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De Martinho Lutero King, Jr.: às pastoras e pastores evangélicos brasileiros

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De Martinho Lutero King, Jr.: às pastoras e pastores evangélicos brasileiros

De Martinho Lutero King, Jr.: às pastoras e pastores evangélicos brasileiros

Assunto: 500 anos da Reforma

Prezadas irmãs e irmãos pastores evangélicos brasileiros,

Gostaria de começar esta carta lamentando nunca ter tido a oportunidade de visitar o país de vocês, amplamente conhecido como um país que possui um povo acolhedor e uma natureza exuberante. A confluência de colonizadores europeus e africanos escravizados, chegados à Turtle Island (como chamavam os povos originários a América do Norte) e à Abya Yala (para vocês desse lado do continente americano), é comum ao Brasil e aos Estados Unidos da América; me interessaria muito conhecer melhor a formação social e cultural que se construiu nesse país de dimensões continentais com a população negra mais expressiva fora da África, mas minha vida foi tomada há 49 anos atrás. Mas não lamento perder a vida tão cedo, aos 39 anos, pelo meu envolvimento com a causa dos direitos civis dos negros americanos. O sonho que compartilhei em tantas ocasiões nas marchas e protestos está sendo reimaginado em movimentos como Occupy Wall Street, Black Lives Matter, Fight For $15, 8M, Poor’s People Campaign, entre outros.

Ouvi dizer aqui numa roda de conversa com Erasmo Braga, Frida Vingren, Rubem Alves, João Pedro Teixeira, Joaquim Beato, Sarah Kalley e João Cândido que a comunidade dos que se reivindicam herdeiros dos movimentos de reforma a partir do século dezesseis já é bastante expressiva, e que entre eles nossos irmãos pentecostais, dentre os quais é considerável a origem afrodescendente, são maioria. Alegro-me que o protestantismo, com seus ideais de graça e liberdade, fundamentos da igualdade de todos e da dignidade humana, base dos Direitos Humanos, esteja alcançando a muitos nesse grande país.

Meu nome, originalmente Michael mas renomeado Martinho Lutero (Martin Luther, em inglês), é uma evocação da influência da Reforma na vida da minha família. Meu pai, Michael, numa viagem a Alemanha para participar da assembleia da Aliança Batista Mundial em 1934, acabou achando por bem homenagear o reformador alemão mudando seu próprio nome, para Martinho Lutero King, Sr. (Martin Luther King, Sr., em inglês), e também o meu, Martinho Lutero King, Jr (Martin Luther King, Jr., em inglês). Ele, levado pela minha avó Delia, converteu-se na sua juventude e tornou-se muito cedo pastor batista, já na década de 1920. Foi um grande exemplo para mim como pregador e pastor da Igreja Batista Ebenezer, em Atlanta, igreja que posteriormente eu também me tornaria pastor, ao lado de papai, de 1960 até ser assassinado em 1968.

Mas tenho que dizer, sobre a implantação do protestantismo nos Estados Unidos da América, que algo não deu muito certo quando as ideias da Reforma aportaram com os Pilgrim Fathers (calvinistas separatistas), no Mayflower, em 1620. Na Nova Inglaterra, eles buscavam um ambiente de liberdade e tolerância religiosa, mas mantiveram ideias colonialistas e racistas em relações a outros povos e grupos humanos. Assim, os povos originários foram escravizados e dizimados e negros africanos foram levados para as colônias, trabalhando dia e noite como escravos num sistema econômico explorador e injusto.

No final das contas, embora eles tenham estabelecido algo importante para as sociedades ocidentais e o experimento democrático, como a separação entre Estado e Religião, a liberdade de crença e uma igualdade formal perante a lei, os colonizadores europeus estabeleceram um tipo de supremacia branca cristã anglo-saxã (WASP-White Anglo-Saxon Protestant, como ficou conhecida), exterminando populações indígenas inteiras e escravizando africanos, tornando o racismo o pecado original dos Estados Unidos da América. O racismo se tornou parte constitutiva tanto da sociedade mais ampla, com muita violência e segregação racial, sustentada por atitudes pessoais e por forças estruturais, quanto (pasmem!) das relações entre os próprios crentes. Sim, é realmente lamentável ter que admitir que nem o poder do amor evangélico foi capaz de unir pessoas brancas e negras nos Estados Unidos. Já se repetiu à exaustão que o momento mais segregado da vida americana são as manhãs de domingo. [Lamentei saber aqui de Gilberto Freyre, um dos grandes sociólogos e intérpretes do Brasil, que ele se afastou do protestantismo ao observar a infame segregação racial e o racismo de nossos irmãos batistas enquanto esteve aqui nos anos 1920, estudando na Baylor University, no Texas].

Em 1727, em uma carta ao bispo de Londres os senhores de escravos diziam para apaziguar o ímpeto missionário de alguns: “o cristianismo, e a aceitação do evangelho, não produz a menor alteração na propriedade civil (…) a liberdade que o cristianismo dá é a liberdade da escravidão do pecado e de Satanás, do domínio da luxúria e paixões humanas e dos desejos desordenados; mas no tocante às suas condições exteriores, sejam elas quais forem, se escravos ou livres, se batizados e tornados cristãos, nada muda neles”. Por essa visão racista segregacionista os irmãos negros tiveram que se levantar e fundar comunidades de fé separadas, e já em 1794, o pastor Richard Allen fundou a Igreja Metodista Episcopal Africana (AME), a primeira denominação independente de pessoas negras nos Estados Unidos.

Houve também, é justo mencionar, cristãos e cristãs protestantes de diferentes denominações que se envolveram na causa antiescravagista, como o avivalista presbiteriano Charles Finney, a metodista Sojourner Truth e os quakers John Woolman e Lucretia Mott, o batista William Loyd Garrison. Mas, infelizmente, não foram muitos os que se destacaram; 200 anos de racismo brutal e outros 100 anos de segregação legal e discriminação deixou consequências nefastas para o relacionamento entre brancos e negros americanos. Sobre isso, eu dizia em 1961, na Conferência sobre Religião e Raça do Conselho Nacional de Igrejas dos EUA, para meus irmãos e irmãs que “A honestidade nos impele a admitir que as organizações religiosas na América não têm sido fiéis a sua missão profética sobre a questão da justiça racial. Em meio a uma nação cheia de animosidade racial, a Igreja bastante frequentemente tem se satisfeito a articular piedades irrelevantes e trivialidades farisaicas’’.

E também na Carta da Prisão de Birmingham, em 1963, dirigida a uma declaração de pastores e religiosos do Alabama, que acusavam nossa campanha naquela cidade de “insensata e inoportuna”, levantava a questão de como deveríamos nos arrepender não apenas pelas palavras e ações odiosas dos maus, como pelo silêncio surpreendente dos bons. E que as pessoas oprimidas não podem permanecer oprimidas para sempre. Como pastor evangélico, que ama a igreja, criado em seu seio, sustentado por suas bênçãos espirituais, tenho que dizer que a Igreja me desapontou nesse tema e a todos os meus irmãos e irmãs negras. Porque a Igreja se tornou uma superdefensora do status quo e as estruturas de poder, longe de serem perturbadas pela presença da igreja, são consoladas pela sanção silenciosa e muitas vezes audível.

Em relação ao Brasil, pelo que ouvi naquela roda de conversa composta de evangélicos que lutaram pela implantação do protestantismo e pela alma evangélica no seu testemunho e presença na igreja e na sociedade, lamento que a semente plantada por meus concidadãos missionários do Bible Belt sulista no século dezenove tenha sido de afastamento dos problemas concretos que também constituíram a nação brasileira desde seu passado colonial. Pelo que ouvi, a chaga do racismo foi também um dos pecados originais da formação sociocultural brasileira e continua, como na minha terra natal, a manter estruturas perversas de discriminação, violência e opressão sobre negros e negras, com muita dor e sofrimento cotidiano.

Meus irmãos e irmãs, o evangelho de nosso senhor Jesus Cristo é o chamado a sentir pela humanidade um amor totalmente abrangente e incondicional. E quando falo de amor não estou falando de uma alguma resposta frágil e emocional, estou falando de uma força que é o princípio unificador supremo da vida, é a chave que abre a porta da realidade última. Como disse o historiador britânico Arnold Toynbee, “O amor é a força definitiva que responde pela escolha redentora da vida e do bem contra a escolha destrutiva da morte e do mal. Por isso, em nosso rol de esperanças, a primeira deve ser a de que o amor tenha a última palavra”.

Esse chamado é também a promover uma genuína revolução de valores na sociedade na feroz urgência do agora. E este é o maior legado da Reforma e é a ele que devemos pagar o maior tributo. Entendo que nossas particularidades doutrinárias, descobertas por Lutero, Calvino, Zuínglio, Menno Simons ou Jacob Hutter, entre outros, foram importantes por recuperar ênfases bíblicas abandonadas ao longo da história mas, na medida em que um dos importantes lemas dos reformadores era Ecclesia reformata semper reformanda, não podemos perder de vista os desafios que a realidade nos coloca, a requerer respostas adequadas e urgentes, bíblica e teologicamente fundamentadas.

E aqui eu destacaria a forma como nossas igrejas, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, tem lidado com o racismo e a desigualdade racial, perdendo de vista que se não agirmos para criar a terra prometida da justiça racial, continuaremos sendo arrastados pelos longos, escuros e vergonhosos corredores do tempo, reservados àqueles que possuem poder sem compaixão, vigor sem moralidade e força sem visão.

Aprendi com meu pai, um dos pastores mais ativos que conheci na luta para promover justiça social e racial, que um/a pastor/a é capaz de articular todos os anseios e aspirações de um povo. Por isso, o/a pastor/a deve guardar um fogo em seus ossos e, sempre que a injustiça se revelar, ele/a deve se manifestar. Tal qual Amós, o/a pastor/a deve dizer: “Quando Deus fala, quem não profetizará?”. E novamente como Amós, deve dizer: “Que a justiça corra como as águas, e seja a virtude uma corrente poderosa”. E como Jesus, o pastor deve dizer: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para levar as boas novas aos pobres”.

Diante da violência e injustiça que esmagam nossas irmãs e irmãos negros nas favelas e periferias das cidades, nas escolas e universidades, e também nas empresas brasileiras, relegando-os à falta de oportunidades e a uma cidadania ainda inalcançada por séculos de preconceito e racismo, almejo que se aproveite os 500 anos da Reforma para uma profunda reflexão sobre o modo como temos, quando muito, nos dedicado a irrelevâncias caritativas e santarronices insignificantes, para nos defrontarmos com a escolha certa a fazer.

Despeço-me reafirmando que nossa única esperança — e repito o que disse 50 anos atrás no sermão “Além do Vietnã”, na Igreja Riverside, em Nova Iorque — é retomar o espírito revolucionário e sair para o mundo declarando eterna hostilidade à pobreza, ao racismo e ao militarismo, desafiando corajosamente o status quo e as práticas injustas, antecipando o dia “em que todo vale será alteado e toda colina, abaixada; que o áspero será plano e o torto direito”.

Minha última recomendação a vocês, queridas pastoras e pastores brasileiros, são as últimas palavras de Dom Hélder Câmara, que antes de se juntar à eternidade, disse a seus colaboradores mais próximos: “Não deixem cair a profecia”.

Seu irmão na causa da Paz e da Fraternidade,

Martin Luther King

Antropólogo, com pós-doutorado pela Universidade de Montreal (Quebec), ativista de direitos humanos e editor da Novos Diálogos. Idealizador do Festival Reimaginar. Organizou com Clemir Fernandes a coletânea "Reimaginar a Igreja no Brasil: 40 Vozes Evangélicas". Foi secretário executivo da Aliança de Batistas do Brasil e atualmente trabalha com consultoria a organizações baseadas na fé em temas de direitos humanos, coordenando diferentes iniciativas através da Plataforma Intersecções.

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