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Entre Luther King e Marielle: as vidas que a violência interdita mas não vence

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Entre Luther King e Marielle: as vidas que a violência interdita mas não vence

Entre Luther King e Marielle: as vidas que a violência interdita mas não vence

Por Renata Souza e Ronilso Pacheco

A memória de Luther King é sobretudo perturbadora para os racistas estadunidenses. Por lá, a ala branca e conservadora da igreja evangélica, insiste em relativizar King. Seja pela tentativa de “domesticar” a sua imagem, para torná-la palatável para os white brothers and sisters, afastando-o o máximo possível da imagem do “violento” Malcom X, seja pelo completo silêncio, diminuindo sua importância histórica global. Mas pelo menos uma vez por ano, precisam conviver com a sua força, sua presença e o legado de sua profecia — que segue gritante, reproduzida em outras vozes e outros corpos.

No esforço de tornar a imagem de King palatável para seus membros brancos,  a igreja evangélica conservadora, base eleitoral do Partido Republicano, tenta esconder o Luther King que criticou o militarismo, denunciou com veemência o papel dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã em um discurso histórico realizado na Riverside Babptist Church em Nova Iorque em 67, e fez duras críticas ao capitalismo que se materializava em exploração e mais geração de pobreza para uma maioria esmagadora da população, e não apenas a comunidade negra. King diz, inclusive, de como ele deixou de ser “popular” na aristocracia do poder, inclusive para a imprensa dos EUA, quando “quebrou o próprio silêncio”. Quando ele passou a denunciar o apego do stablishment ao militarismo, à guerra e a íntima relação entre armas e capitalismo, o prestigiado King deixou de ser alguém que incomodava “apenas” a segregação.

Chame como preferir, chame de democracia ou chame de socialismo democrático, mas deve haver uma melhor distribuição da riqueza neste país dentre todos os filhos de Deus. – Martin Luther King, Jr.

Entre o King de “I Have dream”, em 63, e o King da Campanha pelas Pessoas Pobres em 68, há o assassinato de Malcom X em 65 e o início da Guerra do Vietnã. Há um Luther King amadurecido pela perseverança da segregação, da sede insaciável da supremacia branca pelo poder e a manutenção de privilégios, e há um King convicto de que a igreja branca e conservadora nos Estados Unidos não se arrependeriam tão cedo nem do seu pecado do racismo, nem da sua convicção de que a comunidade negra inspira perturbação e pobreza.

Martin Luther King é assassinado em meio à sua articulação para realizar uma nova e maior marcha até Washington para pressionar o Congresso para a criação e aprovação de uma “Declaração de Direitos Econômicos” para os americanos pobres. Uma elite branca e aristocrata, insatisfeita com a ousadia do pastor preto que expunha ao mundo o racismo e a segregação racial dos Estados Unidos, considerou a gota d’água este mesmo pastor querer tocar e ameaçar os privilégios da distribuição de renda, da riqueza, dos acessos a bens e serviços que uma classe média branca se considerava herdeira única e legítima.

No Brasil a tentativa de desmoralização e deslegitimação do povo preto e pobre sempre foi uma estratégia da elite econômica e política. Os nossos heróis de ontem como Dandara, Zumbi, João Cândido e da nossa gigante de hoje e sempre, Marielle Franco, são colocados em segundo plano ou criminalizados. Se os pretos se revoltam, pagam com a vida, são retirados dos livros e das memórias, quando não são transformados em vilões. Por isso, a nossa ação enquanto negros defensores dos direitos humanos é de reconexão com a ancestralidade, com os nossos mais velhos e mais velhas, iluminando vidas de luta e de reexistência. Contaremos a história que a história não conta, como diz o samba da Mangueira deste ano. Sim, a história Das Marias, Marielles e dos Malês.

Não por acaso, é nesse processo de invisibilização dos pretos, que a igreja evangélica brasileira também se distancia e esquece da história de Luther King — talvez o evangélico mais conhecido do planeta — e o seu legado. Porém sua memória continua, ano a ano, sendo celebrada entre ativistas, militantes e homens e mulheres sensíveis com as pautas referentes ao direito à vida. A igreja brasileira não deveria se calar sobre a memória de King. É inclusive um equívoco que poderia ser revertido, se a maioria esmagadora da igreja brasileira não ignorasse a memória e o legado profético de Marielle Franco.

“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” – Marielle Franco

É possível, muito possível na verdade, que Marielle Franco consiga percorrer um caminho semelhante. Não dá para imaginar se ela terá, daqui a cinquenta anos, para a comunidade negra no Brasil a força que Martin Luther King tem para a comunidade negra nos Estados Unidos. Mas nenhuma outra figura, mulher, negra, de favela, erguida da luta e da solidariedade, parece ter chegado tão perto de conseguir isto.

E evidentemente se aproximar do prestígio e da repercussão de Luther King no seu país natal e no mundo não é critério ou régua de importância da força que Marielle possui. Na verdade, é um dos únicos meios comparativos de dimensionar o que ela, que definitivamente virou semente, se tornou. Entre King e Marielle, está uma incrível e semelhante capacidade de inspirar para o futuro, em especial uma juventude negra, pobre, da favela e da periferia. Talvez, o maior medo que Marielle pudesse causar aos podres poderes, era justamente a capacidade que esta mulher tinha e tem, porque Marielle é presente, com sua força indomável e generosidade encantadora, para inspirar pessoas, inflá-las de esperança. O cálculo era de que “seria mais seguro” interditá-la agora, antes que sua força indomável se tornasse incontrolável. Mas todos nós descobrimos que esta força já era rebelde, indomesticável, gigante. E Marielle, assim como King, ressuscitou.

Fonte: Blog Negro Belchior, 04/04/2019

Ronilso Pacheco é de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Teólogo e pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo, é ativista no campo dos direitos humanos e colaborador de diversas organizações, igrejas e movimentos sociais. É formado em Teologia pela PUC-Rio e mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA). É autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão” (Novos Diálogos, 2016) e organizador do livro “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018.

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