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Reforma Protestante: uma bibliografia comentada

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Reforma Protestante: uma bibliografia comentada

“A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado, eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra a minha consciência não é correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.”

– Martinho Lutero, Dieta de Worms, 1521.

Todo marco histórico é ao mesmo tempo um ponto de chegada e um ponto de partida. 1517 é um desses momentos históricos que representou “um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar” (Raul Seixas). A Reforma Protestante, como se convencionou nomear o famoso processo religioso deflagrado naquele ano na Europa, compõe o conjunto de transformações que moldou a modernidade. Talvez, a Reforma seja a melhor síntese desse conjunto de transformações, que é também formado pela Renascença no campo cultural, pela formação do Estado Absolutista no campo político e pela transição do Feudalismo para o Capitalismo nas relações econômicas e de trabalho, desdobrando-se para além da Europa a partir das disputas colonialistas.

As reformas religiosas, protestantes e católicas, no século XVI europeu, tiveram impactos fundamentais nos modos de ser e estar no mundo, possibilitando o surgimento de novas concepções éticas, estéticas e políticas. Colocou em novos termos as relações entre liberdade e obediência, entre consciência e crença, pensamento e ação. Antes de apresentar a bibliografia comentada, gostaria de compartilhar a interpretação que dois autores, de tradições teóricas e políticas divergentes, têm sobre o impacto da Reforma Protestante.

No clássico Crítica da filosofia do direito de Hegel, mais conhecido pela famosa frase “A religião é o ópio do povo”, Karl Marx interpretou a Reforma como “o passado revolucionário da Alemanha” – mas uma revolução que teria ficado circunscrita ao campo teórico, “na cabeça do monge”, como no século XIX estaria “na cabeça do filósofo” (os idealistas alemães). Se a Reforma não foi para Marx uma “solução” (emancipação humana da religião) ela representou “a maneira correta de pôr o problema” (secularização), pois como ele escreveu: “não se tratava a partir desse momento do combate do leigo contra o clérigo exterior a ele, mas do combate contra o seu próprio e íntimo clérigo, contra a sua natureza clerical”. Como isso se deu? A Reforma alterou a relação dos homens com a autoridade e com a crença, pois como escreveu Marx: “Certamente Lutero quebrou a fé na autoridade, restaurando a autoridade da fé, libertou o homem da religiosidade exterior fazendo da religião a consciência do homem, libertou o corpo de suas cadeias carregando com elas o coração”. A religião passou a ser cada vez mais um assunto da consciência, e esta, um elemento fundamental da liberdade individual diante dos poderes eclesiásticos e políticos.

No clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo Max Weber interpretou a Reforma como a formação de um novo ethos, a expressão cultural e religiosa da racionalização da vida no mundo ocidental. O capitalismo em sua racionalização das relações econômicas e de trabalho beneficiou-se desse ethos, teceu com ele “afinidades eletivas”, reativações mútuas no modo como o capitalismo e o protestantismo passaram a moldar as relações sociais. Para Max Weber, o conceito moderno de vocação era filho da Reforma Protestante, representava a ascese como um exercício espiritual saindo da vida monástica e invadindo as atividades seculares. A partir de Lutero o trabalho adquiriu centralidade como forma de servir a Deus: “O único modo de vida aceitável por Deus não era o superar a moralidade mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente o cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo”. A partir do protestantismo, com Lutero e posteriormente Calvino, a vocação se tornou o princípio que norteava a vida pública do fiel, racionalizando suas atividades no mundo, numa ascese intramundana assim definida: “O ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro, e por mais da Igreja. Mas no geral, tinha deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica do mundo. Agora avançava para o mercado da vida, fechando atrás de si a porta do mosteiro; tentou penetrar justamente naquela rotina de vida diária, com sua metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para e nem deste mundo”.

Portanto, para duas escolas sociológicas diferentes, não é possível compreender a Reforma Protestante como um processo histórico relativo apenas à vida religiosa, mas como um novo modo de ser, estar e agir no mundo na configuração histórica do capitalismo e dos valores de sua classe dominante, a burguesia.

A seguir, uma breve bibliografia comentada que privilegiou as matrizes interpretativas sobre a Reforma Protestante na historiografia.

As Guerras Camponesas, de Feiedrich Engels (1975, Ed. Martins Fontes) – Este livro representa a matriz interpretativa do materialismo histórico sobre a Reforma Protestante. Relaciona os campos católico, luterano e anabatista com a aristocracia, a burguesia e o campesinato. Para Engels, as querelas teológicas da Idade Média eram as expressões religiosas das lutas de classe, seu disfarce, a máscara de interesses materiais concretos que se escondiam sob uma fraseologia bíblica. Lutero é interpretado como um reformador que temeu a apropriação revolucionária do seu programa teológico. Os anabatistas, como os revolucionários cujo programa político esbarrou na teologia e na repressão legitimada por Lutero. Para o autor, a teologia de Thomas Munzer e dos anabatistas beirava o ateísmo, assim como sua política beirava o comunismo.

Martinho Lutero: Um destino, de Lucien Febvre (2012, Ed. Três Estrelas) – Este livro representa a matriz interpretativa de uma “história das mentalidades” ou de uma “História Cultural”. Analisa Lutero e a Reforma como respostas às angustias existenciais de uma sociedade em transição para outro modelo de organização econômica e sociabilidade intelectual e política. O peso da concepção de pecado e danação medievais pesava sobre os indivíduos, submetidos à brevidade da vida e ao risco da peste, enquanto o clero desmoralizava-se em corrupção moral, vida luxuosa e cobranças de indulgencias que aumentavam as riquezas de Roma e as crises de culpa dos fiéis. Muitos, como Lutero, ansiavam por um Deus menos implacável, que não contabilizava os pecados ou os méritos, que ofertava a salvação como graça imerecida a todos a esperar dos indivíduos apenas a aceitação dessa graça mediante a fé. Ansiavam também por uma igreja mais simples (menos sacramentos, ausência de indulgências), com menos pompa e mais liberdade individual (o sacerdócio universal e o livre exame da Bíblia). Febvre compreende também a influência da vida política alemã sobre a viabilidade da Reforma e de Lutero para os príncipes e para o povo.

Nascimento e afirmação da Reforma, de Jean Delumeau (1989, Ed. Pioneira) – O livro se divide em três partes. A primeira é dedicada a um balanço de fontes e bibliografias sobre a Reforma; a segunda é dedicada a uma narrativa mais pormenorizada sobre o processo histórico, seus principais eventos e personagens; a terceira realiza um debate historiográfico com as principais correntes interpretativas sobre a Reforma, aproximando-se mais da matriz dos Annales e criticando a interpretação do materialismo histórico. Delumeau, que também escreveu obras sobre o medo no Ocidente e sobre as esperanças messiânicas, debruçou-se sobre os medos e expectativas das pessoas no século XVI e também interpretou as Reformas como readequações da vida religiosa diante das transformações econômicas, políticas e culturais, mas principalmente como respostas à angustia religiosa. Analisou as duas principais vertentes da Reforma, a luterana e a calvinista, em diferentes regiões da Europa. As reformas católicas também foram abordadas e interpretadas como reestruturações no modo de ser católico e não apenas em seu caráter antiprotestante, embora o autor tenha mantido a nomenclatura convencional de Contra-Reforma e interpretado que esse tenha sido um elemento fundamental.

A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII, de Cristopher Hill(2003, Ed. Civilização Brasileira)– Integrante do grupo de historiadores que renovaram a historiografia inglesa e o marxismo a partir dos anos 1960, Christopher Hill interpretou a revolução inglesa a partir das matrizes populares de dissidência e organização coletiva. Neste percurso, ele encontrou a influência da tradução da Bíblia para o inglês – anterior à Reforma, mas amplamente difundida a partir dela – e das correntes puritanas que criticaram a igreja nacional (Anglicana) e defendiam propostas de gestão eclesiástica e vida religiosa que eram formas de democracia direta ou representativa. O autor, mesmo filiando-se à matriz interpretativa do materialismo histórico, foi crítico à redução dos conflitos religiosos a uma “mascara” ou “disfarce” de interesses “reais” que estariam na base material dos conflitos de classe. Para Hill, a Bíblia estava para os revolucionários ingleses do século XVII, como o iluminismo estava para os franceses do século XVIII e o marxismo para os russos do início do século XX: “o ponto de referência de todo o seu pensamento”, influenciando as ideias políticas, estéticas e econômicas.

A reforma da Igreja em Inglaterra: acçao feminina, protestantismo e democratização política e dos sexos, de Maria Zina Gonçalves de Abreu (2003, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian) – Neste livro, a autora analisa a Reforma a partir da participação feminina e as mudanças na sociabilidade feminina a partir da Reforma. Investiga as transformações nas relações entre mulheres e homens nos séculos XVI e XVII na Inglaterra. A participação das mulheres contou com a inserção feminina nos movimentos revolucionários, colocou em discussão o exercício da autoridade eclesiástica e da produção teológica pelas mulheres e a amizade como base das relações conjugais na família. Possibilidades que, segundo a autora, foram muitas vezes abortadas pelos mecanismos de controle nas igrejas nascidas da Reforma, mas que continuaram a incomodar a dominação masculina e a contribuir com tradições populares e femininas de dissidência e organização coletiva.

As Reformas na Europa, de Carter Lindberg (2002, Ed. Sinodal) – Obra de síntese no melhor estilo dos manuais, a obra de Carter Lindberg reconstitui os debates historiográficos sobre a Reforma, bem como seus principais eventos e personagens a partir das mudanças nas concepções teológicas que desembocaram nas 95 teses e que surgiram a partir da deflagração do processo de divisão da cristandade europeia. Analisa os significados das “cinco solas”, os princípios básicos da Reforma Protestante, em seus significados teológicos e desdobramentos sociais: “Sola Fides”, a fé como único meio de receber a graça divina, “Sola Scriptura”, a Bíblia como única fonte de autoridade para a igreja e o cristão, “Solo Christus”, a mediação de Cristo como o único caminho a Deus, “Sola Gratia”, a graça imerecida de Deus como única garantia de salvação”, “Soli Deo Glória”, a glória de Deus como base e finalidade de todas as ações. Carter Lindberg procura tornar compreensível o debate teológico sobre os sacramentos, tanto entre católicos e protestantes, quanto nas diferentes correntes do protestantismo nascente, particularmente em relação à ceia e ao batismo, elementos centrais de controvérsia e divisão, não apenas religiosa, mas também política.

A tragédia da Guanabara, de Jean Crespin (2006, Ed. Cultura Cristã) – Extraído da obra Histoire dês Martyres de Jean Crespin, o livro relata os conflitos religiosos entre católicos e protestantes na colônia francesa na Baía de Guanabara nos anos 1557-1558. Contado na perspectiva protestante, relata a tentativa de Villegaignon de criar nos trópicos a França Antártica, refúgio protestante à perseguição religiosa na nação europeia, o pedido de apoio à Igreja de Genebra, o envio de missionários huguenotes (calvinistas franceses) indicados por Calvino e a posterior perseguição na colônia aos calvinistas. Três dos executados escreveram antes de morrer a primeira confissão de fé protestante das américas. A presença colonial dos franceses na Baía de Guanabara e no Maranhão e dos holandeses em Pernambuco e Bahia, representou a breve presença protestante nos séculos XVI e XVII. Presença que durou o tempo das ocupações, fechando as portas do protestantismo no Brasil até o século XIX. Mas isso, já é outra história.

* Publicado originalmente em Café História – história feita com cliques, em: 4 Set. 2017.

Formado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor dos livros "A Seara e os Ceifeiros: Educação teológica, narrativas de conversão e identidade religiosa (1960-1990)" (UEFS EDITORA) e "À direita de Deus, à esquerda do povo: Protestantismos, esquerdas e minorias (1974-1994)" (Editora Sagga). Membro da Igreja Batista Nazareth, em Salvador.

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