O Livro e os livros
A primeira vez em Buenos Aires, faz uns 15 anos, fui para participar de um evento que teve sede no Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos – ISEDET, uma das mais importantes e prestigiosas instituições evangélicas de ensino teológico de toda a América Latina. (Hoje, lamentavelmente, ela já não existe – tristes tempos). Um diferencial era exatamente sua biblioteca, cuja amplitude e riqueza lembra a descrição da famosa biblioteca do mosteiro medieval de ‘O nome da Rosa’, do Umberto Eco.
O slogan da biblioteca do ISEDET, grafado num cartaz afixado em várias partes da casa teológica, dizia: “O Livro e os livros”. Sim, seu acervo continha muitas e variadas versões da Bíblia – Livro sagrado – em diferentes línguas, versões, formas, tipos de ênfase e reflexões. E, claro, livros de teologia, em suas muitas subdivisões de estudo, além de outros múltiplos campos do conhecimento humano e social. O Livro e os livros!
Sou cristão, evangélico. A Bíblia é para mim o Livro! Sem jamais desprezar outros livros. Sou protestante: Fé e razão. Crença e reflexão. Sabedoria e conhecimento. Devoção e crítica. Espiritualidade e prazer.
Já li a Bíblia várias vezes, do capítulo 1 do Gênesis, ao versículo 21 do capítulo final de Apocalipse. Desde minha meninice. Aos 9 anos, lembro, li os 50 capítulos do Gênesis em um único dia, num 1º de janeiro. No dia 2, li, integralmente, o livro do Êxodo. Não entendia tudo, ou compreendi pouco, mas lia. Ser protestante! No terceiro dia do ano, embora com muito esforço, já não dava conta de ler todo o emaranhado Levítico. Mas seguia com a leitura. Pelo Pentateuco, os Históricos – ótimas histórias – Sabedoria (prazerosos), profetas – excelentes desafios – Novo Testamento: que maravilha! No ano seguinte, de igual forma, recomeçava a leitura da Bíblia. Além de ouvir suas histórias e outros ensinos, contados e pregados, tanto em casa quanto na igreja. Continuada formação, sistemática e ametódica.
Meu avô materno, cearense, protestante (do antigo e bom calvinismo), leitor dedicado da Bíblia, gostava também de literatura de cordel. Assim como meus pais. Acho que depois do Livro, os primeiros textos que li – sem contar gibis e jornais – foi literatura de cordel. “A Princesa do Reino da Pedra Fina” (Manoel Pereira Sobrinho) e “História da donzela Teodora” (Leandro Gomes de Barros), estão em minhas mais antigas memórias como leitor de coisas profanas. Antes de saber ler, ouvi muito destas estórias no ambiente doméstico.
Afora os sagrados, não havia praticamente livros em nossa casa em minha primeira infância. (Lembro quando compramos o primeiro dicionário – minidicionário – em 1979, há 40 anos! Alegria grande. Como usamos aquele livrinho…). Queria ler mais. Um dia, numa roda de conversa sobre cordel e causos, sob o luar (onde a gente morava não havia energia elétrica) comentei que gostaria de ler outros títulos de cordel. Zé Mineiro, nosso vizinho e irmão da igreja (que era analfabeto, mas um ótimo contador de histórias), retrucou, falando a meus pais: “É bom não comprar, para ele não deixar de ler a Bíblia…”.
Jamais deixei de ler o Livro. Mais do que ler, com a rapidez muitas vezes incompreensível de menino, passei a estudar, refletir, meditar. Fiz Teologia, minha primeira formação acadêmica, dos 18 aos 22 anos! Formação continuada, metódica e assistemática. Virei professor, além de Sociologia e Antropologia, também de Teologia, isso na faculdade. Na igreja sou professor de Bíblia desde os 14 anos. Lembrando Guimarães Rosa, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Não tem como não aprender!
Hoje, com minha filha, não há um dia sequer que a gente não fale – recite/medite – versículos bíblicos. Histórias bíblicas. Diariamente. Um prazer. Um bom dever. Sem obrigação. Educação assistemática. Libertadora.
A leitura da Bíblia, com consequente reflexão, me ensina, desafia, educa, compromete, evangeliza, todos os dias. Luz para o meu caminho! Para o bem, a justiça, os direitos, a alegria, o aprendizado, a conversão, a salvação, pessoal e coletiva. De toda a criação!
Não leio a Bíblia como dogma, nem para impingir cangas religiosas e desumanizadoras. Acho que já fiz isso, tristemente, mas a gente se liberta, ou melhor, vai se livrando continuadamente dessa carga. Vai exorcizando de nossa mente concepções fundamentalistas da Bíblia e da história. Segue desafazendo-se de formas elementares perversas da vida religiosa para a liberdade vital do evangelho. Enfim, buscando sempre a pedagogia libertadora de Jesus, como se vê, exemplarmente, no Sermão do Monte. Graças a Deus!
Portanto, nesta concepção – pensando o contexto sócio-político brasileiro, não faz sentido, o último B, da chamada bancada BBB no Congresso Nacional. Conforme já dialoguei com Flavio Conrado, Magali Cunha e outras/os, Bala e Boi, nesta chave, jamais combinam com Bíblia. É uma antagonia inconciliável. Aqueles que têm usurpado a Bíblia – Livro da vida, da libertação, da justiça, do amor, de Deus – para transformá-lo num instrumento de poder, político, econômico e eleitoral, além de usá-la ideologicamente para sustentar sua moral branca, isto é racista; capitalista, isto é, exploradora e legitimadora de desigualdades; sexista, isto é, misógina; violentadora de toda diversidade humana (que resulta da multiforme graça de Deus), não só não faz sentido. É uma blasfêmia.
É vergonhoso, absurdo mesmo, ter que ouvir, retórica e incoerentemente, versículos bíblicos, como a já banalizada expressão de João 8.32, inclusive desprovida de seu contexto. Para se conhecer a verdade, que liberta – que é o próprio Jesus e sua mensagem de vida, sua ética de amor, seu ensino da justiça, seu exemplo de perdão e misericórdia – é imprescindível permanecer em Sua Palavra, tornando-se, reconhecidamente seu discípulo. Está explícito no contexto do referido texto. Simples assim!
Tempo de ler e reler a Bíblia. Para proclamar/produzir libertação, na amplitude desse vocábulo. No entanto, sem jamais impor sua mensagem à sociedade que é plural e muito menos ao Estado, que deve ser regido por princípio de laicidade. Para o bem comum. Amém!
1 Comentário