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A verdadeira religião

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A verdadeira religião

As religiões estão em alta. Na nossa história contemporânea, há números expressivos de indivíduos aderindo a diferentes religiões, em distintas partes do mundo, numa busca intensa pelo sagrado que traz paz e dignidade.

Por outro, as crenças religiosas e seu uso político estão na pauta do dia no noticiário, bem como os escândalos que envolvem igrejas e os conflitos na esfera pública entre religiosos conservadores e grupos que buscam espaço e reconhecimento social, como as mulheres, LGBTIs, imigrantes e tantos outros que clamam por direitos que respeitem diferenças.

Em geral, a maioria têm alguma noção do que as religiões significam. Elas podem ser popularmente definidas como o universo de crenças que envolvem o transcendente, aquilo que está para além do palpável e do concretamente experimentavel pelos cinco sentidos do corpo.

Daí a ideia geral de “religião” estar voltada para crença em um ou mais seres divinos, superiores, denominados Deus ou deuses e deusas, em espíritos, seres sobrenaturais, na vida para além da morte.

Fato é que o caminho que o termo “religião” percorreu na história das religiões fez com que seu significado passasse por profundas transformações.

Foi na consolidação do cristianismo, quando este foi declarado “a verdadeira religião”, que apareceu a ideia de “religare”. Teria sido Lucio Célio Firmiano Lactâncio, no século II d.C., um dos primeiros cristãos, conselheiro do imperador romano que se fez cristão, Constantino I, quem construiu este novo significado, ao elaborar a política religiosa do Império.

Na obra “Divinae Instituciones”, Lactâncio emprega a palavra “religare” como a religião, devoção, o laço que liga o ser humano ao único e verdadeiro Deus, o Deus cristão revelado em Jesus Cristo. Mais tarde Agostinho retomou a obra de Lactâncio, a aprofundou e consolidou.

Historicamente, a origem do termo é anterior à “religare” cristã de Lactâncio e Agostinho. Está ligada à palavra latina de uso comum na Roma antiga “religio”, referente aos escrúpulos, à observância de leis e regras, às advertências e interdições diante dos descuidos com o coletivo.

Dela derivava-se o termo “relegere” como significado de atenção zelosa, paciência, pudor e piedade. O derivado “religiosus” é que foi relacionado ao culto aos deuses no cotidiano romano, com a ideia de “ter escrúpulos em relação ao culto”. A palavra, portanto, não se relacionava a “religião” tal como passou a ser concebida depois do Cristianismo consolidado.

O tema é relevante nestes dias em que “religião” é forte conteúdo da campanha eleitoral no Brasil, apresentada até mesmo no currículo de candidatos. A qual sentido de “religião” eles se referem?

O tema se torna ainda mais instigante quando, em mídias sociais, indivíduos agridem verbalmente, de forma violenta, aqueles que postam conteúdos dos quais discordam. Quando consultamos o perfil dos agressores lá está o registro de uma vinculação religiosa. O que estes entendem por religião?

Talvez o sentido imperial atribuído pelo Cristianismo dos primeiros séculos seja exageradamente interpretado: um laço que liga o ser humano a um Deus, único e verdadeiro. Um laço tão forte que dá a este ser humano ou grupo de seres humanos a propriedade da verdade, que passa a ser imposta a qualquer custo sobre os que não estabeleceram esta ligação.

O divino acaba refém deste processo levado a cabo mesmo que isto afete a dignidade e a integridade do outro. Daí as guerras, os atentados terroristas, os conflitos interpessoais e grupais em nome da religião.

Tudo isto diz que a ideia de religião nada mais é do que uma compreensão relacionada ao contexto em que se vive. O filósofo Jacques Derrida defende que, apesar de relegere-religio e religare terem sentidos distintos, aparentemente concorrentes do ponto de vista filosófico e ideológico, eles têm um ponto comum: a ligação, o vínculo que tem relação de responsabilidade com o divino.

Por isso ele propõe que a relação de complementaridade entre relegere e religare seja a possibilidade de um pensamento comum: a observância zelosa, escrupulosa do culto, da prática religiosa, e os vínculos/laços de devoção e de relação amorosa que unem os seres humanos ao divino.

Este pensamento me traz à memória a leitura bíblica que ouvi em um sermão em uma comunidade evangélica no domingo passado. São trechos do capítulo 1 da Carta do Apóstolo Tiago, versículos 21 a 27:

Portanto, deixem de lado toda impureza e acúmulo de maldade, e acolham, com mansidão, a palavra que Deus colocou no seu coração, que pode salvá-los. Não se enganem: tornem-se, então, praticantes da palavra e não somente ouvintes. (…)

Se alguém pensa ser religioso, deixando de controlar a língua (que fere), engana-se a si mesmo: a sua religião não vale nada. Para Deus, o Pai, a religião pura e verdadeira é esta: visitar os órfãos e as viúvas (as pessoas que mais sofrem) nas suas aflições e não se contaminar com as coisas más deste mundo”.

Laços de amor com o divino que desenvolvem escrúpulos na prática religiosa e no cuidado com a coletividade… Eis aí um parâmetro de discernimento, em tempos de disputas eleitorais que instrumentalizam as religiões, para se identificar quem pratica a “religião verdadeira” ou quem está propagando uma “religião que não vale nada”.

Fonte: Diálogo da Fé, Carta Capital, 05/09/2018.

Jornalista, educadora, membro da Igreja Metodista. É doutora em Ciências da Comunicação, mestre em Memória Social e graduada em Comunicação Social (Jornalismo). É autora de "Explosão Gospel. Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo", pela Editora Mauad. É integrante do Grupo de Referência da Peregrinação de Justiça e Paz do Conselho Mundial de Igrejas. É colunista da Carta Capital.

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