Orações periféricas #2: Alice Guél
Por meio dos poetas marginais desse Brasil, misturamos ritmo com uma pitada de fé, seja ela qual for. Aqui o Rap é lido como um dia foi sentido. Ou, é arrepio de uma alma vagabunda, da qual se lê, mesmo sem saber. Sensação de escrita, sensação do som, sensação do céu. Assim é o Mistério ancestral que jogado à água salgada, nos brinda com uma bebida doce e amarga, banana com denúncia, Oshun e Iemanjá, Hare Cristo.
“Ritmo e Poesia e Mística” é um projeto semanal onde a oração, a prece, o ponto e a reza da rua se apresentam em comunhão com a vida, cultura e política das periferias do Brasil.
Deus é Travesti
Travesti nossa que estais no céu
Santificado seja o nosso nome
Alice, Cecilia, Eloá, Erica, Olga, Amara
Ela, Ametista, Elixa
Seja feita a vontade das vadias
Assim na terra
Como em qualquer outra esquina
(…)
Pela Deusa Travesti
A Deusa dos corpos que querem Resistir
Deus é Travesti
A Deusa dos corpos que querem Existir
E no jejum nada acontecia, Hã?
Mas ela ia – mas ela ia
Acabou o país das maravilhas
E agora é vida – agora é vida
Apedrejada como Madalena foi
E na dor a Guél apareceu
Foi tanto que se perdeu
Que o sentido acabou e no breu apareceu
Seja feita a vontade das vadias
Assim na terra
Como em qualquer outra esquina
Mãe nossa que estais no céus
Santificado seja o nosso nome
Mãe nossa que estais no céus
Ajude as travestis que estão passando, fome
Venha ver o nosso reino
Pra que entenda
A vontade das vadias
Aqui, em casa, na igreja, na rua
Em toda e qualquer esquina
(Alice Guél. EP: Alice no país que mais mata Travestis, 2017. Trecho da Música: Deus é Travesti)
O rap não é propriedade de ninguém. Seus agentes são muitos, plurais e diversos como é diversa a cultura em que somos forjados. Alice Guél, antes de tudo, é uma mulher. Sua rima é potente e mostra a realidade de um outro mundo que a maioria dos olhos não veem. Como mulher trans, sua obra vai de assuntos gerais e cotidianos a temas complexos, que o próprio rap e seu público ainda tem dificuldade de assimilar. Junto a ela, Lucas Pereira, Renan e Gabs dão vida a um projeto que transcende a própria música, mas que tem essa como veículo de questionamento social e diálogo, a fim de criar uma cultura onde todos são enxergados e possam viver em comunhão.
Alice veio da dança, das esquinas e vivências de um corpo travesti que percebe tudo o que ao seu redor ainda não foi dito. Seu disco “Alice no país que mais mata travesti” (2017) tem uma linguagem documental e apresenta de forma didática/processual todo tipo de questão que a atravessa onde os produtores, muitas vezes, não conseguem captar. Assim, seu rap preenche um espaço do corpo trans não só dentro do hip-hop, mas na sociedade brasileira.
Suas referências são sólidas. Assim, grupos do rap nacional como Expressão Ativa, Mv Bil, Racionais, Emicida, Sabotage ou Ao Cubo (rap religioso em geral) não estão aquém de suas outras referências LGBTQ+: Lin da Quebrada, Jupe do Bairro, Danna Lisboa, Guigo, entre outros. Seus shows são um misto de performances musicais e corporais onde o terço rosa em seu peito quer garantir o seu lugar de fala e a legitimidade de sua experiência sagrada: “Esse corpo, ele é meu céu/O meu templo tem cara de desejo, tem/O meu corpo tem cheiro de pecado, tem”. O testemunho que ela oferece em seus shows é em tom de profecia. Alice é dona de um corpo que grita por liberdade, vida e representatividade: “Deus é travesti porque sou eu. Alice Guel voltou porque o apocalipse já foi, eu voltei. E voltei pra dizer que Deus não é cis”.
“Chuva de vida trava/Lava, invade, refaz, restaura/Rio de vida trava/Nutre, inunda, conduz-nos água?/Chuva de vida trava/Toma toda terra seca, torna fértil toda alma/Rio de vida trava/Mata a sede das sedentas que com fé destrava?”