Violência contra a mulher: lançando olhares sobre a experiência das mulheres negras
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[De Ultimato online]
Por Valdenice José Raimundo
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre as diferentes facetas da violência que têm perversamente impactado a vida das mulheres negras brasileiras. Privilegiaremos nessas ponderações a violência contra as mulheres negras, por entender que existem especificidades que precisam ser consideradas quando se fala sobre a experiência dessas mulheres. Estamos falando de um povo muito importante, mas que tem sido historicamente silenciado pela sociedade brasileira. Conduta essa, assumida também por muitas igrejas.
Trazer à tona a experiência de opressão vivenciada pelas mulheres negras é, inevitavelmente, falar sobre o racismo e do silêncio de muitas igrejas sobre essa questão. É válido salientar que, quando as igrejas não falam sobre racismo, quando não entendem que é responsabilidade delas denunciá-lo, elas contribuem para a manutenção. Entendemos que o racismo é uma face da violência e, dada a sua condição de ser estrutural, produz outras violências que são apropriadas e aprofundadas pela lógica capitalista. Para Guimarães (2006), racismo é a “disseminação no cotidiano de práticas que diminuem as oportunidades dos negros de competirem em condições de igualdade em quase todos os âmbitos da vida social”.1 Para Munanga e Gomes (2006), “na forma individual, o racismo se manifesta por meio de atos discriminatórios cometidos por indivíduos”.2
As práticas racistas e a violência, não podem ser entendidas separadamente, pois articulam-se e materializam-se na vivência concreta dessas mulheres. São assustadores os números da violência doméstica e do feminicídio contra as mulheres negras. Os dados mostram que elas são as principais vítimas de abusos, como os indicados no Dossiê sobre violência e racismo: “assédio e abuso na infância, violência sexual, tráfico e exploração, violência por parceiro íntimo, entre outras”.3 Essas informações são evidenciadas a partir do Mapa da Violência4, divulgado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), de 2003 a 2013 a morte de mulheres brancas por violência diminuiu 10%, mas a morte de mulheres negras aumentou 54% em todo o País. A chance de uma pessoa preta e parda, entre 15 e 29 anos, ser assassinado no Brasil é de 147%.
A população negra, e em particular, a mulher negra, estão entre os mais pobres. Isto se deve à organização socioeconômica e espacial do Brasil, que com sua base racista relegou-os a lugares de profunda pobreza. A pobreza no Brasil é feminina e negra e isso precisa ser contestado.
Na contramão das determinações engendradas pelo racismo, as mulheres negras lutam cotidianamente pela sua existência e do seu povo, assim tornam-se politizadas e reclamam ao sistema respeito e dignidade. Entendemos que, sendo a igreja espaço da prática da justiça, precisa comprometer-se com aqueles e aquelas que têm suas vidas subalternizadas e precisam lutar todo dia. Concordamos com Carneiro (2003) que o esforço dessas mulheres negras “do passado e do presente (especialmente as primeiras) ecoam de tal forma a ultrapassarem as barreiras da exclusão”.5 Mas não tem que ser uma luta solitária. Aliados e aliadas são imprescindíveis para a igualdade racial e social.
Para isso, faz-se necessário que as igrejas possam analisar com que lentes (sociológica e teológica) estão olhando para a realidade da maioria da população brasileira. A população negra representa 51,8% da população brasileira, sendo as mulheres negras 50,2 milhões. Entendemos que não podemos responsabilizar esse contingente populacional pela sua condição de empobrecimento, bem como não podemos realizar uma leitura bíblica que os marginalize.
Precisamos atentar para dois pontos: a) para a realização de uma leitura crítica das realidades socioeconômica, política e cultural do Brasil; é preciso considerar o processo desigual e racista da formação social do Brasil. b) É urgente indagar o porquê dos líderes eclesiásticos não denunciarem, em seus sermões, o racismo, enquanto uma prática que agride o projeto de Deus para a humanidade. Acreditamos que essas ausências e negligências têm historicamente contribuído para a reprodução de práticas racistas no interior das igrejas, bem como não tem permitido ações eficazes de combate.
Diante do exposto, acreditamos que não podemos fechar os nossos olhos, pois a realidade de opressão e desigualdade, aqui brevemente apresentada, não dialoga com o projeto libertário de Deus. O povo negro, desde que foi raptado no continente africano, resiste para existir. A igreja precisa ser um espaço de fortalecimento da luta do povo negro. Como disse James Cone em entrevista concedida a Ronilso Pacheco: “Precisamos ver Deus através da luta do povo negro por justiça e liberdade”.6
Este pequeno artigo, certamente, não teve a pretensão de querer dar conta, nesse curto espaço, da complexidade da temática aqui proposta. Contudo, temos clareza de que enquanto igreja, precisamos nos posicionar a favor dos oprimidos e da luta por libertação. “Se você for neutro em situações de injustiça, você terá escolhido ficar do lado do opressor.” – Desmond Tutu
Referências
1. GUIMARAES, A. S. Preconceito racial: modos, temas e tempos. São Paulo: Cortez, 2008.
2. MUNANGA, K. GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.
3. Violência e racismo. In: Dossiê violência contra as mulheres. Instituto Patrícia Galvão, 2015.
4. Atlas da Violência 2015. Ipea/FBSP, 2015.
5. CARNEIRO, S. Mulheres em movimento. In: Revista ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003.
6. PACHECO, R. Teologia negra hoje: Uma entrevista com James Cone.
• Valdenice José Raimundo é doutora em serviço social, professora da Universidade Católica de Pernambuco, integrante da Pastoral Negra e facilitadora da Escola de Fé e Política Pastor Martin Luther King, da Igreja Batista em Coqueiral, Recife, PE. É assessora do Coletivo Vozes Marias para as questões de gênero e raça.
*Versão ampliada do artigo “Violência, a experiência das mulheres negras“, publicado na edição 376 da revista Ultimato.