“Não me toques”: Maria Madalena e a experiência da Páscoa
Religião é um reservatório de sentido para a vida. Foi assim que me aproximei do conceito de religião por meio de um de meus mais importantes mestres, Padre Márcio Paiva. Durante esse período de isolamento, que para mim já completou um mês, a religião realmente tem sido uma experiência de sentido. Lancei-me em uma privilegiada caminhada espiritual, na tentativa de criar um ambiente de bem-estar que me permita manter a sanidade.
Nessa jornada, percorri apaixonadamente a Semana Santa para, finalmente, me encontrar com o milagre da Páscoa. Ah, o divino direito de esperançar! Em tempos de distanciamento social, as homilias para esta celebração são inúmeras. Desde o Pessach do povo hebreu, narrado em Êxodo 12, que orientou que as famílias deveriam estar juntas em casa, protegidas pelo sangue do cordeiro aspergido nos umbrais das portas, enquanto o anjo da morte passava à procura dos primogênitos; até a tradicional mensagem da Ressurreição, na qual encontramos esperança de nova vida em Jesus Cristo.
O tradicional texto que narra a Páscoa encontrado no evangelho de João 20, 1-18 é sim um alento em meio a tantas incertezas. Maria, a de Magdala, vai ao sepulcro ainda de madrugada encontrar com o seu já assassinado Mestre. É fácil imaginar seu desassossego. O evangelho de Lucas (Lc 23, 55-56) conta que ela, juntamente com outras mulheres, cumpriu a observância do Sábado. Somente na madrugada do primeiro dia da semana, ela, tendo obedecido à Lei, finalmente pôde correr em encontro ao Mestre.
É fácil imaginar seu coração acelerado, suas mãos suadas – quase deixando cair os aromas e perfumes que carregava -, sua respiração ofegante, seus planos de honrar e cuidar do corpo que tanto tempo caminhou ao seu lado. Maria Madalena, segundo o evangelho de João, não esperou suas companheiras, foi só. A urgência da caminhada solitária talvez não tenha trazido muitas lembranças, afinal, a dor da perda muitas vezes cala a memória.
A narrativa do evangelho de João continua de maneira angustiante, quando Maria não encontra seu Mestre no sepulcro. A pedra não mais fechava a tumba, o corpo não mais aguardava seus cuidados, a esperança já não mais esperançava. O amor doía. Assim, entre correr para compartilhar o ocorrido e perguntar se alguém sabia onde estava seu Mestre, Maria chorou. O desespero transbordou.
O som de nosso próprio pranto é ensurdecedor, só uma coisa o cala: o reconhecimento. Maria. Alguém a chama. Ela foi reconhecida por alguém, sua dor não era mais invisível. A respiração para, ela segura o choro e se volta para trás. Era ele, seu Mestre. Uma Teologia da Presença mostra que a morte, em sua grande metáfora da ausência, é suprimida pela vida, a grande metáfora da presença. Jesus se faz presente. A morte que supera a vida, o sorriso que supera o choro, o profundo olhar do encontro que supera o pranto. Maria é reconhecida e o reconhece.
Diante do corpo, que por tanto tempo foi vida ao seu lado, Maria Madalena se lança. Era preciso tocá-lo. Não para saber que ele estava vivo, afinal, seus olhos não duvidavam. Mas, para dizer que o amava. As palavras se calaram, nada de perguntas, de dúvidas. Bastava a ela se lançar aos pés do Mestre. Afinal, é no encontro da pele que a saudade adormece.
“Não me toques”. Essa foi a resposta do Mestre. O que poderia doer mais? Um corpo no qual não há vida, mas que é possível tocar? Ou a vida em sua intensidade, mas que só pode ser contemplada? É possível imaginar o sentimento de rejeição. “Deixa eu dizer que te amo”, Maria devia estar dizendo por dentro. O toque permite diversas interpretações. É possível se pensar na importância do toque terapêutico, a imposição de mãos que promove cura. Por outro lado, o toque pode ser a memória do ato forçado, a violência das mãos.
Entretanto, para Maria Madalena, o toque era afeto. Expressão profunda de carinho e devoção. O toque nos pés, no qual o prostrar-se a leva a uma posição fetal. “Não me toques”. A mesma voz que a reconheceu, agora a repelia. Assim, como Maria experimentamos a Páscoa de 2020. A morte está a dois metros de distância. “Não me toques”, dizemos umas às outras. O que era expressão de afeto, agora é expressão de medo. Temos medo do corpo que se aproxima.
Experimentamos a abjeção dos corpos. Sentimento que os corpos LGBTQI+ conhecem bem. Passamos por um momento que mudou as relações entre os corpos – a epidemia de HIV/AIDS. Até algumas décadas atrás, pairava no imaginário da sociedade, que a doença podia ser transmitida pelo toque. Por isso, não nos tocavam. Éramos o povo com a marca da besta. Do começo da epidemia até hoje 32 milhões de pessoas morreram em decorrência do HIV/AIDS. Esse número revela a morte do corpo, e não toma em consideração a morte da alma. Morremos e matamos ao evitar o contato. Hoje, em decorrência da COVID-19 morremos e matamos ao promover o contato.
Os corpos abjetos são lançados em valas. Maria Madalena, ao não encontrar o corpo de seu Mestre, pensou que ele tivesse sido roubado. “…Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram”. A COVID-19 não somente gera mortos, como os rouba de nós. Quantos corpos não estão sendo reconhecidos porque as famílias não têm dinheiro para enterrar seus familiares ou para pagar as contas dos hospitais? Os corpos estão sendo depositados em valas comuns, sem reconhecimento. São números. Estatísticas.
Entre corpos roubados e a proibição do toque, a mensagem da ressurreição. Jesus, ao não permitir que Maria o tocasse, deu a ela uma missão: “Vai e diz…”. O que seria mais importante do que o toque? A proclamação da ressurreição! À Maria foi dada a maior de todas as lições: o anúncio do princípio da vida. Em meio à experiência da distância promovida pela pandemia, a urgência da vida. Ainda podemos nos encorajar, ainda podemos dizer umas as outras que há esperança, ainda podemos clamar para que o princípio de vida transforme o modo como nos relacionamos – com a sociedade, com o governo, com o planeta.
Comecei essa reflexão pascal afirmando que a religião é um reservatório de sentido, termino concluindo que a religião, além disso, é sociabilidade. Por meio dela podemos encontrar meios de contradizer as ausências e afirmar a presença por meio do afeto que supera as distâncias e os impedimentos. Assim quero passar minha Páscoa, lançada aos pés de Maria Madalena, reconhecendo também nela o princípio da vida, vida que toca e que é tocada por nós.
* Publicado originalmente na Revista Senso.