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Sopro de Glória

Sopro de Glória

O texto escolhido para celebrar Pentecostes neste domingo está em Atos 2.1-4.

“Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.”

Queria que fizéssemos o exercício de tentar ler os nossos dias de isolamento a partir da experiência do Pentecostes.

  1. Qual é a língua da pandemia? Já pensaram quantas palavras novas estão em nosso vocabulário? Pandemia, novo coronavírus, COVID-19, cloroquina, quarentena, isolamento social. Essas são algumas dentre tantas outras palavras que não estavam correntemente em nosso vocabulário. O Pentecostes do vírus!
  2. Isso sem mencionar a explosão discursiva que tem se dado em torno da doença. A disputa ideológica sobre o vírus. Pode – não pode! Fica em casa – o Brasil não pode parar! Use a cloroquina – a cloroquina pode matar! São disputas que se dão no campo linguístico, e não sejamos inocentes: a língua opera a ideologia. O Pentecostes das ideologias!
  3. Ainda a título de exemplo, vejam a importância das redes sociais nesse período de isolamento. Já pensaram no papel da tecnologia como mediadora de nossas relações? E no papel da tecnologia na manutenção da existência de nossas comunidades? As redes sociais são novas vozes em nosso meio. O Pentecostes das tecnologias!

 Meu objetivo com esses exemplos é nos ajudar a perceber o Pentecostes como um fenômeno vivo, no qual o surgimento de novas vozes se dá em todo tempo. Infelizmente, novas vozes implicam em novos silenciamentos. Na disputa sobre quem tem direito a voz, a mão violenta do “cala a boca” ainda tortura as vidas subalternizadas. Quais são os números da pandemia? Um vírus que voou de classe A, hoje mata quem muito provavelmente nunca teria o direito de voar. A morte emudece. A morte cala.

“Que experiência é essa, meu Deus? Descem sobre nós línguas como de fogo, mas ainda assim eles não nos ouvem”. Diante da explosão discursiva e da luta ideológica que se trava entre o dizer e o emudecer, eu precisei reviver meu Pentecostes. Que o Espírito está aí, ninguém tem dúvida. O Espírito que desce sobre nós, o Espírito da Verdade. A tão amada Ruah, sopro, vento de vida em nós. Mas, como comunicar o Espírito? Como permitir que Ela fale em e por nós em um sistema-mundo de projetos sistêmicos de silenciamentos?

Vejam que meu exercício teológico aqui é pensar o Espírito como linguagem. Por isso, retomo a experiência narrada pelo texto bíblico. “Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimirem”. A Bíblia é um livro de insistências. Um Deus que insiste em amar, um povo que insiste em não se calar. A experiência de Pentecostes é uma experiência de ruptura com o silenciamento. É preciso falar.

Meus dias de isolamento social têm sido dias pessoais de muita escuta, mas também de muito a dizer. Acabei de terminar um curso sobre Queer of Colour, que é uma corrente teórica de crítica ao Queer por meio de fundamentos decoloniais. Nesse percurso, me deparei mais uma vez com Gloria Anzaldúa, uma teórica chicana, importantíssima para o feminismo chicano e para a Teoria Queer. A autora, poeta e ativista trabalhou conceitos importantes sobre a “fronteira”, porque justamente por ser chicana, ela não se considerava nem mexicana, nem norte-americana, estava ali, na fronteira, no assujeitamento, mas também no lugar onde criou novas possibilidades de ser no mundo.

Um dos textos de Gloria traduzidos para o português é “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. O texto é uma carta escrita em 1980, por isso o uso de “Terceiro Mundo”. Imagine como foi para mim receber o sopro do Espírito por meio desse texto. Em meio à minha busca por uma experiência de Pentecostes no meio do isolamento, ler esse texto meu deu sentido e direção. Gloria fala para o que chama de mulheres de cor, mulheres latinas, chicanas, e as incentiva a escrever. Hoje nosso contexto é outro. Ela escrevia com caneta e lápis, nós quase nada escrevemos. Nossa escrita é mais midiática, ou seja, mediada por computadores, internet, aplicativos. De qualquer forma, a mensagem de Gloria foi para mim, mensagem da Santa Ruah e espero que seja para você também. O convite de Gloria é que para que coloquemos nossas inquietações no papel (e lembre-se, aqui o papel pode ser compreendido como uma metáfora. Você pode colocar no papel, como também no computador, na live…). O clamor de Gloria é para que articulemos as nossas inquietações de maneira tal, que rompamos com os silenciamentos aos quais fomos submetidas. O silenciamento é acadêmico? Submeta novos artigos. O silenciamento é pastoral? Vá para os púlpitos. O silenciamento é doméstico? Converse com alguém. O silenciamento é estrutural? Falemos juntas!

Gloria confessa:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever”.

Para mim, essa é a narrativa pulsante de Atos dos Apóstolos. Um Pentecostes vivo e vivificador, que nos impulsiona a experimentar a nudez da honestidade. Revelando o que há de mais oculto em nós. Escreva, diz Gloria. Não se cale, diz o Espírito.

Os caminhos para nossa escrita, para nossa fala, são muitos. Ressalto aqui pelo menos dois: a denúncia e o anúncio. Precisamos de profetas e profetizas que denunciem o colapso da vida, mas também precisamos do anúncio que prenuncie a esperança de novas possibilidades relacionais, um mundo mais justo, solidário e sustentável.

Em um mundo de novo coronavírus, precisamos de um novo Pentecostes – sopro vivo que rompe os esquemas de silenciamento e promove novos diálogos. Reflita, escreva, dê nome às suas inquietações, coloque no papel, na tela, no áudio, mas não se cale. Imagine o poder de nossas vozes juntas? Esse é sopro de Pentecostes, o som ensurdecedor da esperança.

Jornalista e teóloga. Doutora em Ciências da Religião (PUC-MG). Pesquisa Religião e Política na perspectiva do ativismo queer. É clériga teóloga das Igrejas da Comunidade Metropolitana (ICM), em Belo Horizonte.

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