Por que é problemático ver racismo somente no passado
Os líderes da Convenção Batista do Sul (Southern Baptist Convention-SBC) nunca se viram como racistas. Os líderes atuais admitem que seus antepassados eram racistas, mas os seus antepassados nunca admitiram — muito pelo contrário. Em 1845, os homens brancos que se reuniram em Augusta, Georgia, para oficializar a formação da Convenção Batista do Sul, a questão da escravidão foi o principal motivo que os moveu a se separarem dos batistas do Norte. Em maio de 1845, meses antes da separação, o batista abolicionista Francis Wayland — um dos mais proeminentes críticos dos batistas que defendiam a escravidão — disse o seguinte sobre o encontro iminente que levaria à inauguração da Convenção do Sul:
“Vocês irão se separar, claro. Eu não esperaria outra coisa. Tomarei a liberdade de apresentar uma ou duas sugestões. Já mostramos como os cristãos não devem agir. Deixem toda a violência para atrás, ajam com dignidade e firmeza e o mundo aprovará a conduta de vocês. (1)
Os batistas do Sul se separaram, mas não negavam as afirmações teológicas de que todos são iguais perante Deus. Eles não estavam, em sua ideologia, sendo violentos; estavam sendo bíblicos. O mundo não aprovou seus atos. 150 anos depois eles admitiriam que Deus também não tinha aprovado.
Os homens brancos que formaram a Convenção Batista do Sul, principalmente por causa da escravidão, se viam como pessoas que amavam sinceramente pessoas negras — não como racistas no sentido abrangente do termo. Entre 1845 e 1861 eles enviaram ou mantiveram missionários na Libéria, Sierra Leone, Nigéria, Brasil etc. Quando os Estados Unidos começaram a guerra civil em abril de 1861, os batistas do Sul apoiaram os estados confederados, que estavam dispostos a matar ou morrer para manter a escravidão. Na verdade, o batista Basil Manly, conhecido como o capelão dos estados confederados devido a sua importância nesse contexto, fez a oração oficial na posse de Jefferson Davis como presidente dos estados confederados. O pastor Manly orou pela bênção divina sobre os estados confederados que lutaram para manter corpos de pele preta sob um regime terrorista, dizendo: “Que a bênção de Deus descanse sobre o governo dos estados confederados!”(2). Ainda assim, eles não se viam como racistas, apenas seguidores da Bíblia. O sermão pregado pelo Pastor Ebenezer Warren ilustra a postura geral dos homens brancos que lideravam a Convenção do Sul:
…é necessário que ministros do evangelho (que têm o dever de “buscar as Escrituras” e para quem o povo olha com confiança para a instrução de todos os assuntos revelados na bíblia) ensinem a escravidão de púlpito, como foi ensinada por homens santos de antigamente, que falavam movidos pelo Espírito Santo.(3)
Para Warren e outros seguidores do deus anglo-saxão dos batistas do Sul, Pai, Filho, e Espírito Santo guerreavam com eles pela manutenção de um regime de violência antinegra em nome do evangelho.
A derrota na guerra civil não mudou a disposição racista da Convenção Batista do Sul; mudou apenas a forma pela qual ela passou a se manifestar. A Mitologia da Causa Perdida, a segregação racial e a resistência ao Movimento de Direitos Civis moveram o espírito dos batistas do Sul entre 1865 e 1965 — período em que a denominação também se tornou uma das mais poderosas do mundo. Ainda assim, a denominação nunca se viu como racista em seu “hoje,” mesmo tendo se confessado assim em seu passado. Sim, leitor/a, embora esse texto possa lhe parecer polêmico até aqui, a própria Convenção do Sul admitiu e pediu perdão por seu passado racista.
Em 1995, a Convenção Batista do Sul passou uma resolução — “para repudiar atos históricos malignos, como a escravidão, da qual continuamos a colher frutos amargos” — como uma estratégia para melhorar as relações com membros afro-americanos da denominação. A resolução admite que “O racismo distorce profundamente nossa compreensão da moralidade cristã, levando alguns batistas do Sul a acreditar que preconceito e discriminação racial são compatíveis com o evangelho.” Em 2018, um relatório de mais de 70 páginas coordenado pelo presidente do Southern Baptist Theological Seminary [Seminário Teológico Batista do Sul], o mais academicamente conceituado dentro da convenção, confessou com mais profundidade uma série de pecados racistas da convenção: da escravidão à relação complicada da Convenção Batista do Sul com o Movimento de Direitos Civis, liderada pelo também batista (mas não batista do Sul), Pr. Martin Luther King, Jr.
O relatório tem lá seus eufemismos. Por exemplo, ele menciona que o Southern Seminary convidou Martin Luther King, Jr. para falar no seminário, mas nega o fato de que a visita de King foi tão polêmica que o seminário foi forçado a pedir desculpas pelo convite. Ainda assim, é louvável que os batistas do Sul admitam seu passado racista. Esse não é o problema. O problema é que eles não têm tido o hábito, desde 1845, de admitirem seu racismo presente.
Deixando afiliações políticas explícitas que ilustram uma imaginação racial em particular de lado, uma controvérsia que ainda está se desdobrando aqui nos Estados Unidos revela a profundidade de como o racismo está entranhado na mentalidade dos batistas do Sul. E como os irmãos da Convenção do Sul continuam a negar seu racismo presente. Em 30 de novembro de 2020, os homens brancos que presidem os seis seminários da Convenção do Sul assinaram um documento que tem alienado líderes e pastores negros que até então insistiam em continuar na denominação, apesar dos muitos pesares. Tal documento foi concebido pelos presidentes dos seis seminários da Convenção do Sul como uma reafirmação da declaração doutrinária da Convenção, e termina com um parágrafo que ilustra a tremenda cegueira racial que permite com que os líderes brancos da Convenção do Sul vejam racismo em seu passado, mas nunca em seu presente. O parágrafo final diz:
À luz de conversas que temos tido na Convenção Batista do Sul, permanecemos unidos em torno das condenações históricas dos batistas do Sul ao racismo em qualquer forma e também declaramos que as afirmações da Teoria Crítica da Raça (Critical Race Theory), Interseccionalidade, e de qualquer versão de Teoria Crítica é incompatível com nossa declaração doutrinária.(4)
Mais uma vez, condenação do racismo passado; cegueira do racismo presente.
Nem todos os líderes e pastores negros da Convenção Batista do Sul aceitaram essa declaração, claramente contraditória no que silencia. O proeminente pastor Ralph West, que recentemente falou no velório de George Floyd — o homen negro que foi assassinado por policiais brancos, dando ímpeto aos protestos do movimento Black Lives Matter em 2020 — era parte da Convenção do Sul e estava fazendo doutorado no Southwestern Baptist Theological Seminary [Seminário Teológico Batista do Sudoeste]. A declaração contraditória dos presidentes dos seminários, no entanto, fez com que ele deixasse a convenção e o programa de doutorado no Southwestern. Agora ensinando na Universidade Baylor (também batista, mas não Batista do Sul), Ralph West, depois de questionar a falta de condenação dos supremacistas brancos por parte dos presidentes dos seminários da convenção, disse:
A declaração sobre a Teoria Crítica da Raça e a Interseccionalidade estragou a boa fé (entre mim e a Convenção do Sul). Eu não posso manter minha afiliação e me retiro do Southwestern. Também não irei mais me associar à Convenção do Sul. (5)
West não foi o único. Dwight McKissic anunciou que iria “descer do ônibus” da Convenção Batista do Sul no estado do Texas. McKissic, que insinuou que os seminários da Convenção do Sul não eram lugares “seguros” para professores negros, disse:
Tendo em vista a história da Convenção do Sul na questão racial, é absurdo pedir que igrejas afro-americanas confiem nas interpretações da mesma em relação à Teoria Crítica da Raça — e por consequência, do conceito de “raça.” (6)
McKissic se desligou da convenção estadual ligada à Convenção do Sul e pretende sair do organismo nacional se a afirmação contraditória dos presidentes dos seminários for ratificada. Outros pastores negros da Convenção do Sul têm expressado seu desdém pela maneira como essa declaração contraditória mostra, mais uma vez, que os homens brancos que lideram a Convenção Batista do Sul veem racismo em seu passado, mas nunca em seu presente.
O pastor negro, juiz e ativista batista Wendell Griffen foi mais incisivo em sua análise da declaração dos presidentes dos seminários da Convenção do Sul. Ele disse:
Os presidentes dos seminários da Convenção do Sul não explicaram em sua declaração que aspectos da Teoria Crítica da Raça (TCR) ou da Interseccionalidade são “incompatíveis” com sua declaração doutrinária. Ainda não nos foi dito como os presidentes dos seminários consideram a TCR e a Interseccionalidade em conflito com as crenças confessionais da Convenção do Sul. Bastou seis homens batistas do Sul, brancos, para fazerem uma declaração nua e crua nesse sentido, sem provas ou argumentos de apoio.
Ao fazer isso, os presidentes dos seminários da Convenção do Sul, sem querer, demonstraram porque o TCR e a Interseccionalidade são importantes. A declaração deles mostrou ao mundo, e especialmente aos batistas do Sul, que os homens brancos determinam quais formas são aceitáveis para analisar a fé religiosa, as políticas públicas e a justiça social. Também mostrou que as opiniões dos homens batistas do Sul, brancos, sobre a fé religiosa, políticas públicas e justiça social não podem ser questionadas, muito menos criticadas ou desafiadas, por pessoas de cor, mulheres, pessoas que são LGBTQ, imigrantes e pessoas com diferentes níveis de habilidade. De uma só vez, os presidentes da Convenção do Sul se apresentaram como exemplos clássicos da supremacia branca e da utilidade analítica do TCR e da Interseccionalidade.
A declaração parece ter sido elaborada e emitida para aplacar alguns pastores da Convenção do Sul que se opõem à TCR e à Interseccionalidade porque essas lentes analíticas forçam as pessoas a confrontar as realidades do racismo, sexismo, homofobia e transfobia, classismo, capacitismo e xenofobia. Os batistas do Sul não têm sido “luz do mundo” em relação a essas realidades.
No entanto, essas realidades afetam as pessoas nas igrejas da SBC e nas comunidades onde essas igrejas existem. Além disso, o Testamento Hebraico e os Evangelhos do Novo Testamento estão cheios de lições e relatos sobre como as pessoas proféticas enfrentaram a injustiça social. É significativo que os presidentes dos seminários da SBC se ofendam com a TCR e a Interseccionalidade, mas insistam que a Bíblia é guia oficial para a fé e a vida pessoal.
A Convenção do Sul continua a ver racismo somente em seu passado. O racismo que eles condenam não é o dos indivíduos que lideram a convenção de fato — e dos líderes dos seminários da convenção, que tanto são apreciados no Brasil como fonte do melhor treinamento teológico disponível — mas de seus antepassados. Com isso, se sentem livres para condenar um racismo abstrato e passado, enquanto simultaneamente comentem racismo concreto e presente. Tudo, claro, em nome do evangelho! Vários pastores negros da Convenção do Sul têm visto essa postura e criticado abertamente a contradição dos líderes das “casas dos profetas” da Convenção Batista do Sul.
Um dia isso vai ser coisa do passado; aí os homens brancos que lideram a Convenção do Sul certamente condenarão, mais uma vez, seus antepassados.
Notas
(1) Daily Chronicle and Sentinel, Augusta, Ga., May 10th, 1845. Citado por Leon McBeth em “Four Centuries of Baptist Heritage.”
(2) Citado por Robert P. Jones em “White Too Long.”
(3) João Chaves, O Racismo na História Batista Brasileira.
(6) https://www.baptiststandard.com/news/texas/mckissic-cuts-ties-with-sbtc-potentially-with-sbc/
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