De quem é a terra? Uma defesa bíblica dos direitos dos povos indígenas
[Por André Muniz]
Em 13 de setembro de 2007, a assembleia geral das Nações Unidas aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Este documento, que vem sendo trabalho pela ONU desde 1985, fruto de extensas pesquisas e debates entre representantes indígenas do mundo todo e membros da sociedade civil, funciona como um parâmetro para governos nacionais no trato das populações indígenas de seus respectivos países. Contudo, ainda que a Declaração tenha sido aprovada, resta o desafio, tanto para o Estado quanto para os povos indígenas, de implementar adequadamente esses direitos.
Dentre as diversos artigos da Declaração, um dos mais importantes e de mais difícil implementação é o Artigo 28:
“1. Os povos indígenas têm direito à reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando isso não for possível, uma indenização justa, imparcial e equitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento livre, prévio e informado.
2. Salvo se de outro modo livremente decidido pelos povos interessados, a indenização se fará sob a forma de terras, territórios e recursos de igual qualidade, extensão e condição jurídica, ou de uma indenização pecuniária ou de qualquer outra reparação adequada” (ONU, 2007).
De certa forma, os territórios “tomados (…) sem seu consentimento livre, prévio e informado” incluem toda a extensão do continente americano, que já era habitado pelos nativos quando colonizadores europeus chegaram e, através do extermínio sistemático de suas populações, dominaram esse território e dividiram entre si suas fronteiras atuais. Os povos restantes, sobreviventes de todo o processo colonial e integralista (que continua em vigor), entretanto, lutam para que a diretriz da ONU seja praticada, e que os seus territórios tradicionais sejam devolvidos, homologados e respeitados.
A preocupação com a territorialidade indígena não deveria ser apenas uma questão política, mas também teológica. A Bíblia, em Levítico 25, apresenta diretrizes para a questão da posse de terras na comunidade de Israel. Ainda que a tradição cristã entenda que a lei mosaica não deve ser aplicada no mundo contemporâneo, ela ainda reconhece a Torá como palavra de Deus, divinamente inspirada e de onde se podem retirar princípios e lições em todo e qualquer período da história. Por isso, quero mostrar como esses princípios podem ser aplicados na situação atual dos indígenas no Brasil.
A posse de terras na Lei de Israel
Israel, originalmente formado por clãs nômades, viveu um período de escravidão no Egito, segundo conta a sua própria história. Voltaram ao nomadismo logo em seguida, tentando se estabelecer na região de Canaã, onde se envolveram em muitos conflitos com a população nativa, entre os séculos XII a X a.C. Conseguiram um curto período de sucesso com o Reino de Davi, mas menos de cem anos depois, a nação foi dividida entre Israel e Judá e ambos sucumbiram ante os Impérios que os rodeavam. No curto período de tempo em que os israelitas possuíram seu próprio território, contudo, o Pentateuco orientou como deveria ser o uso correto da terra, segundo os padrões sociais, culturais e teológicos do povo de Javé.
Assim, o livro de Levítico, no capítulo 25, ordena que a cada seis anos a terra descanse e nada seja plantado nela; e a cada quarenta e nove anos, façam “soar a trombeta por toda a terra de vocês. Santifiquem o quinquagésimo ano e proclamem liberdade na terra a todos os seus moradores. Esse será um ano de jubileu para vocês, e cada um de vocês voltará à sua propriedade, cada um de vocês voltará à sua família” (v. 9–10). Quando ocuparam as terras de Canaã, estas foram distribuídas entre os israelitas, segundo as suas famílias, clãs e tribos (Js 11.23), de modo que não deveria haver israelita sem-terra. Porém, reconhecendo que alguém poderia empobrecer (seja por maus negócios ou questões ambientais, como pragas e secas) e, por isso, vender a sua terra ou até a si mesmo para sanar suas dívidas, a cada quarenta e nove anos todo israelita escravizado deveria ser liberto, e toda a terra devolvida ao seu proprietário original.
Todavia, não vivemos mais na nação teocrática de Israel. Quais são, portanto, os princípios que nortearam o estabelecimento do Ano do Jubileu, e como aplica-los na contemporaneidade, no Estado laico do Brasil? Em Levítico, a ordenança de Javé é “que ninguém explore o seu próximo; cada um, porém, tema o seu Deus; porque eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (v. 17). O temor a Deus é, portanto, o que deve impedir os israelitas de explorarem seus irmãos, visto que Ele é Senhor, justo, misericordioso, amoroso e fiel. “Também a terra não será vendida em definitivo, porque a terra é minha; pois vocês são para mim estrangeiros e peregrinos” (v. 23).
A conclusão final é de que a terra pertence ao Senhor, não a humanos que possam possuí-la de fato para si, e deve ser administrada conforme a sua vontade. A terra não era um fim em si mesma, mas existia para que as pessoas tivessem de onde tirar seu sustento, seu alimento e sua moradia. “Deus quer que todos os homens sob seu controle tenham uma vida plenamente realizada. Isso leva automaticamente a reconhecer a dimensão social da posse de terra bem como de quaisquer outros patrimônios” (GERSTENBERGER, 1976). A Lei deveria ser cumprida rigorosamente pelos israelitas, “para que não haja pobre no meio de vocês. Porque o Senhor, o Deus de vocês, os abençoará ricamente na terra que lhes dá por herança, para que vocês tomem posse dela, se apenas ouvirem atentamente a voz do Senhor, seu Deus, cumprindo todos estes mandamentos que hoje lhes ordeno” (Dt 15.4–5).
A situação histórica dos povos indígenas no Brasil
Apesar das diretrizes legais de Israel, a narrativa bíblica mostra que, aparentemente, nenhuma dessas ordenanças foi cumprida. A denúncia dos profetas era “porque vendem o justo por dinheiro e condenam o necessitado por causa de um par de sandálias” (Am 2.6). O descaso com os pobres e oprimidos era entendido pela literatura profética como uma das principais causas do castigo divino, representado pelo cativeiro na Babilônia, o que pode ser visto claramente nos oráculos pré-exílicos, como Amós, Oseias, Jeremias, Isaías e etc.
Infelizmente, uma situação semelhante — na verdade, até pior — pode ser vista na história do Brasil. Os portugueses chegaram aqui com a cruz em suas bandeiras, realizaram belas missas, em seguida mataram, escravizaram, estupraram e aculturaram os nativos desta terra, isso sem nem citar o que foi feito dos africanos. Se diziam ser seguidores da Bíblia, mas ao invés do Evangelho que traz a vida, trouxeram para Abya Yala (continente que os invasores chamaram de “América”) violência e morte. Sobre os cristãos, disseram os indígenas: “Eles nos ensinaram o medo. Vieram fazer as flores murchar. Para que a sua flor vivesse danificaram e engoliram nossa flor” (citado em BOFF, 1992).
“No período colonial, muitos foram os povos exterminados, massacrados, escravizados e forçadamente aculturados nos chamados ‘descimentos’. Quem de nós já ouviu falar nas famigeradas ‘guerras justas’ contra os indígenas? Foram mais de oitocentos povos, línguas e culturas exterminadas por ela. (…) O colonizador carregava a cruz (crucifixo) com uma mão e com outra, carregava espadas para trucidar tudo e todos que se opunham à sua vontade” (YAMÃ, 2019).
Infelizmente, essa situação não ficou restrita aos primeiros anos de invasão. As nações que sobreviveram à colonização continuaram — e ainda continuam — enfrentando todo tipo de violência e opressão. Sempre de olho nas terras indígenas, ruralistas, garimpeiros, madeireiros, grileiros e grandes empresas continuam a matar, perseguir e oprimir essas pessoas, impedindo-os de manter até o pouco território que lhes restou. Apenas treze por cento do território nacional pertence, legalmente, aos povos originários, que outrora foram donos de cem por cento dele, e mesmo esses meros treze por cento são alvo da cobiça e ganância de homens cruéis, que não se preocupam em cometer as piores atrocidades para conseguirem os seus objetivos.
Em 1960, fazendeiros com a ajuda de funcionários do SPI (o já extinto Serviço de Proteção ao Índio) presentearam indígenas com alimentos envenenados. Aviões lançaram brinquedos contaminados com vírus de gripe, sarampo e varíola em algumas aldeias. Assim, cerca de 3.500 pessoas da etnia Cinta-Larga morreram. Esse é só um dos muitos genocídios que foram praticados na história do Brasil, com um objetivo bem específico: matar, expulsar e/ou integrar os indígenas, para invadir e tomar as suas terras. Esse objetivo continua em pé: só em novembro e dezembro do ano passado (2019), quatro indígenas Guajajara foram assassinados. “Assim, aqueles que eram os legítimos donos da terra passaram a viver de favor, confinados e dependentes do governo colonizador em praticamente tudo” (YAMÃ, 2019).
O dever dos cristãos
“Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 6.2). Uma vez que conhecemos a história e a situação atual dos nossos irmãos indígenas, é nosso dever, enquanto seguidores de Cristo, cumprir a sua lei, carregando o seu fardo, lutando pelos seus direitos junto com eles, sem, é claro, roubar o protagonismo de sua luta, “tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28).
O desejo de Deus com a proclamação do Ano do Jubileu em Israel era que cada israelita que, mesmo que fosse por escolhas ruins (visto que a Lei não apresentava exceções), tivesse empobrecido e perdido sua terra e talvez até sua liberdade, voltasse para casa. Deuteronômio 15 vai além e ordena que não apenas a terra e a liberdade do israelita lhe seja restituída, mas que o irmão ainda empreste dinheiro para que o pobre prospere, sabendo que a cada sete anos todas as dívidas deveriam ser canceladas. Muito mais então, não desejaria ver Deus os povos originários, que mesmo em meio a tanto sofrimento conseguiram sobreviver, retornar a seus territórios, com todas as condições necessárias para prosperarem? Aliás, não estamos fazendo nenhum favor, apenas humildemente devolvendo o que nunca deveria ter sido tomado.
“Ora, se alguém possui recursos deste mundo e vê seu irmão passar necessidade, mas fecha o coração para essa pessoa, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade” (1 Jo 3.17–18), ou como diz em outra tradução, “em ação e em verdade” (NVI). Não basta dizer genericamente que “amamos os povos indígenas”. Se nós, tendo recursos (não apenas no sentido financeiro) não investimos nosso dinheiro, nosso tempo, nossa voz, nosso voto, nossos corpos e nem mesmo as nossas orações na causa indígena, então, com certeza, o amor de Deus não está em nós.
Façam soar a trombeta, proclamem o Ano do Jubileu em toda a terra do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BÍBLIA, Nova Almeida Atualizada.
BOFF, Leonardo. América Latina: da conquista à nova evangelização. São Paulo: Ática, 1992.
COHN, Sergio. KADIWÉU, Idjahure (Org.). Tembetá — conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019.
GERSTENBERGER, Erhard S. A terra e sua posse conforme o Antigo Testamento: Observações e perguntas. Estudos Teológicos v. 16, n. 2. EST, 1976.
ROCHA, Julio Cesar de Sá. SERRA, Ordep (Org.). Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais. Salvador: EDUFBA, 2015.
YAMÃ, Yaguarê. À todos os indígenas e aliados. São Paulo: Editora Cintra, 2019.
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008.
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/04/01/interna_internacional,1134599/outro-lider-indigena-e-assassinado-na-amazonia.shtml. Acesso em 18/04/2020.
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/estudo-mostra-concentracao-de-terras-no-brasil-expressao-maxima-da-desigualdade-social.html. Acesso em 18/04/2020.
* André Muniz é graduando em Teologia na Faculdade Latino-americana, em Arujá-SP e foi missionário pela JOCUM.
2 Comments