Como pode me amar? Me leva pra casa…
Por Bob Luiz Botelho
Esse texto foi escrito em meio a lágrimas. Resolvi levar o coração pra tomar chá quente nesse inverno gelado da minha cidade. A apreciação da leitura vai depender da sua alma. O quão desarmado você está pra experimentar?
“Como pode me amar, Deus?
Conhecendo o meu pecado
Sabendo o que eu faço de errado
Como pode me amar assim?
Como pode me amar, Deus?
Sabendo que eu sou falho
E que o meu coração já não bate
Mais como já bateu?
Como pode me amar, Deus?
Sabendo que eu fugiria
Se a porta estivesse aberta
Como pode em mim confiar?”
Esse é o trecho de uma música que me fez viver uma experiência linda com Deus. Uma experiência de amor, de fé, de entrega e de contemplação. O convite dessa leitura, diferente do que eu comumente escrevo, é pra construirmos uma teologia a partir de uma espiritualidade que experimenta. Vem comigo que eu te explico no caminho…
De uns tempos pra cá meu blog meio que “ressurgiu das cinzas” e eu comecei a receber novamente e-mails de pessoas que leram e que se sentiram confortáveis e seguras em me escrever contando suas experiências, compartilhando angústias e procurando apoio. Conforme os comentários chegam, eu revisito a postagem e quantas emoções eu passei. É muito bom ver que a dor passou, que a angústia cessou e que o aperto na alma aliviou.
Nesse processo de organizar a memória e olhar para o Bob do passado, algumas experiências interessantes aconteceram. É muito bom poder me encontrar com o Bob do passado, abraçá-lo, acolhê-lo, lembrar da dor, suspirar fundo e, com ele no colo, embalar dizendo: “Ei, isso vai passar!”.
Ao mesmo tempo, me vejo cercado de outras dores e às vezes penso que esse é um ciclo que nunca vai se fechar. Será que existe algum momento na vida em que a gente apenas não tem mais nenhuma dor? Isso é tão, mas tão desgastante. É claro que nada se compara em proporção, intensidade e inclusive o tipo de dor que sofro, mas acredito até o momento que desgastar-se não seja nunca uma boa experiência pra se viver.
Hoje em dia, o que me dói a alma e me aflige o coração é a injustiça que cerca meu povo. Dói ver que, depois que tornei público o fato de ser gay, tanta coisa virou de cabeça pra baixo… E antes que essa frase seja tirada do contexto por fundamentalistas dizendo que eu me desviei e larguei a fé, é importante registrar que minha fé em Jesus Cristo caminha muito bem, obrigado. Aliás, é sobre isso que quero falar hoje. Sobre fé.
Depois que eu me entendi homossexual, minha alma encontrou uma face de Deus nunca vista (ou experimentada) por mim antes. Entendi sobre o Deus que celebra a diversidade e que tem prazer nas várias cores do arco-íris. Venho aprendendo bastante com esse Deus sobre o fato de que a aliança que Ele firma com seu povo e que é lembrada sempre que um arco-íris aparece, é uma aliança diversa, plural, heterogênea e que ela só pode ser comunitária e coletiva se for ao mesmo tempo particular, subjetiva e individual (Gênesis 9:12-17).
Mas daí eu resolvi contar para as pessoas e tornar público e um outro processo começou. O processo de justificativa e apologética. Até hoje eu recebo e-mails de pessoas que querem saber “bases bíblicas” da homossexualidade ou que me perguntam sobre “qual das linhas da teologia liberal” eu passei a adotar, ou que ainda vem com aquelas perguntas maquiadas que tentam ser sutis, mas que de tão repetitivas já me deixam cansado como: “Você ainda acredita na Bíblia?”; ou ainda: “Mas você e Deus estão bem?”; encerrando sempre com a mais famosa: “Mas você está feliz? De verdade? Mas de verdade mesmo? Mas verdadeiramente feliz? Mas feliz em plenitude?”.
Tornar público a minha decisão de exercer livremente e plenamente a minha sexualidade fez com que eu incomodasse muita gente, mesmo sendo algo que diz respeito apenas a mim. As pessoas passaram a se incomodar com minha fé sem restrições e comprometida com a mais profunda verdade do Evangelho: JESUS! O que corrói as pessoas é que agora eu estou verdadeiramente livre, porque Jesus assim o fez, como foi prometido (João 8:36)
No início as inquisições eram feitas com uma homofobia gentil e sutil, escondida no “Eu tenho orado por você” ou ainda no “Eu espero que você fique bem, de verdade”. Meu coração pastoral acolhia com empatia todas essas narrativas, mesmo sabendo que aquilo era um indício de que na verdade não fui aceito ali.
O problema é que agora o ódio está posto. Não dá pra esperar menos, afinal foi esse mesmo “povo evangélico” que colocou na presidência um filho do diabo (João 8:44) que emana ódio em cada frase que profere. O resultado das urnas foi como uma chancela entregue para que as pessoas tirassem suas máscaras e deixassem os malabarismos que performavam para esconder seu preconceito de lado. Como a pastora mentirosa que ocupa o cargo de ministra dos direitos humanos disse: “É hora da igreja governar!”.
Isso tudo foi gerando em mim um aperto, uma dor. As notícias não paravam de chegar (ainda não param) e toda semana algo acontece.
Nos últimos dias eu tenho questionado bastante coisa relativa à vida cristã… Às vezes eu acho que estou dando murro em ponta de faca e que insistir em reivindicar Cristo é ser advogado do diabo (trocadilho intencional). Sabe quando fica difícil tentar defender? As vezes só não tem o que defender mesmo, sabe?
Só que, ao mesmo tempo que essas conclusões chegam aqui em cima na minha mente, aqui no peito meu coração foi apertando, angustiado e doloroso… Poxa, essa tal de fé é a única coisa que deu sentido pra toda a minha vida até aqui!! Que difícil e desafiador vai ser abrir mão de tudo e dizer: “É isso, tudo o que eu vivi foi uma farsa”. Isso estava me angustiando, me maltratando e me fazendo muito mal.
Mesmo antes de entrar com a questão de diversidade, eu sempre achei que esse negócio de racionalizar a fé e tentar vivê-la puramente no campo da razão é um total contrassenso com o que é espiritualidade. E olha que já fui presbiteriano calvinista daqueles que recita as Institutas de Calvino na ponta da língua (hahaha, não era pra tanto). Aliás, se pular um pouco meus posts pra uns 7 ou 8 anos atrás, tem texto meu dizendo que “eu não preciso sentir, eu preciso viver a Palavra”, falando coisas como “não ser escravo dos sentimentos, mas escravo de Cristo” e essas coisas todas.
Sabe, especialmente pra nós, crentes LGBT, é um desafio enorme falar sobre fé porque no campo da razão, as informações que a gente sempre recebeu dizem que é impossível agradar a Deus sendo quem somos e vivendo a plenitude da verdade de quem somos. A diversidade é condenada por Deus. O que Deus quer é o padrão e ai de quem ousar pensar além disso. Como isso está na nossa cabeça desde muito cedo – ou pra quem se converteu um pouco depois, de uma forma muito persuasiva – os sentimentos que se geram para interpretar nossos sentimentos sobre nossa identidade (especialmente o gênero ou a sexualidade diversa) são sempre pautadas em um forte sentimento de culpa, de medo e de repulsa.
Glorificar a Deus passou a ser sinônimo de subjugar meus sentimentos. Por mais sublime e precioso que o sentimento seja, a Glória de Deus se manifesta na repressão máxima possível dele, sempre afirmando que isso é a “verdadeira liberdade de quem está em Cristo Jesus”. Liberdade é o nome dado para o cárcere que nós somos submetidos e o reforço desse comportamento é tão intenso, tão profundo, que inclusive a execução disso gera, muitas vezes, um sentimento prazeroso de recompensa e de dignidade.
Matar a carne, viver uma vida santa, purificar o coração… Deus ama quem eu sou, mas não me deixa como estou. Ele ama o pecador, mas rejeita o pecado.
Foram anos e anos dentro do meu armário, fechado a 7 chaves, que eu gerei em mim um sentimento tão forte de que tudo isso era verdade que até pra romper com isso muita coisa veio à tona. E quando eu leio os textos antigos do meu processo eu sinto em mim a integridade da empatia e da compaixão expressa na sua maior intensidade. Empatia e compaixão para comigo mesmo. Acolher tudo o que senti e dizer: “Eu entendo o que você está passando”, e sabe o mais legal? Saber que de fato se está sendo entendido.
A gente fala tanto de empatia e compaixão com outras pessoas. Permitam-me levantar a bandeira do autocuidado e dizer que se você não é empático consigo próprio e não é compassivo com seu próprio ser, o exercício de o ser com outras pessoas, além de inútil, é um desgaste a mais que você vai carregar na sua vida. Ninguém ensina a gente a se abraçar e a investir tempo em conversas com o espelho, mas é conhecendo esse templo que é meu corpo (na sua dimensão integral: física, emocional, cognitiva, espiritual etc.) que eu descubro quais as possibilidades que o Espírito tem para agir com liberdade (2 Coríntios 3:17).
Mas sabe, somos amados. Somos filhas, filhos, filhes amades. Esse amor maternal nos acolhe como vento de brisa que refresca o calor mormaçante do nosso corpo cheio de feridas.
Quero falar sobre aquele momento em que a gente está ali, envolto na dor, precisando se sentir abraçado e encontrado por um amor que arda em nosso coração de forma a reviver a esperança. Sabe quando ficar racionalizando não adianta?
Aprendi uma coisa com a minha juvenil experiência com Deus. Assim como Deus se encarnou em Jesus, nossa fé precisa encarnar nosso corpo! Só podemos dizer que fomos tocados pelo Espírito quando essa fé ganha vida em nosso corpo. Viver a fé é uma experiência corporal.
Nossa espiritualidade precisa alcançar o nosso corpo. Nas igrejas pentecostais, o corpo é algo tão valorizado na performance da fé, e as igrejas históricas custam a se abrir pra essa dimensão da fé. E quando eu falo sobre a experiência da fé ser corporal, não sugiro com isso uma balela de prosperidade do tipo “Deixe de tomar seus remédios e você será curado da sua doença”, porque mesmo crendo que Deus é poderoso pra fazer o que Ele quiser, eu acho ilegítimo e muita pretensão da nossa parte barganhar com Deus e fazer moeda de troca do tipo “Eu orei, me dá minha bênção” ou “Eu fiz o propósito, me dá a cura” ou ainda “Dei dinheiro, quero ser honrado”.
Na verdade, encontro na Bíblia que Deus inclusive gosta de estar conosco na dor, não pra curá-la, mas para revelar Sua glória com Sua presença. Existe milagre quando, ao invés de curarmos a depressão, sentimos que Deus não nos abandonou mesmo enquanto ela nos assombra.
No meio dessa semana cheia de demandas, dificuldades e dores, iniciaram as aulas do semestre e o desespero me bateu na porta. Eu estava no laboratório da faculdade quando uma crise forte de choro veio e tomou conta do meu trabalho. Eu só queria terminar meu relatório.
Foi quando essa música veio e com ela uma experiência muito particular que tinha vivido com Deus fez muito sentido. Não vou partilhar a experiência que tive, mas queria que você se permitisse ser vulnerável, frágil e deixar que algo além da sua convicção racional tomasse você enquanto você embala na melodia e harmonia produzidas.
Que letra, que tiro certeiro no meu coração amargurado. Sim, eu sou amado! E sabe o mais engraçado disso tudo? É que essa letra aqui tem tudo pra sugerir pras pessoas uma narrativa aprisionante sobre a liberdade do corpo que Deus nos dá. É possível cantar essa música aos prantos achando que quando a fala sobre “conhecendo o meu pecado, sabendo o que eu faço de errado” a gente tá falando sobre a atração que a gente sente por uma pessoa do mesmo gênero (ou, no caso de pessoas trans, quando você se sente diferente do sexo que te designaram ao nascer). Um convite pra “voltar pra casa” no sentido de devolver a nós um discurso de santidade que nos aprisiona numa eterna tentativa de deixar de ser quem se é. Esconder nossa identidade, feita imagem e semelhança da Trindade.
Sim, eu sei que é bem possível ouvir essa música e se sentir assim. Mas sabe, Deus falou comigo nessa música e eu quero partilhar com você sobre o que Ele falou comigo.
Como pode, Deus, nos amar tanto assim, mesmo sabendo que desde que me reconheci LGBT meu coração parou de bater como antes porque eu fiquei afundado numa culpa gigantesca por ser quem eu sou? Como pode me amar mesmo eu brigando com você todos os dias porque você não me cura mesmo eu pedindo, jejuando, orando, fazendo propósito e cumprindo TODAS as responsabilidades religiosas? Como você pode me amar, sabendo que eu fugiria de buscar você no mais secreto do meu coração e daria ouvidos às mentiras que a religião tem contado ao longo dos anos? Como você pode me amar mesmo eu rejeitando a maior dádiva que você me deu, que é minha identidade?
“E ainda me pega quando estou caindo
E me abraça quando estou chorando
E segura as minhas mãos
E me leva pra perto das chamas de amor
Que ardem em Teu coração e não se podem conter”
E ainda me pega quando eu estou caindo da fé e Te odiando por você não ouvir minha oração sincera. Me abraça quando eu estou chorando, desesperado em pavor de ser assim, diferente do padrão que a igreja me falou que era pra seguir. E segura as minhas mãos quando meu maior desejo é apostatar da fé e rejeitar Você por todo o ódio que tem dissipado em Teu nome. E me leva pra perto das chamas de amor que ardem em Teu coração e não se podem conter. Chamas que revigoram em mim a certeza do Teu amor incondicional e perfeito, que me aceita e me afirma. Amor que celebra quem eu sou e que diz que eu sou expressão do Teu caráter diverso e criativo.
“Como uma flecha que estoura em meu peito
E me traz de joelhos enquanto eu choro
Tenha o meu coração
Minh’alma soluça
Quando eu percebo o contato de Seus olhos com os meus”
Seus olhos que só de me olharem fazem me sentir como Digory se sentiu ao ter contato com os olhos de Aslam. Esse olhar que fez o menino nunca mais esquecer da plenitude que sentira quando em Sua presença estava e que mesmo quando Você não estava mais lá, fazia com que o sobrinho do mago persistisse em seguir a missão que Você, o Leão criador, confiou só a ele. Seus olhos arderam no meu e fizeram eu ter certeza de que a dor que sinto não está alheia a Você e que Sua presença está acompanhando cada lágrima que cai do meu rosto.
“Como pode me amar, Deus?
Sabendo o que eu diria
Sabendo que eu me frustraria
Como pode me amar assim?
Como pode me amar, Deus?
Sabendo que eu Te culparia
Pelo que não foi como eu queria
Como pode me amar assim?
Como pode me amar, Deus?
Sabendo que eu me fecharia
Quando Você quisesse entrar
Como pode em mim confiar?”
Sabe, Deus, foi tão frustrante ver o ódio da “igreja” comigo. Te culpei tanto quando a “cura” não aconteceu e percebi que seria esse corpo diverso enquanto vivesse aqui na Terra. Eu me fechei sim, mas foi porque doeu demais em mim. Eu perdi tudo o que tinha, só porque eu sou assim. Minha carreira no ministério, meus melhores amigos. Achei que tivesse perdido também as promessas que Você me fez quando eu era criança. Como eu poderia ser missionário pelas nações sendo gay? Eu sei que Você quis entrar várias vezes, mas eu me fechei porque as feridas estavam abertas. E mesmo assim Você amou. Mesmo eu me fechando Você estava lá. Como sopro, como frescor pro ardor que sangrava em minh’alma. Eu já não confiava mais em Você, muito menos em mim, ou no ministério. Como é mesmo depois de tudo isso, Você ainda confiou em mim?
“Me leva pra casa
Eu quero voltar
Pois longe de Ti
Não é o meu lugar”
Casa. Lugar de Segurança. Me leva de volta pra casa quando a Tua presença era brasa que aquecia meu coração nas noites frias de solidão. Casa que não falta pão, não falta calor, não falta amor! Lar seguro para aquietar minh’alma abatida e encontrar descanso. Me embala no quarto?
“Eu corro depressa
Pra Te encontrar
De braços abertos
Como alguém que esqueceu”
Sabe, meus pés estão cansados demais e eu tenho dores da caminhada. Mas com tudo o que tenho em mim, sigo correndo a Teu encontro. Quero pular nas Tuas costas como alguém que esqueceu as dores da vida e que volta pra inocência e pureza do coração de criança, brincando com a pessoa por que mais se sente amado
“Me leva pra casa
Eu quero voltar
Pois longe de Ti
Não é o meu lugar”
Mesmo que todo mundo fale que eu não Te mereço. Mesmo eu sendo apedrejado todos os dias pelas pedras de ódio e rancor dos que se dizem donos da Tua graça. Mesmo que a “igreja” levante cada vez mais altos muros para me impedir de acessar. Grita alto que a casa é minha também porque Você me chama de filho amado!
“Eu corro depressa
Pra Te encontrar
De braços abertos
Em meu lugar”
E assim eu Te encontro. No meu lugar. Aqui, na rotina da vida, na jornada da caminhada, na lida de cada dia, com os encontros peregrinos que Você me envia. É no abraço da comunidade de fé que encontro Seu abraço. É no calor do amor de quem partilha o pão e o cálice comigo, que eu me sinto aconchegado por Você.
Obrigado por Teu amor!
O primeiro semestre desse 2019 foi intenso demais e os ataques desse projeto maligno de ódio que vem tomando forma na nação fazem com que as emoções se desgastem muito. O tempo todo tendo que racionalizar, arguir teologicamente, responder biblicamente. E junto disso as demandas profissionais, as contas pra pagar, faculdade pra fazer.
Muitas vezes, o autocuidado do qual a gente tanto fala na militância, aquela coisa de “existir é resistir” vai passar por vias que não são tão racionais assim. Aliás, do que eu tenho vivido, o autocuidado vai sempre passar pelos afetos. Vai sempre passar pelas emoções. Nossa saúde mental, que tem sido tão debatida nessa sociedade do espetáculo, requer de nós uma performance livre, lírica e poética, que tenha como única métrica de sua expressão, a busca por encarnar a verdade da Fé em Cristo que é em nós, a esperança da Glória (Colossenses 1:27)
Agora corre, vai… Vai do seu jeito, da sua forma… Vai e corre pros braços de quem te ama e te aguarda!
* Bob Luiz Botelho é membro da Igreja do Armazém, militante em Saúde Mental e Diversidade. Missionário e produtor cultural, estudante de Geografia pela UFPR e membro da Coordenação Nacional do Evangélicxs pela Diversidade.