Na plenitude dos tempos ele chegou nascido de mulher, mulher negra
[Por Aline Martinells]
Natal é sobre a escolha de Deus fazer os caminhos de chegada através do útero. Essa história “tem cor, tem corte e a história de meu lugar.” Tempo em que Deus decidiu pisar o solo concreto da experiência humana fazendo-se carne, classe, cor e habitando entre nós. O menino Deus nasceu. O grande se fez pequeno para caber em nosso escopo de compreensão. O Eterno está presente aqui e agora. O céu chegou para nós. Ele não escolheu para isso um jeito conveniente. Ele veio a seu tempo e seu modo, subversivo e revolucionário de ser. Um Deus como ele é. Para além das expectativas ou teologias frias e indiferentes que o transformaram em um conceito desencarnado, omisso e distante.
Natal é sobre a consumação do plano do Eterno por meio da mulher que gera, pare, alimenta e que tem seu lugar de mulher ressignificado por Deus, saindo do lugar da responsabilização pelo pecado para o lugar de abrigo da redenção. “Ele veio nascido de mulher, na plenitude dos tempos” (Gl 4.4). É dessa mulher, portanto, que ecoa um louvor/protesto, um poema/canção cheio de esperança e de denúncias contra os ricos e arrogantes (Lc 1.46-55). Um canto, uma celebração de resistência, o reconhecimento de que o Deus dos de baixo atentou para ela e interveio na sua história. Escolheu experimentar desse mundo-cão que não lhe poupou de nenhuma injustiça. E o Natal dela é assim, junto com o menino-Deus driblando a necroteologia e a necropolitica de seu tempo.
Natal é celebração do parto, do parir, da chegada do Deus que emana e vem pelos caminhos do útero, através do potente corpo da mulher que gera, abriga e alimenta em toda a sua potencialidade. Ele tem como portal de entrada a vagina de onde correm rios de água viva e de vida. Vaginas cortadas pela misoginia, ferida pelo ódio às mulheres; e sobretudo às pretas e periféricas, que contam com a crueldade do racismo, mas foi nesse contexto e desse jeito que a chegada do Natal aconteceu.
Natal é sobre Maria, a mãe de Jesus, porque quando nasce uma criança nasce também uma mãe, que no ato de apresentação de seu filho no templo, recebera como promessa que uma espada seria atravessada no seu coração. A espada do Estado genocida, infanticida, que atravessou o coração dela e de outras de seu tempo, “Raquel chora por seus filhos e se recusa a ser consolada, pois eles já não existem!” (Jr 31:15). E essa espada seguiu cortando o coração das Marias na história. Recentemente ela atravessou o coração da Maria Mãe de Ágata Felix e chegou até o coração das Marias de Paraisópolis e tantas outras.
Natal é sobre indignidades dos partos das pretas que ainda hoje, em meio ao trabalho de parto, encontram estalagens cheias, encontram o não-lugar para a vida insistente se reproduzir, e parir seus meninos e suas meninas. Porque são os lugares inadequados e improvisados que acolhem o fruto de seu ventre. As mulheres negras são expostas a condições desumanas e violentas, como Maria. No lugar da celebração da vida que se renova, deparam-se com a presença da morte que chega com navalhas nas mãos para desferir cortes contra suas vaginas, seus portais de vida, por onde a vida chega e sai.
O Natal é sobre mães pretas, como Maria, que apesar de descansar do peso da gravidez, não descansa e nem dorme por causa do peso de criar seu menino-Deus, seu Guri, nas quebradas da Galileia, como disse a poeta Conceição Evaristo: “a noite não adormece nos olhos das mulheres”. O sono não chega porque sua cria está sob ameaça do Estado militarizado do Império. E em Maria, nem o sono e nem o descanso chegaram. Depois de seu parto, houve a fuga, e assim seguiu o seu destino para proteger o seu menino. Natal é sobre isso, famílias em fuga e em busca de sobrevivência.
Natal é festa de consolo para mães periféricas que lidam com a incerteza do crescimento de suas crias. Em um primeiro momento, Maria fugiu com seu filho, de Herodes para depois ver seu filho jovem preto ter o consentimento da religião e do estado contra sua vida. Esse é o outro lado do natal, o lado das mães pretas, que lutam contra o Estado, que geram vida mesmo no meio da terra da sombra da morte. Sim, o Natal é sobre isso.
Aline Martinells é baiana, missionária, aprendiz de doula, integra a coordenação do Movimento Negro Evangélico da Paraíba. Formada em Teologia e Serviço Social, atua como professora de Teologia e é mestranda em Serviço Social.