O Natal que escarnece do guri de Belém
Nesta época do ano quero me lembrar do Jesus criança: judeu-árabe do primeiro século; filho de uma adolescente que foi achada grávida e seu noivo forçado a se casar ou deixá-la (e ele pensou seriamente nisso!), e assumir a culpa de tê-la engravidado e deixado ou ficar com ela e passar por idiota diante de amigos e familiares. Essa menina que aceitou os olhares cruzados, censuradores, dos adultos santos e conservadores, para poder acolher o que não fazia sentido pra ninguém: ser grávida de Deus! “Que conversa é essa, sua sem-vergonha!”
Quero me lembrar do rei nascido numa cocheira com cheiro de esterco de boi, porque seus pais não podiam pagar a pousada ou o hotel de veraneio (na verdade, de início de primavera, porque ele não nasceu no dia do Sol Invicto, mas durante a peregrinação anual da Páscoa) e tiveram que chegar lá caminhando mais de 300 km a pé, ou no lombo de um jumento! Sem férias, sem os confortos das viagens planejadas. Sem o dinheiro da volta assegurado de antemão.
Prefiro celebrar o exilado político que, perseguido pelo rei serviçal do Império, teve que ser levado às escondidas e às pressas, no escuro da noite, por seus pais, para a terra onde seus antepassados foram escravos por.mais de 400 anos. Não a cruz, mas o nascimento, a chegada ao mundo de uma criança que nos traz a esperança da vida. Não a morte, sem a promessa de vida nova. Não a certeza da salvação, mas o desejo da sobrevivência e a proteção da vida em risco.
Não há cruz sem o Natal. Não há perdão dos pecados sem a experiência da vida. Vida sem regras, antes das regras, vida vulnerável de um bebê, filho de pobres e considerado um perigo para os poderosos. Este é o único Natal que me interessa celebrar no Natal. Nenhuma morte sem vida primeiro.
Nenhum sofrimento do adulto sem o sofrimento absurdo, obsceno, injustificável, da criança. Jesus, bebê de Belém, que não foi de Nazaré antes de ser o da cocheira de Belém e do asilo do Egito, este é o seu Natal, que muitos hoje não sabem mais celebrar. Especialmente no meu país, onde os cristãos estão muito mais para Herodes, seus assessores e sua subserviência ao império romano, que para a juventude pobre de José e Maria e a ameaça do indefeso menino de Belém.
Neste país em que os que se dizem seguidores do menino apoiam a morte de meninos/as que não mereceriam viver, de pretos, pobres e periféricos que são.
Neste país, em que animais e pessoas são ameaçados de morte em nome da liberdade dos que têm armas nas mãos ou apoiam os que as têm e a quem pedem para atirar na cabecinha, para proteção dos cidadãos de bem.
Neste país em que se reza o pai nosso “ecumenicamente”, mas se acredita que Deus pede a destruição da religião do outro.
Neste país asqueroso e hipócrita que defende a família, mas aceita e pede a morte da criança.
Neste país não há olhos, nem ouvidos, nem braços abertos para o Natal. O que se faz, se canta, se ora, se celebra nas confraternizações de tantas pessoas, fica na conta da hipocrisia, da conivência ou da ignorância culposa de milhões.
Este Natal escarnece do guri de Belém.
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