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Bem-vindos ao passado! Em solidariedade ao Dr. René Padilla, “cristão marxista”

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Bem-vindos ao passado! Em solidariedade ao Dr. René Padilla, “cristão marxista”

Em poucas horas viajo para São Paulo, para participar como expositor no Colóquio Missão Integral: Caminhos e Perspectivas no Século 21, patrocinado pela Visão Mundial Brasil. Também como expositores estarão René Padilla, Ed René Kivitz, Ruth Padilla DeBorst, Valdir Steuernagel (meu grande amigo e ex-chefe), Christian Gillis, Ariovaldo Ramos, Carlos Pinheiro Queiroz (querido amigo e companheiro de muitas lutas), Ziel J.O.Machado, Regina Sánchez e outra dezena de irmãos e irmãs interessados em refletir acerca da missão das igrejas neste novo século. Vou somente a São Paulo, embora teria gostado de acompanhar uma parte deste grupo a outra atividade que se realizará no Rio de Janeiro.
Mas não nego, no meu caso, a alegria do encontro ficou ofuscada pela notícia de que a Faculdade Evangélica das Assembleias de Deus (FAECAD) suspendeu a atividade no Rio de Janeiro porque alguns de seus diretores assinalaram que o conferencista principal, René Padilla, é um cristão marxista (ou marxista cristão, você escolhe), e que não se deve permiti-lo falar em seu espaço. O mais fácil seria julgar a Faculdade Evangélica das Assembleias de Deus de fundamentalismo rançoso, mas não me atrevo a fazê-lo porque conheço seu reitor, vários de seus ilustres professores e professoras e dou testemunho da avidez acadêmica da maioria de seus numerosos estudantes. Estive ali faz um ano, em fevereiro de 2016, como conferencista convidado para a Aula Magna que daria início ao ano letivo. Falei sobre a Missão Integral (MI) e seus desafios teológicos, sociais e ecumênicos. Falei da nova agenda da MI diante da desigualdade social, da corrupção, da deterioração do meio ambiente e da violência que padece a América Latina. Minhas palavras foram recebidas com um interesse genuíno. Ali desfrutei de uma fraternidade sincera e da extraordinária calidez da hospitalidade carioca.
Por isso creio que esta grosseria descortês para com meu amigo e mestre, Dr. René Padilla, não deve ser atribuído ao conjunto da FAECAD, mas a algumas frações de poder político dentro dela. Como na maioria de nossas instituições evangélicas, ali também existem grupos que consolidam sua autoridade tomando decisões amparados no pretexto de proteger a sã doutrina e salvaguardar os escrúpulos políticos de suas tradições. Escrevo esta nota para expressar minha solidariedade e respaldo a René. Para pronunciar meu mal-estar com a suspensão do evento e minha indisposição com as razões que a justificaram. Suspender um evento como este por tachar de marxista a um conferencista como René é ignorar o que é o marxismo, desconhecer quem é René Padilla e esquecer de que maneira se faz a reflexão teológica. Mas permitam-me dizer algo mais. Penso que o que aconteceu no Rio de Janeiro é um sinal que confirma o que estamos presenciando também em outros países da América Latina: um ressurgimento de discussões passadas. O retorno das velhas querelas cristãs das décadas de 1970 e 1980, quando surgiu a MI. Naquela época, os que ousavam falar da responsabilidade social das igrejas eram rotulados de comunistas; os que se aventuravam a pregar em favor da justiça social eram suspeitos de militância marxista, e os que criam na opção preferencial pelos pobres eram excluídos por ser teólogos da libertação indesejáveis.
René sofreu essas diatribes por parte de seus irmãos evangélicos. Também as sofreram Samuel Escobar, Orlando Costas, Pedro Arana Quiroz, Óscar Pereira, Andrés Kirk, Ismael Amaya, Washington Padilla, Emilio Antonio Núñez e outros ilustres fundadores da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL). Acusaram-lhes de teólogos liberais sem sê-los (foram, são e serão evangélicos de pura cepa) e de políticos subversivos, sem parecê-lo (distanciar-se desde o início das correntes libertacionistas da teologia latino-americana).
Quase todos os fundadores da FTL têm a experiência de ter sido marginalizado em suas igrejas ou de ter sido visto com receio. Pagaram o preço de pensar diferente de seus coetâneos evangélicos que criam de pés juntos que a missão da igreja era somente proclamar a salvação da alma e que a igreja era um santo refúgio para os que haviam obtido essa salvação. Mas eles questionaram “…nossas tradições evangélicas à luz da Revelação escrita” e buscaram “obedecer as claras demandas da Palavra de Deus a anunciar a todos a mensagem de Jesus Cristo chamando-os a ser Seus discípulos, e ser dentro da complexa realidade social, política e econômica da América Latina, uma comunidade que expressa o espírito de justiça, misericórdia e serviço que o Evangelho implica “ (Declaração Evangélica de Cochabamba, 1970). Como não iriam despertar os escrúpulos conservadores!?
O episódio do Rio de Janeiro é um retrocesso. E é também, em minha opinião, reflexo da crise latino-americana que se vive no âmbito econômico, político e cultural. A América Latina está vivendo uma transição social que afeta também as esferas da vida religiosa. São mudanças, em parte, ocasionadas pelo revés eleitoral dos governos de centro-esquerda ou do chamado “socialismo do século 21”, uma guinada para a direita dos novos governos e, como se isto fosse pouco, o triunfo de Donald J. Trump nos Estados Unidos. Ao novo panorama político da Região se adiciona como indicador da mesma crise a influência dos votos evangélicos conservadores em algumas das grandes decisões nacionais. Na Colômbia, por exemplo, para se opor ao Plebiscito sobre os acordos de paz com um dos grupos guerrilheiros (FARC-EP). No Panamá, para obstruir o Projeto de Lei 61, pelo qual se adotam políticas públicas de educação integral, atenção e promoção da saúde. No Peru, para impedir a aprovação do novo Currículo Nacional da Educação Básica. Nos três casos mencionados se esgrimem argumentos contra a chamada “ideologia de gênero”. E outro caso já bem conhecido, a participação da bancada evangélica no julgamento contra a presidenta Dilma Rousseff.
Enfim, bem-vindos ao passado! Muito do que foi escrito há quatro décadas acerca da MI poderia ser lido hoje como se tivesse sido escrito ontem. Quase todas as declarações da velha FTL poderiam ser subscritas de novo porque a América Latina e suas igrejas estão retrocedendo. Mas neste retrocesso se encontra a grande armadilha para a Missão Integral: que se valha de suas antigas elaborações para responder às polêmicas conservadoras de hoje ou, ao contrário,que reconheça a necessidade de olhar para o futuro, de escutar as pessoas mais jovens, de interpretar o momento atual (os sinais dos tempos) e atrever-se a fazer teologia para hoje e amanhã, sem deixar-se imobilizar pelo ontem tão conhecido. Nas reuniões desta semana no Brasil se poderia avançar por este caminho.
René, estas linhas são minha forma de expressar respaldo e admiração. O abraço pessoal te darei em algumas horas.

Teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de "No Caminho com Jesus" (Novos Diálogos, 2012) e um dos organizadores de "Para falar de criança: Teologia, Bíblia e pastoral para a infância" (Novos Diálogos, 2012).

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