Por uma educação antirracista nas escolas bíblicas
Por Mateus Reis
Falar em educação antirracista é falar da luta de movimentos sociais, em especial, do movimento negro, para a promoção da educação como um direito social (1). E, ao pensarmos uma educação antirracista dentro do contexto protestante, o Movimento Negro Evangélico possui papel fundamental e preponderante no processo de conscientização do papel da educação na promoção da igualdade racial dentro das igrejas. O pecado do racismo permeia as paredes das igrejas evangélicas brasileiras desde os seus primórdios. A omissão e a falta de posicionamento perante a prática escravagista no Brasil fizeram parte dos primeiros anos do protestantismo no Brasil, e isso se perpetua até os dias de hoje.
A Escola Dominical (ED) é uma marca na história protestante (2). A prática pedagógica bíblica dentro das instituições evangélicas carrega uma importância não circunstancial e, apesar de um possível enfraquecimento do engajamento das igrejas nela, ainda é uma das chaves para a disseminação e a expansão do estudo bíblico. Mas num olhar mais crítico sobre essa prática do protestantismo, podemos destacar prós e contras.
Qual a pedagogia e qual a metodologia de ensino dessa escola dentro das igrejas? Sabemos que o ensino pela ED nas igrejas brasileiras possui como público-alvo principal as crianças e os adolescentes. Por meio do ensino bíblico e teológico no formato escolar, a construção de mundo, sociedade, espiritualidade e fé é germinada desde os primeiros anos, todos os domingos. Mas, a relação das crianças negras inseridas no contexto da igreja com o seu “eu”, a inserção de representatividade negra no conteúdo bíblico ensinado e o ensino do amor próprio e a valorização do seu ser, assim como uma pedagogia antirracista, é vista como uma chave para a emancipação de uma estrutura educacional “comum” nas relações raciais.
A reflexão sobre uma educação cristã conectada com a justiça social e contra as estruturas de opressão racistas vigentes na nossa sociedade se torna necessária para um possível rompimento com o status quo pedagógico cristão, uma didática, na maioria das vezes, tecnicista, pragmática e unilateral. Nos últimos anos, o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira é pauta nas escolas públicas e particulares de todo o país. Principalmente após a Lei 10.639/2003 (3), as instituições e os profissionais são forçados (e nem sempre estamos presenciando isso) a pensar e a quebrar paradigmas educacionais em prol de uma reparação histórica com o povo negro: o direito de conhecer a sua história, a sua ancestralidade, de construir a sua representatividade e de sentir inseridos em um processo pedagógico justo. Ao pensar isso para o contexto protestante e da ED, Oliveira (2013) nos proporciona uma reflexão maravilhosa de como isso deve ser visto dentro das igrejas:
“No espaço educacional eclesiástico, não se tem uma lei federal que garanta a obrigatoriedade de pensar e refletir sobre essa questão. O que se tem é muito mais que isso, não perpassa por obrigatoriedade, mas por sentido de existência, de ser comunidade, de ser igreja.” (p. 51).
Ao sermos provocados a não fazermos acepção de pessoas (Tiago 2.2), devemos pensar se a acepção de um indivíduo na igreja do Senhor ocorre apenas por preconceito ou por julgamento da sua forma de pensar, na sua condição de vida ou na sua aparência. Ao negarmos a uma pessoa negra que está dentro da igreja um ensino bíblico que valorize sua cultura, sua ancestralidade e a sua representatividade na história da religião, da fé e de Cristo, estamos negando a ela a oportunidade de uma experimentação plena e completa da verdadeira mensagem de Jesus: o amor completo e irrestrito Dele por aquela vida negra, o sentimento de pertencimento à família de Deus, a sensação de que a sua raça também foi moldada, pensada e vivida por Deus desde o princípio.
A Escola Dominical tem um potencial maravilhoso para ser um movimento necessário dentro da igreja brasileira: o entendimento de que questões raciais também são questões espirituais; de que, assim como em todas as instituições desse país, o racismo estrutural também atinge a igreja protestante, tornando-se um pecado estrutural (4); de que o racismo sofrido por irmãos e irmãs dentro e fora do ambiente eclesiástico reflete a sua composição como ser humano nessa terra, e reflete a sua fé e a sua vida com Deus.
É a percepção de que, sentado em cada cadeira, para além de um “crente”, existe uma pessoa inserida em uma sociedade complexa, opressora e cheia de desigualdades, que busca na fé cristã a redenção e a paz eterna mediante Cristo Jesus. E é essa igreja que deve assumir o papel, de forma completa e integral, de ensinar a Bíblia, valorizando a história de povos historicamente excluídos, de produzir materiais didáticos com as verdadeiras faces e as verdadeiras cores das histórias bíblicas e de formar professores e educadores dispostos a refletir sobre as relações raciais, baseados na Palavra.
Não levantamos essas questões com o objetivo de criar uma superioridade ou um “privilégio negro” no ensino bíblico e religioso das igrejas. Dialogamos em busca de igualdade dentro da nossa fé, com a reflexão de que, assim como todas as outras instituições desse país, a Igreja precisa pensar formas políticas de reparação e de ações afirmativas para a população negra protestante. Somos hoje mais de 36 milhões de cristãos protestantes negros nas igrejas do Brasil (5). Será que o racismo só atinge os que não estão dentro das igrejas?
Que tenhamos menos corações pretos (como o livro das cores sempre nos ensinou), e mais Rainhas de Sabá.
Mateus Reis é educador, faz parte do colegiado do Movimento Negro Evangélico de Belo Horizonte, ativista da educação antirracista no Brasil.
Notas
(1) OLIVEIRA, AF. Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos… Pistas para uma educação antirracista… Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013.
(2) Idem.
(3) BRASIL, Lei 10.639/2003.
(4) Pecado estrutural: pecado que não diz respeito ao comportamento individual. É um mal causado por um grupo ou sociedade, algo realizado de forma coletiva, com consequências sociais. “Revela que há estruturas sociais, econômicas, políticas ou culturais que são pecaminosas – produzem sofrimentos, opressões, o mal – pelo próprio funcionamento da sua lógica, quase que independente das intenções das pessoas envolvidas nestas estruturas”. Fonte: Aliança Bíblica Universitária – ABU: Negritude, fé e racismo: Entendendo a identidade negra e a relação com a fé. Lutando contra o racismo.
(5) Datafolha (2020). Acesso em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml