo de sangue era impura, isso nos revela Levítico 15.19: “Quando uma mulher tiver fluxo de sangue que sai do corpo, a impureza da sua menstruação durará sete dias, e quem nela tocar ficará impuro até à tarde”. Se levarmos em consideração o tempo que ela estava com aquela hemorragia entenderemos melhor a condição de abandono que ela vinha experimentando, sobretudo, nos últimos 12 anos. Naquele momento estava ali uma mulher condenada ao sofrimento e à indiferença que sua própria religião e cultura a tinham destinado. Aquela realidade, porém, estava próxima de seu fim; um toque, e tudo o que ele representa, iria mudar a sorte daquela mulher. Um toque, um estar perto, um gesto de aproximação, pode romper um sistema de indiferença e preconceito, tanto aquele da mulher hemorrágica, como o que ainda hoje se vive na Índia e, também os que nós criamos em nome de Deus e da religião. Apenas um toque! “Foi um momento, o em que pousaste sobre o meu braço, num movimento mais de cansaço que pensamento, a tua mão e a retiraste”.
Atraída pelo ouvir, mas curada por um toque
A cura daquela mulher começou a acontecer quando ela ouviu falar do Mestre. Isso se deu, porém, a certa distância. Foi, contudo, no encontro dos corpos, no toque que transmite afeto, que sua vida foi plenamente restaurada. Aqui há uma lição para nós. Não adianta apostarmos todos os nossos esforços na comunicação verbal do evangelho. Isso certamente é importante, mas como início de um processo que precisa ganhar a profundidade do afeto e isso só acontece quando nos dispomos à proximidade das pessoas, sobretudo daquelas que estão postas à margem da vida. Ao ouvir contar sobre Jesus ela sentiu-se atraída por Ele, essa atração a conduziu a tocá-lo, mas o toque só aconteceu porque Jesus estava disponível.
Foi a mulher quem instaurou o contato com o corpo são de Jesus. Sua fé se traduziu num movimento irresistível de encontro afetivo e curador. Do corpo de Jesus, isto é, de sua disponibilidade ao afeto e a superação dos preconceitos, emana o dinamismo salvífico capaz de restaurar as pessoas. Uma coisa já podemos concluir a partir desse texto: a fé que salva acontece não somente no domínio racional de certos conteúdos doutrinários, mas no movimento afetivo dos corpos (dos discípulos com o Mestre) que se tocam e se disponibilizam ao amor que tudo supera. “Mas lembro e sinto ainda qualquer memória fixa e corpórea, onde pousaste a mão que teve qualquer sentido incompreendido. Mas tão de leve”.
A disponibilidade de tocar e ser tocado retira da margem os que sofrem os preconceitos e a indiferença
Parecia que tudo já havia sido feito. Porém, o desfecho daquele encontro profundo e afetivo ainda não tinha acontecido. Jesus sentiu aquele toque. Ele percebeu que algo definitivo havia acontecido em meio aquela multidão que o comprimia. Embora os discípulos estranhem a pergunta do Mestre sobre quem o havia tocado, este não confundia os atropelos de uma multidão com um toque de quem carece de atenção e afeto.
Aquela mulher, impedida de ser em sua própria identidade feminina e, além disso, marginalizada pelas leis e costumes de seu povo, não podia ser deixada ao anonimato. Ela cai aos pés do Mestre e se ergue como uma nova mulher. Jesus a chama de filha, invertendo de forma radical sua condição de exclusão, marginalização e esterilidade. Depois de um toque Ele a despede alguém pleno de dignidade. Isso é salvação. “Vá em paz e fique livre do seu sofrimento”. “Como se tu, sem o querer, em mim tocasses para dizer qualquer mistério, súbito e etéreo, que nem soubesses que tinha ser”.