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Por que lembrar da(s) Reforma(s) Protestante(s)?

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Por que lembrar da(s) Reforma(s) Protestante(s)?

A tentativa de responder a essa questão será dividida em duas partes. Vamos começar “pelo começo”. Por que lembrar? Lembrar é grosso modo trazer à memória algum acontecimento do passado que tenhamos ou não participado diretamente. Nem sempre lembrar é vital, principalmente se algum fato no passado nos atrapalha ou nos impede de avançar no presente. Por outro lado, lembrar também pode ser um sinal de saúde e resistência como nos chamam a atenção os críticos e opositores da ditadura militar no Brasil (“Lembrar é resistir”). Não é à toa que o esquecimento é muito importante para determinados grupos que querem se manter no poder (Pollack, 1998) – “Para que estudar história?”.

A sociedade moderna, como aponta a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, tem prescindido da memória e optado por uma ação mais movida pela emoção e pelo “imperativo da mudança”. Se no passado a religião podia ser definida por meio da transmissão e perpetuação de um acontecimento fundador original através de uma “linhagem religiosa” ou “linha de crença”, essa religião está enfraquecida nos dias atuais. Por que? Pelo menos por três motivos: a) a afirmação da racionalização que questiona as estruturas de plausibilidade do passado religioso fundante como referência; b) O crescente processo de diferenciação e pluralização das religiões (e outras pertenças societárias), que leva a uma fragmentação da memória coletiva em memórias específicas; c) A superabundância de informações veiculadas pelos meios de comunicação, que resulta em uma perda da profundidade e do continuum da memória coletiva em prol de uma presentificação dos acontecimentos (Hervieu-Léger, 2005).

Se vivemos uma crise de memória, que efeito teremos em insistir na propagação de um acontecimento que ocorreu há 501 anos? Em curto prazo, nenhum efeito em larga escala. A menos que essa lembrança seja um ato contínuo e pedagógico da parte daqueles que julgam necessária essa memória para transformação do presente. Mas isso implica certamente em disciplina, paciência e resistência.

Vamos a outra parte. Por que “reformas protestantes” e não “reforma protestante”? Por que o plural? Por uma questão simples. A historiografia protestante, como sugere o historiador Fábio Py (2016), pode ser dividida de três maneiras: a reforma aristocrática, a reforma burguesa e a reforma camponesa. A Reforma que ficou conhecida, sem tirar seu mérito, foi a reforma aristocrática liderada pelo monge agostiniano Martinho Lutero (Séc. XVI). Aristocrática porque foi uma reforma realizada com apoio dos príncipes da saxônia e mostrou-se insensível às reivindicações de milhares de camponeses culminando em uma chacina que dizimou cerca de 25.000 “protestantes”. A reforma contra a reforma. Uma reforma para poucos. Um golpe que se arrogou na legitimidade da “manutenção da ordem social” e do “mandato divino”, conforme se pode verificar no panfleto de Lutero intitulado: Contra as hordas salteadoras e assassinas dos camponeses. Lutero conclama a “esmagar, matar e sangrar” os rebeldes (Alvarenga, 2005). Agregada a essa reforma aristocrática há ainda as reformas calvinista e zwingliana (Sec. XVI). Uma outra leva de reformas foi de cunho burguês, com a separação no seio da Igreja Anglicana (Séc. XVI). Nesta estão arrolados os movimentos puritanos, quakers, batistas e outros.

Por fim, a reforma camponesa liderada por Thomas Müntzer (Séc. XVI). Nesta, encontramos os fortes “germes da liberdade, transcendência, utopia, espiritualidade e da criatividade protestante” (Moraes Jr, 2014). Portanto, tiveram outras reformas, umas mais, outras menos difundidas. Mesmo reconhecendo a importância de Lutero e seus contemporâneos, é preciso considerar também seus limites espaço-temporais. No Brasil, assim como em outros países, esse protestantismo se esvaiu em um dogmatismo estéril, repetitivo e centralizador. Como disse Rubem Alves (2004), “o protestantismo (…) envelheceu prematuramente. Ainda menino ficou senil”. Uma prova dessa senilidade foi justamente a capacidade protestante de reproduzir mais estruturas tradicionais, mortas, do que vida e criatividade.

Uma marchinha de carnaval de 1983 bradava nas ruas: “recordar é viver” e ganhou o coro das multidões. Se as sociedades modernas são sociedades sem memória não é o caso de dizer que elas morreram, mas que estão vulneráveis ante as complexidades do mundo moderno e desarmadas do que em outros tempos, homens e mulheres se proveram para mudar os rumos da história: o espírito protestante. Por isso, para responder à pergunta inicial, faz-se necessário questionar sobre a importância e o lugar que a memória ocupa na sociedade e em especial no campo da religião. Uma vez ignorada ou “esquecida”, a sociedade tende a repetir erros do passado e naturalizar conceitos historicamente formulados. Portanto, lembrar da(s) Reforma(s) Protestante(s) é importante, desde que essa reminiscência se desdobre em ato de resistência a toda e qualquer tentativa de controle e dogmatismo doutrinário. Também em reconhecimento da necessidade de se pensar e fazer teologias a partir de situações concretas, em diferentes espaços e com diferentes vozes.

Fontes

ALVARENGA, Leonardo G. “O povo livre do Senhor”: liberdade de consciência e instituição religiosa: tensões e contradições ocorridas na denominação batista / Dissertação de mestrado. Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2005.

ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. Edições Loyola, São Paulo, 2004.

HERVIEU-LÈGER, Daniéle. La Religion: Hilo de Memoria. Herder Editorial, S.L., Barcelona, 2005.

Moraes Jr, Manoel Ribeiro De. O protestantismo à moda brasileira. Para além de uma sociologia burguesa das religiões. Disponível em: http://novosdialogos.com/o-protestantismo-a-moda-brasileira-para-alem-de-uma-sociologia-burguesa-das-religioes/. Acesso em: 26/10/2016.

POLLACK, Michael. Memória e esquecimento. In: Estudos históricos, n.5, 1998, p.14-68.

PY, Fabio. Lauro Bretones, um protestante heterodoxo no Brasil de 1948 à 1956. Tese de Doutorado – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Teologia, 2016.

Leonardo Alvarenga é batista, doutor em ciências da religião e pós-doutorando da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).

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