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Histórias de sobrevivência e resistência: Reflexões bíblicas sobre justiça econômica

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Histórias de sobrevivência e resistência: Reflexões bíblicas sobre justiça econômica

A fim de contribuir com a campanha de justiça tributária e a discussão da taxação de grandes heranças como forma de diminuir a desigualdades existentes em nosso país, propomos uma reflexão bíblica a partir de narrativas que envolvem mulheres como protagonistas lutando por seu direito de herança. As mulheres representam um dos grupos mais desprotegidos nas estruturas sociais e econômicas da época bíblica. A situação das mulheres era de maior vulnerabilidade econômica, pois elas não eram consideradas cidadãs para acessar nenhum direito, logo se não tivessem um pai, um marido ou filhos homens elas perdiam completamente acesso à sua própria herança familiar.

Os enredos evidenciam e denunciam que os sistemas sociais e econômicos da época, assim como nos dias atuais servem mais para favorecer os “fortes e não os “fracos” de uma sociedade. Também revelam que os sistemas legais, mesmo que originalmente pretendiam garantir igualdade e justiça, haviam caducado ou eram manipulados por manobras dos “donos do poder”. Os sistemas econômicos a serviço dos fortes garantem a perpetuação das desigualdades blindando a riqueza dos mais ricos e poderosos. As leis precisam ser revisadas e mudadas para que haja justiça e equidade econômica.

O nosso objetivo resgatando essa memória bíblica é deixar que a própria dinâmica das narrativas possa provocar reflexão sobre como as mulheres agiram diante da realidade de injustiça, tendo Deus ao lado delas e como suas atitudes desencadearam um processo de transformação de suas vidas e de outras pessoas empobrecidas, das leis da economia e das relações humanas em suas comunidades.

Rute e Noemi: Vencendo a escassez e a pobreza nos campos do rico Boaz

Entre as várias interpretações do livro de Rute, uma delas diz que a história de Noemi e Rute deixa transparecer indiretamente toda a situação de conflito em que vivia o povo num momento de retorno do cativeiro: Reconstrução econômica, social, política e religiosa. Essa história bíblica é inspiradora para nós enquanto indivíduos, mas acima de tudo para os que vivemos em comunidade, pois o livro de Rute é uma reflexão coletiva sobre a situação do povo. É uma história que nos fala de uma sociedade em busca de caminhos de vida melhor, principalmente para os grupos mais sofridos e explorados pelos sistemas e leis injustas. Como se estruturava aquela sociedade?

  • Economia : Sociedade agrária (1:22 e 2:23); terra como objeto de negócios (4:3); os donos da terra eram pessoas importantes (2:1); a terra era trabalhada por empregados (2:3 e 9); a produção era de cevada, trigo (1:22 e 2:23); a produção era recolhida na eira, terreiro para ser debulhada pelo dono (3:2).
  • Política: As instituições políticas recebem pouco destaque no livro. Não se fala em rei. No início há uma breve referência ao governo dos juízes (1:1); havia um tribunal onde as questões se decidiam, sob juramento na presença dos anciãos e de testemunhas (4:2); seguiam os costumes antigos (4:7-8); o tribunal se reunia na porta da cidade (4:1); para regulamentar os problemas da terra e do clã havia a lei do Levirato (2:20; 3:9), mas, parece que essa lei não era bem observada (4:3-6). A lei favorecia mais os ricos que os pobres (4:8), havia esquecimento ideológico do espírito das leis (Lv 25:24-25; Dt 15:7-11). Os direitos das mulheres, dos pobres e de estrangeiros são violados.
  • Clãs familiares, comunidade: A unidade básica da sociedade era o clã, a grande família patriarcal (1:2). O que parece é que esses clãs familiares viviam uma fase de desintegração para defender os direitos de cada um de seus membros. Havia ricos e pobres dentro do mesmo clã (3:10); comunidades, clãs e famílias já não conseguiam se manter unidas para lutar e defender seus direitos e dos seus membros mais pobres (Ne. 5:8); a exploração entrou dentro da própria família. Havia falta de terra, de pão e de partilha!
  • Problemas sociais e econômicos enfrentados pelas famílias empobrecidas: Fome (1:1); migração (1:1-7); pobreza que obriga a catar as sobras da colheita (2:2); impossibilidade dos pobres manterem a posse da terra(4:3); recusa de um parente mais rico a ajudar o parente mais pobre do mesmo clã (4:6); doença, morte e falta de futuro melhor (1:3-5); velhice e dificuldade de manter a continuidade da família (1:11-12); a necessidade que obriga as pessoas a viverem divididos e espalhados (1:1 e Ne. 5:1-5).

“A Casa da Mãe” como projeto alternativo de justiça econômica

“Noemi: Disse às duas noras: Voltem cada uma para casa de sua mãe”. Voltar à casa da mãe e não à casa do pai. Foi esse o conselho de Noemi as suas noras. O uso do termo “casa da mãe”( bêt immãh) em substituição ao termo “casa do pai” (bêt’-ab) geralmente é indicativo de um texto escrito por mulher. Esta e outras singularidades nos leva a crer que o livro de Rute é literatura de resistência de mulheres como grupo que naquele instante não tinha voz e vez na discussão nacional, nos grandes projetos que prometiam conduzir o povo a tempos prósperos.

O livro de Rute traz a sabedoria popular da “casa da mãe”. Por isso quero fazer uso dessa linha de interpretação para ler a história como uma proposta de economia da casa da mãe em oposição à economia da casa do pai. Carol Meyers destaca alguns aspectos relevantes sobre a casa familiar como uma unidade social que compunha a estrutura social do Antigo Israel.

Antes da ascensão da Monarquia a sociedade israelita funcionava em três diferentes níveis de organização social: as tribos (nível mais amplo), os clãs (unidade significativa que aglutinava a parentela) e a “casa familiar” (unidade social fundamental no período pre-monárquico) (Mayers, 2002). Na história de Noemi e Rute a reconstrução do povo passa pela casa familiar que estava sendo rompida pelo sistema econômico. É nessa dimensão social da casa familiar que aconteciam as atividades vitais de produção e reprodução.

A dinâmica da vida na casa familiar autossuficiente envolvia uma ampla variedade de tarefas que envolvia a sobrevivência. Em cada casa familiar eram produzidos alimentos, roupas, pequenos móveis e coisas necessárias à manutenção básica da família. Havia também no interior da casa uma divisão do trabalho cuidadosamente organizada entre todos os membros da família: homens, mulheres, jovens e velhos. No sistema familiar de produção não era menos importante o papel da mulher do que do homem. Os homens participavam das tarefas agrícolas. No contexto da casa familiar quase sempre se caracterizavam pelo equilíbrio interno de gênero e não por uma hierarquia.

A presença da referência à casa de mãe no livro de Rute como expressão alternativa para falar de casa familiar não a partir do pai, mas da mãe, representa ao mesmo tempo uma denúncia e um caminho para uma organização social mais justa.

“Casa da mãe”, a lei do resgate e o acesso a terra como herança.

Com a morte do pai e a morte dos filhos homens, a casa da mãe fica sem direito a herança da família. A lei do resgate estabelecia duas coisas: Primeiro, que quando alguém, por motivo de pobreza, era obrigado a vender sua terra, então, seu parente mais próximo tinha obrigação de resgatar essa terra, isto é, devia comprá-la de volta, não para si, mas para o parente pobre que corria o perigo de perdê-la (Lv 25, 23-25).

Em segundo lugar, dizia que se alguém por motivo de pobreza era obrigado a vender-se a si mesmo como escravo, então seu parente mais próximo tinha obrigação de resgatar essa pessoa, isto é, devia pagar para que o irmão pobre pudesse reaver a sua liberdade. (Lv 25, 47-49). Este parente próximo era o Goêl, uma palavra hebraica que significa “aquele que resgata”. O objetivo da lei do resgate, portanto, era defender e fortalecer a casa familiar como base da organização social, pois essas casas representavam a defesa para os indivíduos e para as famílias pobres contra as ambições dos poderosos, dos ricos e dos reis. A lei do resgate, quando observada, impedia que alguém perdesse suas terras e outro acumulasse terras. A lei do resgate estimulava a corresponsabilidade de todos e todas pelo bem-estar dentro da mesma família e comunidade.

A Lei do parente mais próximo (Levirato)

Para entender melhor o drama da casa da mãe onde não há um resgatador é necessário lembrar outra lei, a chamada lei do Levirato ou lei do parente mais próximo. A lei do Levirato estabelecia que se um homem casado morresse sem filhos, o irmão do falecido devia casar-se com a viúva, e o filho que nascesse devia ser considerado filho não dele, mas do irmão falecido (Dt 25,5-10). Trata-se dos parentes da casa familiar, isto é, a Lei do Levirato obrigava apenas os irmãos, filhos do mesmo pai, e não os primos e outros parentes. Não era como a Lei do Resgate que obrigava a todos os parentes do mesmo clã (grande família) a prestar ajuda ao irmão que estivesse passando necessidade. O objetivo da lei do Levirato era garantir a continuidade da família e impedir que por falta de herdeiro a família se acabasse.

No caso da família de Noemi, a situação era gravíssima. Maalon, o marido de Rute morreu sem deixar filhos. Conforme a lei do Levirato, o irmão de Maalon deveria se casar com Rute e suscitar um filho para o falecido. Mas, não havia irmão! Noemi não tinha outros filhos e nem podia tê-los. A família de Noemi estava no fim. A lei do Levirato não podia ser invocada. E por isso que Noemi recorre à lei do resgate. Se a história do livro de Rute é a imagem da história do povo a partir da voz das mulheres e da casa da mãe, ela revela que as famílias dos pobres estavam sendo desintegradas pela ganância e acúmulo. Essas famílias eram obrigadas a vender terras e seus filhos e as leis de resgate e do levirato eram negadas aos pobres tornando-os incapazes de proteger-se da ambição dos ricos. Havia até gente que se aproveitava da lei do resgate para comprar a terra dos parentes pobres. Por isso a exploração entre irmãos aumentava casa vez mais, obrigando as pessoas a migrarem para terras estrangeiras.

O livro de Rute conta uma história de luta e resistência a partir dos mais empobrecidos. É projeto de resistência para fortalecer a unidade da casa familiar. A casa da mãe é caminho de reconstrução para uma sociedade destruída pela ambição dos poderosos e ricos.

“A Casa da Mãe” e a estratégia de acesso à herança

Duas mulheres viúvas elaboram estratégia para exigir do parente rico Boaz que cumpra a lei do resgate e dessa maneira possam ter acesso à herança do seu marido falecido. A casa da mãe tem outras estratégias que não a força e o poder. Elas lançam mão de outros recursos. Como na história das filhas de Selfaad, a casa da mãe se articula contra o sistema legal que protegia os ricos e desprotegia os pobres. A lei do resgate estava desatualizada e favorecia a exploração e o empobrecimento das famílias.

Na estratégia elaborada na “casa da mãe”, as duas Leis: do Resgate e do Levirato foram unidas. Separadas estas duas leis, já não resolviam o problema do povo. Só a Lei do Resgate, isto é, só a terra, sem um filho herdeiro, não garantia a continuidade da família e favorecia o latifúndio. Só a Lei do Levirato, isto é, só o filho, sem a terra, não garantia o pão para sobreviver. Por isso a importância da afirmação de Boaz no tribunal: “Comprando o terreno de Noemi [o que dizia a Lei do Resgate] você estará também obrigado a casar com Rute, a moabita, mulher do falecido [o que diz respeito à Lei do Levirato que obriga a casar com a viúva]. Desse modo, a herança do falecido continuará com o nome dele”. [o que dizia a Lei depois da mudança].

A estratégia da casa da mãe abriu precedente legal, unindo as duas leis. Assim foi ampliada a lei do Levirato e qualquer parente do clã estava obrigado a observá-la, defendendo mais amplamente o direito da “casa da mãe”. A mudança na Lei prejudicou os “fulanos” que só pensavam em si mesmos, em sua própria casa e em fortalecer seu patrimônio e não estavam dispostos a se sacrificar pelos irmãos mais pobres. Foi essa a razão da recusa do resgatador mais próximo na história de Rute. “Não posso fazer isso, porque eu acabaria prejudicando meus herdeiros.” (Rute 4,6)

Aclamação da vitória da casa da Mãe!

No final da história a “casa da mãe” é aclamada em Noemi. O povo pede que Rute seja como Raquel e Lia, as duas mães das doze tribos (4 11). O povo também pede que Rute seja como Tamar, aquela que levou Judá a cumprir seu dever de cunhado (4,12 e Gn 38). Pede ainda que ela seja a nova mãe do povo. A casa das mães representa novo começo e outro modelo de vida e justiça econômica. Que a “Casa da Mãe”, representada na história de Noemi e Rute inspire a construção de novos modelos econômicos com mais solidariedade e justiça!

Concluindo

A atitude de Noemi e Rute forçou os que estão no poder a olhar para baixo, para os gritos importunos do povo que denunciam a atitude abusiva e insensível de todos que ocupam o lugar de “juízes injustos” das nossas estruturas. O sistema tributário brasileiro precisa ser provocado a olhar para baixo. Não é justo que os ricos paguem o mesmo que a classe média e que os mais pobres continuem pagando a conta maior desse sistema que perpetua uma estrutura desigual. É preciso provocar nossas leis constitucionais para que estejam verdadeiramente a serviço dos mais “fracos” da sociedade. É preciso coragem e ousadia como a representada nas histórias dessas mulheres para “cutucar” os mais ricos, seus poderes e fortunas! E que o Deus justo e compassivo esteja ao nosso lado fortalecendo as vozes mais enfraquecidas!

Referencias bibliográficas

MEYERS, Carol. De volta para casa: Rute 1,8 e a definição de gênero. In Rute a partir de uma leitura de gênero/Athalya Brenner (organizadora).São Paulo, Paulinas.2002.

STERRING, Ankie. O desejo das filhas. In De Êxodo a Deuteronômio a partir de uma leitura de gênero/Athalya Brenner (organizadora). São Paulo, Paulinas, 2000.

MESTERS, Carlos. O Livro de Rute: Pão, família e terra. São Paulo. Paulinas, 1990.

______. Rute. São Paulo. Edições Loyola, 2009.

SCHOTTROFF, Luise. As Parábolas de Jesus: Uma nova hermenêutica. São Leopoldo, Sinodal.

Fonte: https://www.academia.edu/25553389/Tributo_para_qu%C3%AA_Para_quem

Pastora batista, professora de Novo Testamento e assessora do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). É formada em Educação Religiosa pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e em Pedagogia pela UFAL. Tem especialização em assessoria bíblica e doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo.

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