Imagem e semelhança: Uma breve reflexão de duas jovens pretas, cristãs e lésbicas
Por Ariane Barbosa e Ingrid Niara*
Para muitas pessoas crescer dentro de uma igreja evangélica significa conhecer uma única verdade sobre espiritualidade. Muitos estudiosos, filósofos, psicólogos e pedagogos afirmam que é muito benéfico para o ser humano a exposição a diversas culturas e diversas experiências desde a infância, para que ele possa se constituir como ser humano em sua totalidade. Porém, o incentivo à reflexão e pesquisa é algo raro na maioria das igrejas evangélicas. Por vezes, ao contrário do que esperamos, nos ensinam a odiar pessoas que professam uma fé diferente da nossa e nos ensinam a odiar a nossa sexualidade, se ela desperta diferente do que seria uma sexualidade nos moldes tradicionalmente considerados cristãos. Porque não somos capazes de compreender a premissa máxima e simples do evangelho que é o amor, consequentemente nos sentimos presos dentro de uma bolha.
Quando se “nasce em berço cristão”, corre-se um enorme risco de se conhecer uma verdade única. Lamentavelmente corre-se o risco de passar anos da vida compreendendo o mundo sob uma única ótica, o que é terrível, pois vivemos em um mundo diverso, criado por um Deus que ama a diversidade.
Nós, mulheres pretas, crescemos dentro dessa bolha, enxergando o mundo sob essa ótica preconceituosa, violenta e racista. Me pego (Ariane) refletindo sobre esses abusos e uma das lembranças mais terríveis que tenho foi quando em uma reunião de jovens me vi orando de forma preconceituosa contra ritos de religiões de matrizes africanas. Por diversas vezes, incentivada por uma teologia branca e excludente, eu neguei a minha ancestralidade e desrespeitei os meus iguais, que apenas acreditavam em algo diferente do que eu julgava ser a verdade absoluta. Fui incapaz de olhar para o outro além das suas escolhas, e mais uma vez não cumpri o maior mandamento de todos: amar o próximo como a si mesmo. Quando desumanizo meu irmão, eu digo não para Deus, pois somos todos criados à sua imagem e semelhança, com todas as suas cores, formas, nuances e sons. Com toda a diversidade que Ele criou.
Durante a nossa adolescência diversos movimentos sobre a pauta antifascista nasceram e ganharam força. Surgiram também movimentos de inclusão de jovens pretos em universidades (cotas raciais), movimentos aos quais já fomos contra, por pura ignorância e alienação. A sociedade estava evoluindo, o mundo estava mudando, mas lamentavelmente isso só acontecia da porta pra fora da igreja. Essas pautas borbulhavam em nós, nossas origens gritavam, era um misto de desconstrução e dor.
Diariamente, questões como: “Qual seria a verdadeira imagem de Deus?” ou “Com qual cultura ou povos Ele se assemelha?”. Isso martelava na nossa cabeça e não tínhamos respostas e ainda não sabíamos onde encontrá-las.
Nos questionávamos: Por que o Grande Criador fez pessoas com diversas características físicas, formas de pensar e comportamentos tão diferentes?
Se observarmos o planeta Terra do espaço, podemos encontrar diversidade desde o formato e tamanho dos continentes, até a quantidade de espécies de animais marinhos, por exemplo. O mundo é diverso, logo, deduzimos que Deus ama as diferenças. Mas porque pessoas como nós, com características físicas como as nossas, viviam de forma tão desumana e a igreja não fazia nada em relação a isso? Dentro dos próprios templos evangélicos, pessoas pretas viviam à margem. Essas questões nos incomodavam.
Em outubro deste ano, em uma das celebrações da IBAB (Igreja Batista da Água Branca), o pastor Ed René Kivitz afirmou que a Bíblia precisaria passar por uma atualização se quiséssemos ser cartas para o novo mundo; caso contrário, seríamos textos mortos que descrevem o velho mundo. Ele abordou pautas como racismo, machismo, homofobia e outros abusos cometidos dentro das igrejas, usando textos bíblicos como defesa para tais atrocidades. E o que aconteceu com o pastor Ed René? Ele foi rechaçado pelo conservadorismo religioso. O que acontece com as pessoas que peitam esse cristianismo violento e excludente? Elas são canceladas, elas são desumanizadas.
Gostamos de acreditar que a Bíblia é um livro atualizado e que dialoga conosco dia após dia. Mas quem lê a Bíblia consegue não fazer uma interpretação literal?
Podemos usar os textos bíblicos como palavras de conforto, mas também podemos utilizá-los como arma de ataque, dependendo da forma como lemos. Se lermos a passagem de Efésios 6:5 de forma literal, podemos dizer que a Bíblia não condena práticas escravistas. Porém, em Isaías 58:6 diz que: “Quem ama a Deus deve lutar contra sistemas de opressão.” A palavra de Deus é viva, é atualizada, mas nós precisamos nos assemelhar a Cristo para que a nossa interpretação dos textos seja humana e descolonizada. Para que possamos ler despidos de racismo e preconceito.
Hoje é Dia da Consciência Negra e gostaríamos de ter crescido entendendo e refletindo a importância desse dia dentro dos espaços religiosos que ocupávamos, gostaríamos de não ter tido nossa ancestralidade demonizada. Não acreditamos que hoje seja um dia de comemoração, não vemos motivos para comemorações. Seria muito bom se todos utilizassem o 20 de Novembro como um ponto de partida para fazer a diferença dentros das igrejas que participamos, nos textos que escrevemos, nos sermões que preparamos e no relacionamento com o próximo, que assim como você, é a imagem e semelhança de um Deus vivo e diverso que ama você.
* Ingrid Niara tem 27 anos, Designer preta e cristã, nascida na periferia de São Paulo, mãe da Maitê, namorada da Ariane e militante antirracista. Nascida no design gráfico aos 18 anos, passou pelas agências de publicidade Netshoes, Abyara, Bancada Preta e hoje é co-fundadora da @coletivabem.
* Ariane Barbosa tem 31 anos, é mãe da Helô e atua como Professora de Educação Infantil Bilíngue. Formada em Recursos Humanos e Pedagogia, iniciou a carreira há seis anos em instituições de ensino. Como mulher preta, atua com educação antirracista em empresas.