Evangelho
Sou homem: duro pouco e é enorme a noite.
Mas olho para cima: as estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo: também sou escritura
e neste mesmo instante alguém me soletra.
— Octavio Paz
“O que será dele?!”
Da aldeia violenta e de má fama onde cresceu, o rapaz provinciano madruga, como é o seu costume, mas desta vez não para ir ao trabalho com seus mil ofícios. Com o coração feito um punho, vagueia fugidio no dia nublado que se empenha em clarear. Desencaminha-se de sua casinha em Nazaré. Suas costas vislumbram, doloridas, sua retirada.
Para trás sua mãe, Maria, e os seus. Para trás as migalhas do último pão que partiu com eles à mesa.
Decidiu romper qualquer jejum de silêncio, e com seu ser ardendo como a sarça de Moisés, parte porque lhe urge se juntar às vozes furibundas, destroçadas, aflitas de seu povo.
Traz uma esperança: que seu desassossego tropece com a desorientação dos milhares que na margem do rio Jordão se acotovelam diante de um tal João, para renderem-se ao batismo que exige arrependimento e transformação.
Vai ruminando seus sonhos e não poucos temores.
Ah, maldita a hora em que fui cantar!
Ah, maldita a hora em que fui gritar!
Sim, gritando se chora para calar
E meu copo sedento não chega ao mar…
E assim se foi a estrela a sua liberdade
E assim se foi o rio a sua claridade.
— Chabuca Granda
Jesus parece ter herdado a coragem da adolescente que, ao se saber grávida fora do matrimônio, decide por si mesma sobre seu corpo, e assume a responsabilidade de ser sua mãe.
A mesma que pouco tempo depois viajará sozinha, como todos os profetas antes dela, e declarará a sua prima Isabel a esperança ardente e a fé determinada que a habitam:
Ele realizou poderosos feitos com seu braço;
dispersou os que são soberbos
no mais íntimo do coração.
Derrubou governantes dos seus tronos,
mas exaltou os humildes.
Encheu de coisas boas os famintos,
mas despediu de mãos vazias os ricos.
Ajudou a seu servo Israel,
lembrando-se da sua misericórdia.
Esta é a oração da adolescente grávida. Deus é, para ela, aquele que transtorna as estruturas de poder daqueles que oprimem, e nessa convicção, não pode haver temor. Contesta todas as determinações sobre sua gravidez e dará à luz com animais por testemunhas em um estábulo com cheiro de cevada e esterco. O menino que a habita é um sonho de Deus, e chega em um mundo horrendo mas também bonito. Um mundo no qual é preciso lutar e amar. Lutar e amar.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
— Fernando Pessoa
Dois mil rebeldes foram crucificados no caminho de Séforis, uma importante cidade galileia a apenas cinco quilômetros de Nazaré, quando Jesus era criança. Aterrador. O general romano Varo deixou os corpos expostos à rapina e fedor até a morte, seguro de dissuadir qualquer tentativa futura. Não conseguiu. Seres iracundos e luminosos, perfilados contra a crueldade dos exércitos estrangeiros e o escárnio de suas autoridades políticas e religiosas, levantaram-se vez após vez. A Palestina no Século I estará cheia de profetas.
Desde as margens do império romano, no deserto da Judeia — um lugar bravio e desprovido de misericórdia nas ribeiras do rio Jordão —, uma voz se levanta mais forte que todas e consegue congregar a todos os que falam as línguas da desigualdade.
João arde. E queima tudo o que sai de sua boca.
“Vestido de deserto”, seu corpo também fala. Coberto em pele de camelo e alimentado incongruente aos rituais de pureza, protesta contra a hipocrisia religiosa, adicta à injustiça.
Denúncia, resistência, provocação.
Está nas margens, onde na verdade as coisas acontecem espiritualmente. Distancia-se do centro do poder e atrai as pessoas que vêm desde muito longe para ouvir sua mensagem estrondosa.
Confrontativo, intenso em sua natureza, chocante. O filho de um clérigo judeu agora condena a instituição religiosa, furioso com a classe sacerdotal que se perverteu. É uma criatura apocalíptica que exige arrependimento, uma confrontação máxima e visceral para achegar-se ao reinado de Deus.
Jesus crê na mensagem de João; também no profeta que é mensagem. Nesse juízo imediato e na chegada do reino de Deus, onde Antipas, Pilatos e Tibério não têm lugar. Essa pregação o arrebata. Urge a ele desse modo — não há outro — atender à Vida. Decide ir ao seu encontro e lhe pede para ser batizado.
Quando se cumpre o tempo, o tempo se cumpriu. Deus não espera mais.
O tempo está dando à luz um coração.
Não pode mais, morre de dor,
e é preciso acudir correndo
pois se cai o porvir.
Devo deixar a casa e a poltrona.
A mãe vive até que morre o sol,
e é preciso queimar o céu
se é preciso, por viver,
por qualquer homem do mundo,
por qualquer casa.
— Silvio Rodríguez
Cedendo à inquietude, faz sua escolha.
Jesus permanecerá imantado um pouco ao deserto da Judeia depois desse batismo com João. Não para fugir da vida mas para penetrar nela e em si mesmo, apenas com os seus próprios ruídos.
O jovem provinciano galileu peregrinará no deserto ruminando a graça e as desgraças que a existência lhe cultivou: a desesperança do trabalhador sem-terra, expulso de sua herança davídica por uma economia que retrocedeu, sem similitude. A solidariedade que se gesta entre os pobres, com essa forma de beber aos goles a esperança.
Nas entranhas calcinantes daquele deserto fará uma oferta. Confirmará a vocação que o elege e que Ele elegeu. Ninguém lhe impõe um dever ser; e por isso, chega o dia impostergável. Porque quando nos fazemos carne nos outros, o escárnio ultraja, a miríade de estertores e violências contra “os outros que eu sou” são insuportáveis, convulsionam nossas entranhas. Então o ser se exige co-mover-se.
E assim parte ao seu, e aos seus.
Ontem sonhei com os famintos, os loucos,
os que se foram, os que estão na prisão.
Hoje despertei cantando esta canção
que já foi escrita há tempo atrás,
é necessário cantar de novo
uma vez mais.
— Charly García
Jesus decide habitar entre nós escutando “as outras vozes”, as dos demais, com fome de comunhão, com uma ânsia congênita pelos outros.
Simples. Sem artifícios, sem filtros, sem nenhum ardil.
Com a mínima prudência e a reputação já prejudicada, se juntará com os expropriados de amizade: trabalhadoras do sexo, cobradores de impostos, enfermos malditos, estrangeiros. Chamará a todos de “mãe, irmãs e irmãos”. A paixão pelos outros, por TODOS os outros, será sua crítica radical ao sistema patriarcal a partir do que sente.
Reinventará o amor, a compaixão, a dúvida.
Vertiginosamente, defenderá a vida de uma adúltera dos que se sentem no direito de matá-la, crendo-se seres humanos melhores. Tocará leprosos com fome de carícias. Motivará a tenacidade dos que têm não só as pernas paralisadas, mas a vida. Repreenderá os que expulsam de perto as crianças que se achegam. Com admiração escutará a mulher que extinguindo-se pelo medo e as proibições, arrebata sua saúde e deixa de sangrar depois de doze anos de enfermidade. Em prantos, ressuscitará seu amigo.
Será deslocado. Entrará em espaços que revelarão suas angústias, a força da cultura em que cresceu, seus vieses e preconceitos. Submerso nesses desvarios, deixará ser interpelado, formar para a vida para além de suas fronteiras existenciais como judeu. Como em seu encontro com a mulher siro-fenícia e sua filha endemoniada, quando a demanda manifestada pela mulher — mesmo depois de que as chamara de “cachorrinhos”— germinará nEle. Admiração, mudança de perspectiva, conversão.
Em meio à violência de gênero, à subsistência, à precariedade, muitas, muitíssimas mulheres seguiam Jesus na Galileia. Elas foram amigas, discípulas, companheiras de missão. Entretanto, ao que parece, Jesus não ia acompanhado de nenhuma esposa. Jesus era um rabino, um mestre não ordenado, e muitos deles não se casavam. Como ele mesmo disse uma vez: “Há quem se fez a si mesmo eunuco por amor ao reino dos céus”. Mas ainda que exista a possibilidade de que Jesus tenha sido casado ou viúvo antes de sua vida pública, como era costume em seu contexto, a verdade é que não o sabemos.
O que sabemos é que sua proclamação do reino era estrondosa em nível político-estrutural, como também desde a intimidade, a afetividade e o corpo.
Pelo seu modo de viver, essa sua escolha de amar a partir do cisma, do delírio e da insurreição, seu corpo estará constantemente em um estado de impureza ritual. Isso não lhe importará. Ele percorrerá seus dias sendo e sentindo, sentindo profundo. Sairá de sua zona de conforto, se exporá, colocará sua carne naquilo que realmente lhe queima por dentro. E isso, obviamente, não agradará o cânon.
Jesus vive em oração e em festa, e essa foi sua maneira de ser diante da adversidade. Dito desse jeito, faz todo o sentido do mundo, mas seu ímpeto nem sempre encontrava correspondência na realidade da consideração com que lhe tratavam seus adversários. Sua poética vital questionou a hostilidade dos infelizes crônicos. Ele sabia que solenidade que não envolva dignidade é uma bobagem. Que um rabi/líder/profeta não é aquele que age exageradamente para aumentar sua importância; nem um político ou religioso poderoso é necessariamente uma autoridade.
E assim, em meio à impunidade e à tirania de Roma e seus feudatários, Jesus gravitará sobre a palavra, e Ele mesmo será Verbo. Se ocupará em ser e dizer com toda a força que tem. Com humildade e transparência, como entregando-se, narrará histórias sobre injustiças, perdão, buscas, vida. Conhece seus sentidos, por isso mereceu que elas o habitem e possam ser contadas. Como um fio, como uma catarata: falará do reino, do reino de Deus.
Jesus convoca todos a buscá-lo, a arrebatá-lo com veemência. O anúncio do governo de Deus em um mundo “cheio de horrores” causa contradição, crítica, inconformismo, luta. Porque diante dos que engendram violências, dos que enchem o mundo de texturas de morte, diante dos que querem desatender a vida, sempre existiu os que extravasam a vida. A esses Ele reconhece como os seus.
Em favor da ilusão, vai de lugar em lugar resgatando, mas também sendo resgatado. Recebendo desse amor que existe entre o povo que vive na pobreza mas que não é miserável. Com todos eles, em banquetes improvisados, fará o milagre de transformar multidões de desconhecidos em comunidades.
Dirão que saiu de moda a loucura,
Dirão que o povo é mau e não merece,
Mas eu continuarei sonhando travessuras
(por acaso multiplicar pães e peixes)
— Silvio Rodríguez
Assim Jesus andou na Galiléia, na alienação consciente, na sublimação constante do que os abúlicos chamam loucura. Com esse Espírito, e com fama de exorcista e curandeiro, voltará a sua aldeia.
Na sinagoga de Nazaré lerá aos tropeções o profeta Isaías. Ao tentar lhes explicar o texto, seus conterrâneos o violentarão: “O filho do carpinteiro José está se achando!”. Parece irritá-los que seja o corpo do garoto provinciano, e não o dos sacerdotes ou escribas, que pretenda ensiná-los sobre Deus e Sua justiça.
É que sempre o vinho novo, o reino de Deus, arrebenta os odres velhos acostumados à religiosidade rançosa.
Expulsam-no, quase o matam. Então ele decide continuar o seu caminho vinculando-se com as pessoas mais oprimidas, contestatárias e radicais de sua nação. A urgência da vida, apertada em seu ser como um maço de cantos, gritos, prantos, abraçando os protestos de todas as vozes, sacode, golpeia. Eles se insubordinam por e com sua nação. Porque a esperança nunca surge de um só indivíduo. Quando as pessoas se juntam com fome de ilusão, é quando em verdade ela irrompe. Juntos, revoltosos, irmanados. Desse jeito.
Mas Jesus, ao mesmo tempo em que declarava amor, também praguejava. A quem ele considerava que ultrajava a vida, ele insultava. De atitude punk, incômodo, ninguém esquecerá que Jesus afrontou a ordem natural do templo com um chicote que ele mesmo fez, destroçando raivosamente os negócios dos que haviam convertido a fé em um bem de consumo. Destroça tudo e nunca, jamais, se justifica por isso.
É que Jesus não é um galileu armado, é um ser apaixonado por Deus e totalmente convencido de que vai instaurando seu reino. Um homem próximo, alegre, livre e esperançado. Um homem íntegro que não despreza o vinho. Que ama tanto a dignidade como a liberdade. Por isso sua pregação absolutamente religiosa também é decididamente política.
Mas o Messias da guerra e do social não tinha espaço no império romano.
Quando se declara que Ele era o que “havia de vir”, o faz sabendo de todas as consequências. Sabe que é uma afronta política da qual ninguém escapa com vida. E lembra a fila de crucificados no caminho de Séforis, que viu quando menino.
Perdoará.
O povo pensa que ele tinha cerca de trinta e três anos quando um dos seus amigos mais chegados o entrega às autoridades religiosas, identificando-o com um beijo. Aprisionam-no e conseguem acusá-lo de sedição contra o império. Torturam-no. Na cruz onde é assassinado, escrevem a acusação contra Ele: “Jesus nazareno, rei dos judeus”.
Onde estão as palavras, a casa, meus antepassados,
Onde estão meus amores, meus amigos?
Não existem, meu filho.
Tudo está por construir.
Deves construir a língua que habitarás,
construir a casa onde não vivas só
e encontrar os antepassados que te façam mais livre.
E deves construir a educação sentimental
Com a qual amarás de novo.
E tudo isto edificarás sobre a hostilidade geral,
porque os que despertam são o pesadelo dos que ainda dormem.
— Tiqqun.
Ressuscitará.
E a vida não será absurda, nunca mais.