Tortura, sistema prisional e a condescendência evangélica
Estive preso e foste me visitar (Mateus 25,36)
Nos últimos dias o Brasil tem acompanhado os relatos bizarros de tortura nos presídios do Pará, que está sob Intervenção Federal depois de um massacre ocorrido numa unidade prisional em Altamira no fim de julho desse ano. Os relatos confirmados pelo próprio Ministério Público (MP) citam situações de presidiários perfurados com pregos, estuprados, órgãos genitais esfolados, mulheres obrigadas a sentar nuas em formigueiros, aborto provocado por espancamento, além de outras práticas abjetas e que ferem mortalmente a dignidade e os direitos humanos. Ao serem questionados sobre as denúncias vigorosas do MP, o presidente e o atual ministro da Justiça qualificaram como “besteira”.
É preciso aqui dizer que não é de agora que o sistema prisional brasileiro está longe de ser o ideal. Marcado por uma lógica punitivista, é notório que a política de segurança pública nos últimos anos no Brasil tem sido posta em questão devido ao caos do sistema penitenciário. A privação de liberdade como retribuição mostra-se incapaz de desempenhar sua função de ressocialização. O aumento exponencial do encarceramento nos últimos anos, especialmente de pessoas pobres e negras, desvela o viés classista que pune unicamente aqueles que já estão condenados socialmente pela exclusão socioeconômica.
Nesse sentido, é preciso afirmar com toda força que o sistema carcerário é seletivo e violento. Não por acaso os detentos que fazem parte da massa carcerária são pessoas pardas e negras, têm baixa escolaridade e quase nenhuma condição econômica e social. Trata-se de um perfil que se repete em várias pesquisas e em dados governamentais, o que revela que historicamente o país vem encarcerando ou marginalizando atores e atrizes provenientes de uma trajetória pobre e estigmatizada. Ademais, os ambientes em que essas pessoas estão encarceradas são próprios de um filme de terror. Ressaltamos numa pesquisa em presídio feminino (1) que realizamos recentemente:
Acrescentem-se ao parágrafo anterior a superlotação das celas, a precariedade das condições de encarceramento, a reduzida assistência psicológica, de saúde e de lazer. É difícil enfrentar a estrutura institucional da prisão em tais condições de desfavorecimento. E, diga-se de passagem, são serviços precários que funcionam em condições precárias ou simplesmente não funcionam ou não estão disponíveis para todas as detentas. A educação seria um forte mecanismo para aglutinar esforços em nome de um trabalho coletivo em prol da maioria das detentas. Para isso, é de crucial importância o engajamento dos agentes educativos, entendendo serem estes os agentes penitenciários, os professores, a direção da instituição, da escola e dos outros funcionários que labutam na prisão (ALVES; MARÇAL, 2018).
Se o passado recente já era ruim, o que se testemunha agora ultrapassa todo e qualquer absurdo. Além dos crimes denunciados pelo MP no caso do Pará e cometidos por agentes públicos de um governo que se diz defensor de “valores cristãos”, esse mesmo governo está esfacelando o funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
O MNPCT é o órgão responsável no Brasil pela prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, e vêm apontando práticas sistemáticas de tortura nos locais de privação de liberdade em todo Brasil, sejam tais atos bárbaros cometidos em Comunidades Terapêuticas, em massacres no Sistema Prisional como o que aconteceu recentemente no Pará, Amazonas e em Roraima, assim como denunciando a atuação irregular no Ceará da Força Tarefa de Intervenção Federal do Ministério da Justiça. Segundo nota (2) do MNPCT,
Com a publicação do Decreto nº 9.831/2019, o Governo brasileiro viola o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT), em especial no que se refere aos artigos que tratam da necessidade de vistas regulares feitas por Órgão AUTÔNOMO e INDEPENDENTE, quando exonera imediatamente as peritas e os peritos selecionados para atuar em âmbito nacional. (MNPCT, 2019)
Essa não é a primeira vez que o MNPCT manifesta as arbitrariedades do atual governo. Recentemente, divulgou uma nota denunciando que fora impedido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) de visitar o sistema prisional e socioeducativo no Estado do Ceará, que no início do ano sofreu uma onda de ataques. Não deixa de ser triste que o MMFDH tenha à frente uma pastora (Damares Alves) e conta em seus quadros líderes evangélicos nesse ministério. Aliás, um desses pastores chegou a ponderar se não podia ser um Martin Luther King.
Tamanha comparação nos faz aqui propor uma breve reflexão sobre o exemplo do Pastor King. Como um campeão dos Direitos Humanos e cristão convicto, ele sabia que ser cristão é jamais coadunar com um projeto de poder que trate tortura como “besteira”. Em tempos em que o mandatário maior do país chega a saudar a memória de torturadores da ditadura militar como Ulstra, e com o atual desmonte do MNPCT, os cristãos que se calam diante de tamanha barbárie parece que nunca leram na Bíblia que Cristo carregou em seu corpo as marcas de tortura.
Em suma, quem se esquece da condição de torturado de Cristo e celebra quem traz sobre si o desejo de aniquilar o próximo com requintes de crueldade, ou é analfabeto teológico ou seu Deus é um demônio. Nosso clamor é que o cristão, seja com posição dentro ou fora do estado, possa ser um instrumento profético que reconheça que não há nada mais distante da ética social do evangelho que deixar de reconhecer nos encarcerados a imagem e semelhança de Jesus de Nazaré.
Notas
(1) http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/reducacaoemancipacao/article/view/8911/5400
(2) https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Comunicado-P%C3%BAblico-MNPCT-2.pdf
2 Comments