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A homofobia cordial

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A homofobia cordial

A homofobia cordial

[Por Murilo Araújo]

A homofobia cordial é a mais cruel de todas.

Recebi hoje um email extremamente desconcertante. Um menino, chamado Eduardo, me mandou uma mensagem enorme, contando a história dele, e falando da maneira como ele foi lidando com a própria sexualidade no curso da vida. Falou dos “trejeitos” que tinha na infância. Falou dos primeiros meninos com quem ficou na adolescência. Falou do modo como decidiu “seguir por esse caminho [da homossexualidade]”. Falou que sabia que não era um erro ter “nascido homossexual”.

Mas falou também de uma conversa que teve com um namorado logo após uma transa, em que os dois concluíram que aquilo que eles faziam era errado aos olhos de Deus — mesmo que, na época, eles não se importassem. Falou que provou das maiores delícias do mundo, mas que sabia que elas eram “vazias”. Falou que conhecia a palavra de Deus, e sabia que “Deus sempre detestou a pratica do homossexualismo”. Falou que não tinha culpa da sua “natureza pecaminosa”, mas que Jesus lhe oferecia “uma vida nova” e que ele tinha optado por parar de “satisfazer os desejos desenfreados”. Falou que teve um relacionamento sexual com uma garota. Falou que sabe que ainda tem atração por homens, mas que reconhece que o “amigo no meio das pernas foi feito pra se unir a uma mulher”. Falou que “tinha tudo pra dar errado”, mas que agora vê que tem “tudo pra dar certo”. Que “tudo é uma questão de escolha”, e ele escolheu “colocar Deus como prioridade”. Que Deus o elevou. E que o amor de Deus “é provado através de sacrifício”.

O que tinha de mais desconcertante no email é que cada palavra soava muito honesta, muito tranquila, muito amorosa. Era um email carregado de sinceridade e quase que de carinho mesmo. Ele realmente falava como se estivesse compartilhando — com muito contentamento — toda a evolução que teve, a fim de me mostrar que essa evolução seria possível pra mim também, contanto que eu me abrisse para esse tal desse “amor” desse deus que exige sacrifício. Ele sequer negava ou ignorava o próprio desejo. Em nenhum momento referiu-se a si mesmo como uma pessoa heterossexual (ou “ex-homossexual”). Mas parecia acreditar muito firmemente num caminho de transformação e mudança. “Ele me chamou pra algo maior”, dizia. E tudo o que estava ali no email, tudo que pra mim era muito MUITO controverso, muito questionável, tudo soava com um tom de emoção, de felicidade, de uma esperança que era — eu não consigo achar outra palavra — desconcertante. Pra mim aquilo tudo era de uma violência TÃO óbvia… e ele seguia falando daquilo como a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Eu fiquei horas, lendo e relendo o email, em silêncio, sem fazer a menor ideia de como reagir.

Longe de mim querer determinar o que eu acho que é de fato o melhor ou o pior pras pessoas, mas considerando a conjuntura da sociedade homofóbica que a gente tem, considerando o quanto essa cultura ainda é potente e pervasiva, especialmente no contexto das religiões cristãs, eu fico pensando: quantos milhões de discursos esse menino precisou escutar, repetidamente, pra se convencer com tanta veemência que uma castração tão grande de si mesmo seria o melhor caminho que ele poderia tomar na vida? Em que ponto da história desse menino um apagamento tão intenso de si tornou-se sinônimo da felicidade aparentemente mais plena?

A homofobia cordial é a mais cruel de todas.

É cruel porque faz isso. Ela faz a gente se odiar e se apagar, achando que é o melhor que podemos fazer por nós mesmos.

Eles reiteram sempre o discurso de que “amamos você”… mas sem nunca perderem de vista o discurso de que “abominamos suas práticas”. Eles querem dizer “não queremos que você saia do armário”, mas se revestem de um “ficamos preocupados com a sua segurança”. Eles nos dizem carinhosamente que “esses relacionamentos não vão te trazer felicidade”, enquanto escondem de nós que eles são os maiores culpados pela clandestinidade e pela estigmatização a que somos submetidos. Eles querem nos aprisionar num modelo, mas dizem que querem nos “libertar das prisões da carne”. Eles querem que a gente viva uma mentira, dizendo que estão nos mostrando a “Verdade”. Eles fazem a gente se odiar, mas nos olham sorrindo e nos abraçam dizendo que só querem o nosso bem. Eles provocam um sofrimento sem fim, mas nos fazem acreditar sem nenhuma dúvida que Deus se alegra com os nossos “sacrifícios”. E quando tudo está uma merda sem fim, eles ainda nos oferecem a recompensa de uma felicidade eterna numa vida futura, pra que a gente se iluda com um pouco de esperança — uma esperança que, a propósito, está muito distante da esperança anunciada no Evangelho.

A homofobia cordial é a mais cruel de todas.

É cruel porque nos desarma. Porque não vem revestida do ódio evidente do soco ou da lâmpada, esse ódio que é muito mais óbvio, esse ódio de que é muito mais fácil se defender. Ela vem revestida de afeto. De carinho, de gestos de “amor”. Como poderei chamar de “homofóbico” aquele padre ou pastor ou pai ou amigo que demonstra tanto carinho por mim? Como poderei reconhecer as violências no gesto dessa pessoa que se mostra tão disposta, tão carinhosa, tão amorosa? Como sentir que preciso me defender de alguém que só quer o meu bem, que só quer me aproximar de Deus, que só está lutando pela minha salvação?

E aí chega uma hora em que a gente até acredita, às vezes. Acredita tanto que se sente bem de verdade. É uma violência, é uma enganação sem tamanho, mas a gente perde a proporção disso porque se sente vitorioso e feliz, grato a Deus, grato a essa pessoa carinhosa que ajudou num caminho… de castração. A gente acredita tanto, que manda um email enorme e feliz para uma pessoa desconhecida, dizendo pra ela que se castrar assim deve ser o melhor caminho pra ela também.

Foi desconcertante.

E aí eu não consegui sentir nem raiva ou incômodo com o Eduardo. Nem me afetei pelas leituras fundamentalistas de alguns versículos da Bíblia que ele citou. E nada de ruim me ocorreu, a não ser um quê de tristeza, por saber que ele é só mais uma vítima dos discursos todos aos quais ele mesmo tentou me submeter — com a mesma postura amorosa, preocupada, esperançosa…

A mesma postura homofóbica… e a mesma postura cordial.

A homofobia cordial é a mais cruel de todas.
Porque ela faz com que a gente passe a vida aniquilando a si mesmo.
Sem perceber.

[Texto publicado originalmente em 21 de junho de 2016, no Facebook]

* Murilo Araújo é bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) e Mestre em Letras (Estudos Linguísticos) pela Universidade Federal de Viçosa. Desenvolve pesquisa sobre intersecções entre os marcadores identitários de gênero, sexualidade e religiosidade, investigando narrativas de vida de pessoas que se identificam como LGBT e católicas. É membro do coletivo Diversidade Católica (RJ), membro da coordenação nacional da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, e integrante da Rede Latino-americana de Teologias e Pastorais Queer. É criador de conteúdo, no canal “Muro Pequeno”, no YouTube, onde discute temas ligados às questões de gênero, sexualidade, raça, religiosidade e outros temas de relevância social.

O Evangélicxs pela Diversidade é uma rede que reúne pessoas LGBTI e aliadxs que se identificam como evangélicas e que entendem que a diversidade sexual e a identidade de gênero devem ser celebradas como expressões da fé e espiritualidade, e que independente do gênero ou sexualidade, as comunidades de fé podem ser um lugar seguro para todxs.

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