O evangélico perseguido pelo governo de Rondônia
2020 começou agitando o cenário que envolve religião-política, particularmente no que diz respeito ao protagonismo alcançado pelo segmento evangélico desde as eleições de 2018.
Já tivemos a controvérsia da Igreja Presbiteriana em Londrina, que abriu espaço em um dos seus cultos dominicais para toda a estrutura de coleta de assinaturas para a criação do partido do presidente da República Jair Bolsonaro, o Aliança pelo Brasil. As críticas à liderança da igreja levaram a Igreja Presbiteriana do Brasil a produzir uma nota declarando-se apartidária.
Tivemos ainda o evento classificado como “projeto missionário”, The Send – The New Era (O Envio – A Nova Era). Estadunidense e de posse de altas cifras financeiras, o The Send lotou, neste fevereiro, dois estádios de futebol em São Paulo e um em Brasília. O palco, marcado pelo logo, uma seta à direita (!), foi dividido entre estrelas gospel nacionais e estadunidenses, pastores famosos das mais variadas vertentes evangélicas, o presidente da República, Jair Bolsonaro, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A presença de políticos entre preletores do evento foi fonte de muito debate nas redes.
Mas não é a esses episódios que estão agitando o recém-iniciado 2020 que vamos dedicar este espaço. Vamos refletir sobre outro destaque do período, mas que está estreitamente relacionado aos outros: a censura a livros promovida pela Secretaria de Educação do Governo de Rondônia. O governador do Estado é o ex-coronel da PM Marcos Rocha (PSL), evangélico da Igreja Pentecostal Assembleia de Deus. Seu secretário de Educação, Suamy Vivecananda Lacerda Abreu, implementou a medida de recolher de cada escola do Estado uma lista de 43 livros considerados “inadequados às crianças e adolescentes”.
Ao ser divulgada nas mídias, a notícia foi inicialmente chamada de fake news pelo governo, mas acabou confirmada por um áudio vazado, atribuído à gerente de Educação Básica do Estado, Rosane Seitz Magalhães, que diz que o recolhimento foi “um pedido do nosso secretário”. Depois da saraivada de críticas à ação de censura, de viés obscurantista, o governo de Rondônia teve que voltar atrás na medida.
Obras de Mário de Andrade, Machado de Assis, Franz Kafka e Euclides da Cunha estão na lista, e também as do teólogo, psicanalista e educador evangélico Rubem Alves. Este com uma peculiaridade: era o único que tinha a bibliografia completa indesejada. “Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”, ordenava uma observação feita no pé da página da lista.
Esta foi uma das muitas perseguições a que Rubem Alves foi submetido. Morto aos 80 anos, em 2014, Rubem Alves publicou 160 obras em 12 países. Ele marcou muitas gerações de teólogos e teólogas, de pastores e pastoras, de gente das igrejas, como eu, interessada em pensar a fé e a vida com densidade e responsabilidade.
Meu primeiro encontro com Rubem Alves foi no fim da adolescência, em um programa de formação oferecido pela Igreja Metodista no Rio de Janeiro para jovens, quando a ditadura militar dava os últimos suspiros. Rubem Alves nos instigou a pensar o protestantismo no Brasil sob um viés crítico. Depois li suas obras “Protestantismo e Repressão” e “Dogmatismo e Tolerância”, ainda tão significativas para entender o mundo evangélico brasileiro. Fui embevecida com as palavras de “Reflexões sobre a Vida e a Morte” e “Creio na Ressurreição do Corpo”.
Ele articulava teologia com poesia, fazendo o mesmo na reflexão sobre educação. Como quando escreve: “Deus vê o mundo com os olhos de uma criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar”. E também: “sem a educação das sensibilidades todas as habilidades são tolas e sem sentido”. Fui inspirada também com as várias histórias infantis que ele redigiu.
O pensamento de Rubem Alves, que demandava uma nova visão da igreja, com relações mais livres, humanas e solidárias, o colocou em conflito com a Igreja Presbiteriana no Brasil. Ele foi realizar o doutorado nos EUA, justamente para escapar da perseguição: ele havia sido denunciado dentro e fora da igreja nos primeiros dias da ditadura militar. Rompeu com a Igreja Presbiteriana, quando voltou ao Brasil, pois esta, como declarou, “o havia negado, isolado e marginalizado”. Entretanto, nunca deixou de lado suas raízes evangélicas.
Quem conhece as obras de Rubem Alves e sua trajetória como pastor de esperanças e educador para a liberdade, entende porque gente de ultradireita, que trabalha pelos retrocessos deste país, condena suas obras.
A Sociedade Internacional Rubem Alves e o Centro Ecumênico Brasileiro de Experiências Pastorais publicaram nota, em 8 de fevereiro passado, em que declaram: “…tempos de estultice, ignorância e, sobretudo, ressentimento são tempos de queima, simbólica ou não, de livros e ideias. Mas eles em forma impressa ou eletrônica, resistirão a tal estupidez. Leia-se a estória dO Pássaro Encantado, ou o poema do último livro de Rubem Alves, Uma paineira branca, um ipê amarelo… e olhos e faces brilharão, a utopia vencerá o realismo e a liberdade assanhará corpos e mundos. Que o governo de Rondônia se recolha à sua estultice, até que, quem saiba, um pássaro encantado bata à sua porta, convidando-o a vencer medos, ressentimentos e ódios. E que a comunidade estudantil rondoniense diga não a esses ignotos, dizendo alegremente um viva à literatura!”.
Fonte: Carta Capital/Diálogos de Fé/12/02/2020