A maldição da imagem: progressismo como branding, fundamentalismo como alma
Um breve experimento sobre as estratégias discursivas e os posicionamentos políticos de agentes pastorais, teólogos, políticos e artistas de confissão evangélica no espaço público-virtual: uma ênfase especial nos protestantes evangelicais destacados pelo discurso da missão integral e afins.
1.
Nas últimas duas décadas do protestantismo brasileiro testemunhamos importantes transformações no discurso teológico e nas práticas sociais das igrejas e organizações religiosas, especialmente entre aquelas evangélicas que de alguma forma se associaram às teologias da Missão Integral. Foi a mais recente oportunidade conceitual em larga escala de livrar o pensamento protestante das amarras do reacionarismo teológico tacanho, desonesto e policialesco que domina as agendas da teologia reformada brasileira. Para o objetivo que se pretende neste breve ensaio, este é o campo que interessa: as igrejas e organizações evangélicas influenciadas pela Missão Integral (MI).
A missão integral foi um discurso relevante no interior do protestantismo brasileiro recente: mobilizou juventudes, seminários teológicos, igrejas, lideranças pastorais, grandes eventos, mídias sociais, editoras e diversas organizações sociais cristãs. Não se pode negar a importância de engajamento e mobilização afetiva, subjetiva, social e econômica deste discurso no campo evangélico brasileiro — especialmente nos ambientes interessados numa hermenêutica alternativa para o papel social da igreja e a presença pública dos cristãos, tão marcados historicamente por um moralismo ascético, separatista, um apocalipsismo catastrófico e escapista das conjunturas materiais da história.
Assim foi: as pessoas, igrejas e organizações que buscavam relevância social para a fé cristã neste país em re-construção democrática (em que pese os problemas históricos e sociológicos desta tese) foram fortemente beneficiadas pela ativação e circulação até então bem-sucedidas deste discurso da Missão Integral. E, vale dizer, este parecia ser um discurso intermediário útil ao surgimento de novas composições e parcerias no campo, um discurso possível, um potente ponto de amadurecimento político e teológico, tanto para progressistas quanto para conservadores evangelicais brasileiros. Muita gente se beneficiou com a força [perdida] deste discurso.
2.
Da reeleição da presidente Dilma Rousseff para cá — após incontáveis e articulados ataques discursivos do campo reacionário protestante, hoje oficialmente bolsonarista, constantes na folha de pagamento do atual governo — o discurso da missão integral vai perdendo forças, até ser totalmente bloqueado, cancelado e desaparecido tanto do debate público da teologia quanto dos discursos das próprias institucionalidades que outrora viviam de sua potência de mobilização. Essa derrocada cria um vácuo no campo protestante-evangelical, um vazio de discursos teológicos mais detidos nas práticas sociais e políticas da igreja, e oportuniza uma corrida e uma movimentação por parte de teólogos e organizações que pretendiam ocupar os espaços deixados pela missão integral. Uma luta pelos despojos da MI, não necessariamente pelos significantes teológico-políticos da MI: agendas de pregação, visibilidade na internet, espaço editorial, controle de pautas políticas das igrejas/organizações religiosas, orçamentos de produção teológica, missionária e social de organizações sociais cristãs. O desaparecimento do discurso da missão integral provocou a velha concorrência pelos bens simbólicos e materiais no campo religioso, como nos apontou Pierre Bourdieu.
3.
Ao acompanhar o reposicionamento dos discursos sócio-teológicos no campo religioso evangélico pós-desaparecimento dos discursos de missão integral, durante ascensão do discurso gospel-bolsonarista [este inclusive aderido e reproduzido por muitos ex-agentes públicos de missão integral], tentando, também, pensar os possíveis deslocamentos do próprio discurso da MI, começamos a notar a repetição de uma tendência histórica do protestantismo-evangelical, mas, desta vez, redesenhada para as novas demandas estéticas das mídias sociais. Ou seja, percebemos uma repetição inovadora — no sentido de que o velho, o mesmo, o igual, o de sempre, vem passando por um rebranding (1) teológico-político: o fundamentalismo latente, sempre presente, ali, no fundo, recebe uma atualização estético-estratégica sem precedentes, para se posicionar como progressismo democrático no mundo das imagens técnicas, na tela, no espaço virtual.
Eis algumas considerações que apontam para essa tendência:
[x] o cenário social brasileiro entra num período de efervescência de problemas e discursos políticos: do impeachment/golpe para cá, o espaço público (as ruas) e o espaço público-virtual (as redes) são tomados por um renovado interesse em questões políticas e ideológicas. É possível ainda fazer uma digressão um pouco maior e dizer que esta efervescência começou em 2013. Não vem ao caso examinar isso aqui agora;
[x] tendo em vista o histórico recente de abertura do campo religioso evangélico às temáticas da vida em sociedade e da política, inclusive por influência de discursos como os da missão integral, passa-se a demandar posicionamentos claros e contextualizados dos agentes e organizações de missão integral; Não seria possível, dado a transparência e a velocidade do novo mundo da informação e as demandas prementes da sociedade brasileira, que os agentes e organizações evangélicas de missão integral simplesmente se esquivassem [mais uma vez] da responsabilidade de construir o debate público brasileiro. As partes foram cobradas. Esperava-se/demandava-se, pelo menos após tudo que foi falado em espaços de missão integral, posições públicas claras a respeito dos rumos autoritários e antidemocráticos que o país estava tomando. O silêncio, nesta conjuntura histórica que o Brasil entrou, seria nada menos do que vergonhoso à herança protestante e à recente construção teológica da própria missão integral; Entretanto, muitos agentes silenciaram, foram silenciados, inviabilizados institucionalmente ou acuados pela ascensão de uma nova direita histriônica, persecutória e virulenta na sociedade brasileira. Sobrou apenas a demanda por posicionamentos e responsabilidades. Sobrou silêncios.
[x] as organizações e instituições que se sustentam comercialmente dos discursos teológicos da igreja evangélica [discursos que, ao circularem nas igrejas, criam um volume significativo de demanda de mercado religioso], ou seja, editoras, livrarias, eventos, acampamentos, congressos, organizações filantrópicas e missionárias, passam a demandar, também, uma definição de posicionamentos políticos do campo evangelical ou, no mínimo, uma previsibilidade discursiva dos seus agentes, em cima dos quais elas organizariam suas estratégias de linguagem e imagem para voltar a vender a famigerada relevância social da igreja.
[x] por causa do contexto de extrema politização, estas organizações comerciais do campo religioso evangélico passam a adotar a linguagem política – ou a estética transgressora, rebelde, contestatória e revolucionária presente na maioria dos campos discursivos da sociedade – como estratégia de mercado religioso. Realiza-se uma apropriação das estéticas da política para vender conteúdos teológicos no interior do campo religioso. Ex.: editoras ou marcas de produtos evangélicos notadamente conservadoras publicando obras ou referências estéticas à Dietrich Bonhoeffer ou Martin Luther King, como forma de capitalizar o interesse, especialmente das juventudes, em temáticas políticas. Uma tentativa de capturação da linguagem e de imposição de limites interpretativos às obras e das pautas públicas destas figuras. Uma espécie de censura velada, violência doce, notável tática de contenção da liberdade de pensamento político no campo religioso evangélico. Nota-se também um certo revisionismo histórico e um enquadramento narrativo – movimentos típicos deste tipo de momento político que estamos atravessando. Reescrever a história, reeditar as memórias, perverter as consequências políticas das obras/pessoas, sem perder de vista os usos conservadores de suas imagens transgressoras e a performance anti-sistêmica e iconoclasta deste tipo de movimento revisor.
[x] a igreja evangélica majoritária adere ao bolsonarismo político e teológico. Mais uma vez, o campo evangelical e protestante está rachado entre uma tendência protofascista de ultradireita (majoritária/hegemônica) e demais vertentes políticas [cridas à época como desviantes da fé cristã, inclusive]. Era/é o bolsonarismo político, ideológico e teológico como verdade divina no cerne do posicionamento majoritário do campo religioso evangélico e a apostasia e o erro espiritual/moral nomeando quaisquer das opções que não fossem/sejam essa.
4.
Assim, aqueles que começaram a se movimentar para sair de um silêncio conveniente e auto-preservador, ou do sufocamento discursivo imposto pelas milícias digitais bolsonaristas, ou, ainda, de uma possível esterilidade política-pública num momento chave da democracia brasileira ou, simplesmente, do desaparecimento da própria imagem, em busca de um aproveitamento estratégico deste clima de politização geral e, ao mesmo tempo, diferenciação de si mesmos em relação a estes cenários de polarização e bolsonarismos citados acima, passam a se posicionar de uma forma nova nas mídias sociais.
Visando um aproveitamento de imagem da efervescência política no campo cultural amplo e diferenciação das massas bolsinaristas, forja-se um tipo novo de posicionamento midiático, uma nova estratégia discursiva para a internet entre agentes protestantes-brancos-aderentes à lógica da relevância social da igreja. Sob um risco ainda maior de esquecimento e insignificação, o que seria um duro golpe do bolsonarismo no já tradicional narcisismo das figuras públicas do protestantismo-evangelical, estes agentes e instituições precisaram reinventar seus posicionamentos políticos no espaço público-virtual.
5.
E aqui está o cerne do problema que se pretende colocar: O espaço público-virtual, com todas as suas máquinas algorítmicas, ótimas para produção de imagens redimidas, como num platonismo cybercult, facilita que estes agentes, em busca de diferenciação e em busca de novas oportunidades de circulação discursiva, dissimulem suas presenças público-virtuais, sem que em suas práticas cotidianas precisem enfrentar o bolsonarismo cultural que colonizou as espiritualidades evangélicas no país. Emergem posicionamentos midiáticos vazios de comprometimento político real, ou radicalmente divorciados das práticas cotidianas destes mesmos agentes. Progressismos virtuais ocultando práticas cotidianas idênticas àquelas que condenam nas mídias.
Nós estamos acompanhando um fenômeno de mídia, discurso e poder: pastores, artistas e políticos da branquitude teológica e ministerial, ex-missão integral ou correlatos, que não podem ou não conseguem enfrentar a instalação da mentalidade bolsonaristas em seus espaços cotidianos de práticas discursivas, conseguem, na internet, um espaço privilegiado de reconstituição ou refazimento de suas imagens de progressistas.
O que já era um dilema histórico do protestantismo-evangelical brasileiro, a saber:
a] a dissimulação de um progressismo moderno, liberal e democrático,
b] o fundamentalismo de estética culturalmente transgressora,
c] um “conservadorismo de vanguarda”: inovador em seus remakes imagéticos, violento em suas éticas, valores e políticas;
d] a devoção à “neutralidade”, fundada no mito de um conservadorismo pseudo-equilibrado-intelectual-sofisticado-racional, que deve ser preservada a todo custo como “testemunho de fidelidade à universalidade do evangelho“.
e] e, por fim, a larga capacidade midiática de se esquivar dos desafios históricos e políticos da sociedade brasileira [problemas de gênero, racismo estrutural, desigualdades sociais em acelerado aprofundamento, precarização do trabalho, violência de Estado, extermínio de povos e culturas tradicionais, destruição ambiental etc] ao mesmo tempo em que forjam teologias/discursos religiosos capazes de ocultar estas problemáticas [ex.: basta uma retomada das memórias das posições das lideranças evangélicas diante dos escândalos da ditadura militar no Brasil: esquiva e dissimulação],
> ganha potência com as novas métricas, linguagens e códigos das redes sociais.
O comportamento auto-preservador e autorreferente ganha potência midiática: novas operações algorítmicas, técnicas de gestão de conteúdo, ferramentas de inbound marketing (2), adwords e bigdata para garantir o sucesso da performance discursiva pseudo-progressista. Branding teológico (e do teólogo) devidamente calculado em seus mínimos detalhes. A empresa de fake-news da política religiosa.
Que mudança substancial a internet está operando na prática discursiva destes agentes religiosos?
6.
Se faz sentido pensar nos discursos como práticas que formam e reformam as realidades sobre as quais se falam e os motivos e objetos aos quais se designam, no caso do momento religioso em questão, percebe-se que, por meio da internet, esses agentes estão performando discursos com a estratégia de formarem e reformarem a si mesmos neste brasil pós-bolsonaro, uma vez que em suas práticas cotidianas não são e não foram capazes de organizar uma resistência real e comunitária às espiritualidades fascistas recorrentemente acionadas pelo novo governo. Como não têm sido politicamente capazes de um enfrentamento prático e concreto, redimem-se a si mesmos por meio de seus discursos virtuais.
Isso não é tudo, porém. Não devemos pensar, apenas, nos atos de fala dos sujeitos falantes, mas, especial e atentamente, no como a internet ultrapassa o ato de fala para adicionar ao ato de fala uma performance midiática capaz de des-locar seus sujeitos dos contextos concretos de onde falam. Como se eles fossem praticamente revolucionários, mesmo que suas realidades políticas sejam cultural e profundamente fundamentalistas.
Não existe discurso universal, a-histórico, divorciado de uma posição de gênero, raça, classe. O problema que queremos colocar é que, estrategicamente, na internet, é possível dissimular essa premissa. Uma vez que o sujeito da fala, ali, na posição de profile, de perfil, pode simular/virtualizar uma existência. É como na religião – a virtualidade das palavras e das pessoas ocultam a posição histórica do discurso.
E esse é um fenômeno comum entre agentes protestantes-evangelicais da branquitude religiosa neste espaço público-virtual: a performance do progressismo, a virtualidade do progressismo, a maldição de uma imagem pluralista, democrática, republicana, enquanto esta mesma virtualidade das redes esconde práticas históricas totalmente contrárias àquilo que seus perfis performam nas redes. A formação de um discurso esclarecido, lúcido, equilibrado, racional – quase um bonapartismo das palavras religiosas – que, na real, sustenta a presença público-virtual do falante enquanto progressista, ao mesmo tempo que esconde o fato de sua presença pública-real ser estruturalmente racista, conservadora, fundamentalista, autoritária, censuradora, bolsonarista.
Nota
(1) Rebranding é o fundamentalista de tatuagem, hipster/descolado, figuras de aparências transgressoras, porém, mentalidades repressoras, policialescas, disciplinadoras, discriminatórias e punitivistas; de imagens desconstruídas e subjetividades doutrinadoras, repetidoras, colonizadoras. Nas palavras do marketing, universo original deste conceito, rebranding é o nome dado às ações estratégicas que buscam reposicionar uma marca no mercado e na percepção do consumidor. A prática é constantemente adotada por empresas com a imagem prejudicada ou que buscam se aventurar em novos mercados. Rebranding é o ato de ressignificar a imagem de uma empresa ou produto. Ou seja, uma estratégia planejada, cujo objetivo é mudar a percepção do público com relação à marca.
(2) Em uma tradução livre, o termo Inbound Marketing pode ser definido como marketing de atração. A principal diferença entre o marketing tradicional – que chamamos de Outbound Marketing – e o Inbound é que, no segundo, quem procura a empresa é o cliente e não o contrário. Ou seja, são realizadas ações com o intuito de atrair o potencial cliente para seu blog ou site e, a partir dessa atração, é feito todo um trabalho de relacionamento com essa pessoa. Esse relacionamento é desempenhado por meio de conteúdo personalizado e autoral. Esse conteúdo é uma forma de “educar a audiência” e potenciais clientes sobre o segmento de sua empresa, transformar sua empresa em referência em determinado assunto relacionado a seu mercado e influenciar na decisão de compra de futuros clientes.
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