A propósito dos 50 anos de I Have a Dream de Martin Luther King Jr.
A sociedade brasileira passou por grandes mudanças nos últimos 30 anos com a redemocratização e o processo de construção de uma nova república. Na proa dessas mudanças está a percepção de que ambos necessitam aprofundamento e radicalização. Por ser sempre cheia de contradições, devido aos desvãos entre o que está escrito no papel e a nossa experiência concreta, há sempre a necessidade de sua afirmação através de mecanismos participativos que redefinam a democracia no processo mesmo de sua radicalização. Sabemos que a democracia é antes de tudo um processo, que exige permanente crítica e autoconsciência para desbloquear mecanismos de concentração de poder e ampliar o escopo de participação no processo de reflexão e tomada de decisões.
Mas como democratizar a democracia sem o desabrochar no espírito de cada cidadão e cidadã a consciência da exigência ética de fazê-lo? Aí está um desafio de primeira ordem.
50 anos atrás, em agosto de 1963, um pastor batista, negro, discursou diante de 250 mil pessoas na maior manifestação da história dos Estados Unidos, a Marcha de Washington por Trabalho e Liberdade. Naquela tarde de verão na capital estadunidense, Martin Luther King Jr. proferiu um de seus discursos mais aclamados: I Have a Dream [Eu tenho um sonho] (1). Nele, King destaca não apenas a realidade de segregação e discriminação ainda vigentes na época, mesmo depois de 100 anos da Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln. Tece um panorama imagético capaz de dar aos seus ouvintes o norte moral para a luta por direitos civis e por melhores condições de vida para os negros e negras estadunidenses.
Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e corresponderá em realidade o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos essas verdades manifestas: que todos os homens são criados iguais’.
Tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da irmandade.
Tenho um sonho de que um dia até o Estado do Mississipi, um Estado desértico que sufoca no calor da injustiça e da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e de justiça.
Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter.
O sonho do pastor batista Martin Luther King Jr. está profundamente enraizado na tradição dos Direitos Humanos presente na Constituição e na Declaração de Independência americana, mas também está profundamente enraizado nas Escrituras.
Tenho um sonho de que um dia cada vale será elevado, cada colina e montanha será nivelada, os lugares acidentados serão aplainados, os lugares tortos serão endireitados, a glória do Senhor será revelada e todos os seres a enxergarão juntos.
Essa é nossa esperança. Essa é a fé com a qual retorno ao Sul. Com esta fé poderemos talhar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar os acordes dissonantes de nossa nação numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé podemos trabalhar juntos, orar juntos, lutar juntos, ir à cadeia juntos, defender a liberdade juntos, conscientes de que seremos livres um dia.
Sabemos que a situação dos negros nos Estados Unidos avançou se comparado ao que era na década de 1960, mas continua a exigir vigilância e compromisso ético de políticos e cidadãos estadunidenses. Há muito ainda a avançar para transformar o sonho de King numa realidade que seja irreversível para futuras gerações. No entanto, é exatamente essa esperança que continua a catalisar a ação de antigos e novos movimentos sociais que surgem para lutar contra os desafios do presente e a inspirar milhares de pessoas nos Estados Unidos e no mundo inteiro a não cruzar os braços enquanto todos os seres humanos forem tratados como iguais.
Martin Luther King, Jr. teve essa capacidade de liderar um movimento não apenas com as ferramentas do ativismo não-violento, pressionando por transformações profundas onde só havia a hipocrisia e tibieza moral de sempre; ele também soube galvanizar através do que pregava e discursava a atenção de todos, apontando para o tipo de esperança em que deveríamos nos apoiar: igualdade, liberdade, justiça, paz, reconciliação, amor. Ao fazê-lo, entrou para a galeria dos grandes líderes da história dos Estados Unidos, considerado mesmo como um de seus founding fathers, nas palavras do historiador Taylor Branch.
Mas seu discurso foi proferido para 250 mil pessoas, vindas de todas as partes do país, de inúmeras organizações país afora, querendo mais democracia, mais justiça, mais igualdade. Eles eram uma massa de cidadãos e cidadãs comprometidas e organizadas para renovar a democracia estadunidense no sentido de incluir a todos, de fazer valer a letra da lei, e mesmo mudá-la, como era necessário naquele momento.
Se temos uma lição aqui é a de que a democracia não se constrói a partir dos discursos, por mais inteligentes e inspiradores que eles sejam. É claro que lideranças morais como a deste pastor batista jovem e negro, bastião da reconciliação, da paz e da não-violência em tempos de grande acirramento e luta social, foram extremamente necessárias e bem-vindas e continuarão sendo. No entanto, parece-me que sem essa intransigência e compromisso éticos de milhares de cidadãos e cidadãs que levantam suas vozes, que sentam para conversar sobre as causas da injustiça e da desigualdade e que decidem cerrar fileiras para promover mudanças inadiáveis, estas têm poucas chances de ocorrerem.
Nesse sentido, as manifestações que ocorreram em junho podem ser sinais de que esse espírito cidadão de intransigência ética e luta pela justiça pode estar se ampliando no Brasil. Por isso é louvável também que um grupo de organizações evangélicas tenham convocado as igrejas locais para conversar sobre a agenda que emergiu com grande força das ruas, a saber a necessidade de políticas públicas de qualidade, com uso adequado do dinheiro público e a radicalização da democracia brasileira, abrindo mais canais de participação direta da população (2).
Se nas milhares de igrejas evangélicas desse país os cidadãos e cidadãs ali semanalmente reunidos começarem a conversar sobre como podem contribuir para que a democracia brasileira seja mais participativa e justa, para que os serviços públicos sejam de qualidade e alcancem igualmente a todos, e para que mecanismos de boa governança e transparência sejam ampliados a fim de que a corrupção e a má gestão do dinheiro público sejam coibidos; se estes milhões de cidadãos evangélicos se juntarem a outros milhões de cidadãos de outras confissões religiosas ou de nenhuma e assumirem o compromisso de radicalizar a democracia brasileira, então podemos ter esperança de que sonhos como o de Martin Luther King Jr., ancorados na tradição dos direitos humanos e das Escrituras, não são peças de retórica de um ativismo passado mas a inspiração que se renova numa fé inabalável na construção coletiva do bem comum.
A imaginação moral de Martin Luther King Jr. ajudou a moldar a agenda de reconstrução da democracia estadunidense, na direção da ampliação das fronteiras da igualdade, da justiça e da liberdade. Mas foram os corações, as mentes e as mãos de milhares de cidadãos e cidadãs eticamente mobilizados que cotidianamente foram dando forma aos anseios daquela geração nos últimos 50 anos. O Brasil que sonhamos também será fruto das milhares de vozes, corações, mentes e mãos que trabalham juntos, oram juntos, lutam juntos, defendem o bem comum juntos e pagam o preço juntos de não se conformar com nada menos do que democracia para todos e uma bela sinfonia de fraternidade.
Notas
(1) Leia a íntegra do discurso de Martin Luther King Jr. em português neste link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/125767-eu-tenho-um-sonho-50-anos.shtml. Você pode também ouvir o discurso tal qual proferido em 28 de agosto de 1963 neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=smEqnnklfYs.
(2) Um coletivo de organizações convocou a Consulta Nacional às Igrejas – Evangélicas, Democracia e Participação, de 14 de agosto a 15 de setembro, a fim de incentivar as igrejas e grupos evangélicos a conversarem sobre os temas que estão na agenda nacional após as manifestações de junho. As organizações que promovem esta iniciativa são: Aliança Cristã Evangélica, Conselho Latino-Americano de Igrejas – Setor Brasil, Evangélicos pela Justiça, Fraternidade Teológica Latino-Americana – Setor Brasil, Rede Evangélica Nacional de Ação Social – RENAS, Rede FALE, Sepal, Tearfund e Visão Mundial.