Carta à Eyshila, ao Lucas, à comunidade evangélica e ao seu tio
[Por Jonatas Aredes]
Dias atrás foi revelado ao Brasil que Lucas, o filho caçula da Eyshila, cantora evangélica de grande relevância, é gay.
A notícia nada chocante para nós, é muito chocante para o universo evangélico que nunca soube lidar com isso, ainda mais, porque o marido da Eyshila, pai do Lucas, é irmão da Elizete Malafaia. Ou seja, o Lucas é sobrinho do Silas Malafaia.
Em 2016, Eyshila passou pelo o que ela diz ser a situação mais difícil de sua vida: seu filho mais velho, Mateus, faleceu aos 17 anos, devido a uma meningite viral. Milhões de evangélicos Brasil afora, como eu, acompanharam pelas redes sociais da Eyshila e oraram pelo Mateus desde a internação até os últimos momentos.
Hoje estou aqui com uma mensagem à comunidade evangélica, à Eyshila, ao Lucas e ao tio do Lucas.
À comunidade evangélica, eu quero dizer que não há investidas do “inimigo” para destruir a família da Eyshila. Os LGBTs sempre existiram. Talvez não com esses rótulos que reivindicamos para nos definir e ajudar a sociedade a nos entender. Mas sempre estivemos aí. Entretanto, vivíamos uma vida infeliz, éramos obrigados a ter uma vida dupla, fingíamos ter atração sexual por nosso cônjuges, dentre outras ações que nos desumanizaram, silenciaram e nos mataram ao longo dos anos porque a sociedade não nos permitia ser quem somos. Além disso, não nos era permitido amar e sermos amados. Muitos LGBTs ainda vivem assim. Tem LGBT nas famílias Macedo, Malafaia, Valadão e na sua também. Nós sempre existimos, mas num contexto histórico de liberdade de expressão, podemos por enquanto, quem quer e consegue, ser quem somos.
E não dá mais pra ignorar. O segmento majoritário da igreja evangélica foge quando o assunto é a sexualidade convencional na questão de gênero. Imagina quanto obscurantismo há, já que ela não debateu o básico e se depara com a necessidade de aprofundar o debate sobre a diversidade sexual! É difícil falar de transexualidade quando não há nem igualdade de gênero nas igrejas. É complicadíssimo falar sobre homossexualidade quando a igreja trouxe não luz nem para as relações heteronormativas, já que insiste na ideia do patriarcado e na cis-heteronormatividade.
Eu quero dizer pra Eyshila que, por ser evangélico e já ter pensado como a maioria dos evangélico, eu imagino o que você tem passado. “Por que eu? Por que comigo? Um filho que partiu muito cedo, e o filho que me resta é gay? Eu queria tanto ser avó! Será que eu errei? A culpa é minha? Meu filho foi mal influenciado? Escolheu mal as amizades? Deve ser só uma fase.” Esses pensamentos atravessam nossos pressupostos, nossas crenças e nossa noção sobre o que é a verdade.
Quando um filho ou uma filha LGBT sai do armário, toda a família precisa sair, porque ninguém mais pode esconder uma pessoa que não se dispõe a viver clandestinamente. Pra você que é famosa, eu não posso nem imaginar como está sendo se ver arrancada do armário com seu filho. Se você quiser ajuda, Eyshila, pode conversar com minha mãe. Na minha casa somos dois filhos gays. Nos apoiar atentava diretamente contra tudo que ela acreditava e contra tudo o que ela sabia sobre Deus, cristianismo e evangelho. Mas ela teve que entender que, diferente do que a gente aprende, nem tudo está na Bíblia, e a doutrina não dá conta de conter a plenitude da existência humana.
É por isso que Jesus preferiu a vida e os corpos à Lei. Se havia um aleijado, ele curava, mesmo no sábado. Se havia leprosos e estar com eles era impuro, era com eles que Jesus estava. Se a Lei mandava matar os adúlteros, era ao lado deles que Jesus escolhia ficar. Não estou comparando a LGBTs com aleijados, leprosos ou adúlteros, porque não há nada de errado com a diversidade sexual. Estou querendo dizer que é para ter essa compreensão que serve a Bíblia – para mostrar que Jesus escolhia a vida ao invés da morte, pessoas ao invés da lei, corpos ao invés da doutrina, e é com ele que precisamos parecer.
Então se a teologia que você conhece quer apagar, silenciar, retirar direitos e legitimar violências contra seu filho, escolha seu filho, porque Deus está na vida, não na letra; Deus está no outro, não no livro; Deus está da diversidade, não na padronização. Minha mãe escolheu os filhos e por isso escolheu Jesus. Longe do universo que você conhece, das Assembléias de Deus, das grandes gravadoras e do glamour do mundo gospel, existe uma teologia voltada para a vida e para a dignidade humana, contra toda desumanização de qualquer ser humano, pois entendemos que somos todos e todas à imagem e semelhança de Deus. Essa teologia já produziu conteúdos que saíram da superfície e se aprofundou na Bíblia para fazer uma exegese tendo a vida como chave hermenêutica, a fim de trazer luz sobre essa questão.
Muito objetivamente, o que você não pode escolher, não pode ser pecado. O Lucas se libertou, agora você precisa encontrar a libertação da ideia de que seu filho está condenado. É um processo que os intercessores do Brasil não podem te ajudar, porque nem eles sabem o que é isso. Ou sabem. Ter filho gay não é privilégio seu. Muitas mães e pais criaram seus filhos na igreja, regados a Diante do Trono e eles são o que são: gays, lésbicas, bissexuais, transexuais etc. Você não está sozinha, Eyshila! Com o tempo você vai se acostumar com a ideia. As coisas vão ficar mais fáceis. Não guerreie com quem seu filho é. Não queira mudar o que Deus não quer mudar. Se você submetê-lo a terapias de reversão sexual, a infame “cura gay”, que agora é proibida pelo Supremo Tribunal Federal, o maior sucesso que você terá será fazê-lo se casar com uma mulher, que será infeliz, porque seu filho vai enganar alguém por toda uma vida. Ser gay é natural, é normal e mais do que isso: é divino.
Na realidade capitalista em que vivemos, vendo as coisas pelas lentes da pirâmide social, agradeça a Deus por você ser rica e branca. Seu filho pode ser um anônimo em qualquer país que ele for morar e tudo sairá perfeito pra ele. Se você, Eyshila, fosse uma mulher pobre, preta e de periferia, como muitas que escutam suas músicas, tudo para seu filho seria um perigo. Talvez ele não vivesse muito, por causa da violência legitimada pelos evangélicos que insistem em dizer que o que nós somos não agrada a Deus. E se eu não vejo Deus em alguém, fica mais fácil desumanizá-lo. Certamente quem mata alguém, não vê Deus nessa pessoa. Temos no Brasil um movimento de mães e pais que militam por uma vida melhor para seus filhos LGBTs chamado Mães pela Diversidade. Elas lutam para que seus filhos cheguem vivos em casa e sejam reconhecidos como cidadãos. Você, com toda a sua grana, podia se engajar no mínimo apoiando com recursos financeiros. Mas se quiser ir para as tribunas dos parlamentos para lutar pelos direitos civis, o enfraquecimento e a eliminação da homofobia, vai ser mais que ótimo!
Agora eu quero falar para o Lucas: bem-vindo ao vale! Você tem se posicionado tão bem, que é difícil falar qualquer coisa pra você. Quero que você saiba que Jesus e o evangelho não são propriedades dos heterossexuais. Nossas experiências espirituais são nossas, ninguém as tira. É possível ser LGBT e continuar sendo cristão, se você quiser e se assim a você se revelar.
Não existe cura gay. As terapias de reversão sexual são violências terríveis. Espero que você nunca tenha passado por elas. Onde você está, você é fundamental para espalhar que Jesus cura o preconceito e a LGBTfobia e para que ninguém mais tenha que experimentá-las.
Utilize seus privilégios para lutar pelos LGBTs que estão na base da pirâmide social. Se hoje você pode se montar e ser uma drag linda, e eu posso andar de mãos dadas na rua com meu namorado, saiba que devemos isso a muita gente que já deu o sangue. Muita gente deu a cara pra bater, pra que a gente se sinta livre para se expressar como queremos. Existem movimentos aqui no Brasil que buscam o diálogo entre pessoas LGBTs evangélicas e as comunidades de fé evangélica, como o Evangélicxs pela Diversidade. Procure conhecer.
Eu me dirijo agora para o tio do Lucas, concunhado da Eyshila, muito conhecido por atacar a comunidade LGBT.
Não é coincidência que o Brasil, onde você é um pastor relevante há pelo menos 30 anos, seja o pior país do mundo para nós vivermos. Quero dizer que, dentre outros motivos, por achar que você dizia a verdade, eu, depois de tentar de todas as formas comprar de Deus minha heterossexualidade, tentei suicídio. Duas vezes. Você chegou a nos comparar a bandidos. Seu discurso continua legitimando as mortes dos LGBTs Brasil afora porque você como pastor influente, faz pensar que quem os mata, mata em nome de Deus.
Foi você que atacou milhares de famílias brasileiras quando legitimou que pais e mães expulsassem seus filhos de casa. Reforçou com suas palavras que esses meninos e meninas em conflito com suas identidades levassem surras e mais surras dos pais para aprender a ser gente do jeito certo.
Sabendo que o Lucas não é o primeiro LGBT na sua família, e os conhecendo desde o ventre, você vai continuar relacionando a diversidade sexual com a pedofilia? Vai continuar taxando de privilégios os direitos civis básicos pelos quais lutamos? Vai continuar falando que somos um ataque à família?
A você, o meu profetismo.
A todos e todas, o meu amor!
Jonatas Aredes é pequeno produtor local em Belo Horizonte através da camisaria Santo Hype, criada em 2013, trabalha com economia solidária e colaborativa; coordenador local dos movimentos Evangélicxs pela Diversidade e Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito; membro da Segunda Igreja Presbiteriana de BH, gera conteúdos para a internet e é aspirante a teólogo.
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