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Equívocos piedosos. Uma reflexão sobre o texto de Antônio Carlos Costa
O texto “Tentações da Missão Integral”, escrito por Antônio Carlos Costa, é um texto a ser considerado por quem gosta de teologia, sobretudo para quem se aplica à Teologia da Missão Integral. A seriedade do texto é emprestada pelo autor que é alguém que vive o serviço e a piedade.
Como análise teológica é bastante parcial e caricato. Para ser mais preciso, o texto fica entre o respeito de quem experimenta a dor dos que sofrem e a desconfiança típica do neoconservadorismo. Exatamente por isso gostaria de refletir sobre os equívocos piedosos presentes no texto. Farei isso como quem quer apresentar o contraditório para o enriquecimento do debate teológico. Percorrerei um por um os dez pontos (tentações) apresentados pelo autor.
1) A primeira tentação, segundo Antônio Carlos, é “Ignorar o chamado à evangelização do mundo”. Por piedade, o autor incorre no equívoco clássico do dualismo antropológico (que será marca de todo seu texto). Injustiça social e injustiça pessoal estão separadas como se fosse possível cuidar de uma descuidando da outra. Ao dizer que uma atenta contra a relação do homem com seu semelhante e a outra do homem com Deus, o autor ignora o imperativo não dualista de que o amor a Deus se realiza no amor ao semelhante (quem faz a um dos meus pequeninos, faz a mim).
2) A segunda tentação apontada é “Perder de vista o fato de que o pobre é pecador”. Aqui a piedade extrapola a capacidade mínima de percepção do ethos da Teologia da Missão Integral. Essa é uma teologia conservadora, conversionista, onde o tema do pecado (e certa confusão do pecado com incorreção moral) ainda exerce papel decisivo. Penso que autor tem no horizonte a Teologia da Libertação (ou a caricatura feita sobre ela) quando fala de certa santificação ontológica do pobre.
3) A terceira tentação é “Relativizar o aspecto privado da ética cristã”. Mais uma vez o dualismo presente na reflexão do reverendo Antônio Carlos aparece. Não que não seja importante perceber as dimensões que a ética pode abarcar (coletiva e pessoal, objetiva e subjetiva). Sim, há dimensões a serem observadas, mas não como rivais entre si mesmas. Mais uma vez o autor traz o tema do pecado para a conversa dizendo que o risco é não mais nomear o pecado individual em nome do maior esclarecimento sobre o pecado estrutural. Numa perspectiva dialógica tais nomeações ocorrem concomitantemente à medida que cada uma delas é enfrentada em sua urgência.
4) A quarta tentação que a Teologia da Missão Integral está sujeita, segundo o autor, é “Tornar-se marxista”. Aqui a caricatura alcança sua expressão máxima. Piedosamente o autor observa o risco da idolatria que está na relação com o marxismo. Isso porque ele cai na velha cantilena anticomunista (embalada pelo fundamentalismo) que compreende marxismo como religião secular. Quando o autor diz que “Nunca devemos nos esquecer do fato que o marxismo vê Cristo, moral cristã, céu, Bíblia, igreja, culto, como frutos de relações econômicas sem nenhum fundamento na realidade dos fatos”, ele mostra sua (verdadeira?) intencionalidade apologética. O equívoco fundamental aqui é a incapacidade de perceber no marxismo um instrumental de análise da realidade como qualquer outro. Ao lançar mão de certo instrumental teórico não me torno membro de certa seita, apenas aplico recursos disciplinares e interdisciplinares à tarefa teológica. Um teólogo que lança mão de Aristóteles, Adam Smith, Marx ou outro teórico, está estabelecendo mediações para a reflexão teológica, somente isso.
5) A quinta tentação é “Pregar de modo soberbo e amargo”. “…Viver a insultar quem pensa de modo diferente…”: assim Antônio Carlos apresenta a tentação da soberba que se encontra diante da Missão Integral. Bem, essa não é uma tentação que a Teologia da Missão Integral estaria sujeita, mas a que todos os seres humanos estão sujeitos. A soberba de achar que quem não lê o mundo de mesma forma é menor que eu, aparece no calvinismo, no arminianismo, no liberalismo, no pentecostalismo … em suma, aparece onde existam pessoas. Destacar tal tentação como inerente à Teologia da Missão Integral é, de certa maneira, destacar negativamente a própria Teologia da Missão Integral do meio das demais agremiações teológicas. Isso não é honesto.
6) A sexta tentação é de ordem pragmática: “Pastorear igreja que não cresce e não se perturbar com isso”. Parece até tema de workshop de encontro sobre Igreja com Propósito. Vivemos num contexto eclesiástico pragmático, onde ministros precisam ser aprovados em seus ministérios; e o critério principal para isso é o crescimento numérico de suas comunidades. Essa tirania da performance, embalada piedosamente em alguns textos bíblicos, torna-se vocação e santidade dos ministros. É certo que o crescimento é o resultado de uma comunidade viva; contudo, a falta dele também pode ser uma evidência de saúde (porque muitas vezes o que chamamos de crescimento não apresenta as características necessárias para sobreviver às exigências do evangelho).
7) A sétima tentação é “Usar o púlpito para falar desmedidamente sobre política”. Aqui aparece de forma claríssima a paixão de um pregador puritano que ama a pregação e, sobretudo, a pregação expositiva. Mais uma vez o dualismo turva a análise. Se o problema é falar “demasiadamente sobre política”, falar sobre política não é o problema. Agora quem é que mede o falar aceitável e o falar demasiado? Qual fala é política e qual não é? O que é por fim uma fala política? O que é política? Parece que o autor elege certas falas como sendo políticas e nelas enxerga a demasia. Pregar expositivamente sobre a Escritura não seria ter de falar da política como elemento presente nas mais diversas dimensões da vida? Seria possível pregar um só texto dos evangelhos sem falar de alguma maneira em política?
8) A indicativa da oitava tentação brota de um coração entregue ao serviço pastoral: “Acreditar que pelo fato de pregar sobre o pobre está servindo ao pobre”. Aqui estamos mais uma vez diante de uma tentação que não é privilégio da Teologia da Missão Integral, mas de toda teologia, que não podendo se esquivar da amizade de Jesus pelos pobres, se vê tentada a resolver no discurso aquilo que não está disposta a enfrentar na vida concreta. Se isso em si já é terrível, poderia ser ainda pior: nem mesmo no nível do discurso acolher o tema da pobreza. E há muita teologia que procede dessa maneira.
9) A nona tentação parece que tem endereço pré-destinado: “Envolver-se com política partidária”. Essa não é uma prática da Teologia da Missão Integral enquanto movimento, mas de algumas pessoas em particular (para quem eu desconfio que esse item esteja endereçado). O reverendo Antônio Carlos diz que “Essa é uma coisa que o membro da igreja pode fazer. Mas, como fica a vida de um pregador que usa da sua influência para levar pessoas a aderirem ao seu partido político…?”. Vê-se com isso que a tal tentação tem CEP garantido. Se for assim é preciso fazer notar que o todo não pode ser tomado por uma de suas partes. Para além da disputa personalíssima que parece figurar aqui, o alerta do autor se dirigiria com mais propriedade aos conglomerados evangélicos que se encontram por trás das bancadas de vereadores, deputados estaduais e federais, senadores e outros de funções executivas.
10) Na décima tentação aparece com toda força o perfil puritano do autor: “Ser mais versado em ciência política do que em teologia sistemática”. O título é um ato falho. A fixação com a (velha) teologia sistemática não se expressa na explicação do item. O que o autor chama a atenção é que “A igreja espera ter como pastor um pregador bom de Bíblia. Capaz de fazer leitura sobre as demais disciplinas do pensamento a partir do enquadramento intelectual da boa teologia sistemática”. A piedade aqui camufla o que todo estudante de teologia mediano sabe: as ciências, sobretudo as humanas e sociais, são constitutivas de nossas hermenêuticas. Então não caberia dizer “Se a sua paixão é ciência política e não a exposição das Escrituras, largue o púlpito, pois nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. A exposição da Escritura sempre terá como suporte de investigação e comunicação as ciências do político. O que por vezes ocorre é que o expositor não traz à tona tais mediações, fazendo assim certa naturalização delas, divinizando-as e conferindo a elas poder superior que a outras que ele pretende desqualificar.