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Os evangélicos e a direita: Lembrando de nosso DNA

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Os evangélicos e a direita: Lembrando de nosso DNA

Os evangélicos e a direita: Lembrando de nosso DNA

O evangelicalismo tem uma identidade paradoxal: suas melhores qualidades são parte integral de seus piores defeitos. A maneira como o foco, peculiarmente evangélico, na conversão individual se manifesta, transforma-se em elemento central tanto da forma revivalista da disseminação ideológica evangélica — que é parcialmente responsável pelo crescimento do movimento, quanto da falta de uma preocupação robusta com o desenvolvimento de um pensamento que vai além de dinâmicas escatológicas.

 

A ênfase na Bíblia como regra de fé e prática, que proporciona limites saudáveis na negociação entre uma consciência livre e a fidelidade para com Deus, geralmente se manifesta em um legalismo fundamentalista primário que transforma em ídolos sagrados certas interpretações específicas das escrituras. O lugar proeminente dado pelos evangélicos a Cristo, à face humana de Deus, abre espaço, por um lado, para uma linguagem cristocêntrica que permeia a mentalidade evangélica. Por outro, informa clara negligência à necessidade de pensar sobre as implicações estruturais dos ensinamentos do mestre.

 

O comprometimento com o princípio do amor ao próximo tem, através da história evangélica, energizado uma série de iniciativas louváveis de alívio à pobreza. Todavia, enquanto tendência, é comumente acompanhado de uma disposição política que relativiza o nível e a seriedade desse comprometimento, já que o mesmo não é acompanhado de um apoio a causas político-legislativas de justiça social. Assim, ouso afirmar que o evangelicalismo é um movimento ambidestro, pois, aquilo que oferece com a mão direita, tira com a esquerda. Naturalmente, existem exceções à regra, mas exceções são exatamente isso, exceções.

 

Em termos gerais o evangelicalismo é, historicamente falando, conservador, simplista e reacionário. Como um evangélico batista, afirmo isso com a esperança de que esse cenário possa eventualmente mudar. Ao mesmo tempo, não me surpreendo com o apoio dado por líderes evangélicos a políticas (e políticos) de direita, nem me vejo esperançoso diante de tentativas de “resgatar” o termo “evangélico”, livrando-o de suas conotações teopolíticas conservadoras. Reconheço, no entanto, que o termo “evangélico” é contestado, e pretendo aqui lembrar ao leitor que não devemos nos espantar ao vermos evangélicos apoiando explicitamente projetos políticos da direita. Ao fazê-lo, evangélicos estão apenas seguindo o rastro da grande maioria de seus ancestrais na fé. Traçar uma genealogia do movimento, portanto, é crucial para que possamos reconhecer que evangélicos, para o bem ou para o mal, tem uma longa história de conservadorismo teopolítico historicamente identificável.

 

É necessário lembrar que o termo “evangélico” tem uma série de significados e usos possíveis que variam desde seu sentido etimológico, relacionado aos evangelhos canônicos, até sua identificação com a Igreja Luterana da Alemanha. É, muitas vezes, apelando a essas possibilidades semânticas que aqueles investidos em repensar o termo tentam reconstruir a reputação do movimento. A forma mais influente do evangelicalismo, no entanto, tem um sentido mais específico. O termo “evangelicalismo”, como usualmente emprego, refere-se aos neo-fundamentalistas americanos que nos anos 1940 se distanciaram do fundamentalismo militante que os precedeu.

 

Apesar desse distanciamento, que ocorreu principalmente em formas de engajamento cultural, ficou preservada a grande maioria das convicções desenvolvidas por essa vertente nas décadas de 1920 e 1930, em função das convicções produzidas como reação ao que eles (sim, eles) percebiam como ameaças às crenças centrais do cristianismo. O termo “evangelicalismo” também descreve, em perspectiva global, a dinâmica religiosa dos descendentes desse grupo. Em termos de crença, fundamentalista e evangélico são faces de uma mesma moeda pois, em geral, um evangélico não difere de um fundamentalista no que acredita. Um fundamentalista é um evangélico com raiva.

 

É impossível traçar a genealogia do evangelicalismo brasileiro sem falar sobre o evangelicalismo americano. Não só por causa da influência missionária e da constante interação entre missionários e líderes evangélicos dos dois países, mas também por causa do consumo brasileiro dos produtos e ideias produzidas em instituições americanas de produção cultural evangélica (seminários teológicos, casas publicadoras, estúdios de filme e música, mídia social etc.). A impressão digital do fundamentalismo das primeiras décadas do século 20 e dos evangélicos que saíram do fundamentalismo é ainda muito forte nessas instituições que continuam a influenciar cristãos ao redor do mundo.

 

Elementos que operam contra o pensamento crítico e iniciativas de justiça social caracterizam significativamente um grande número de instituições e líderes evangélicos. Não é preciso ir longe pra ilustrar isso, basta lembrar da postura do grande evangelista Billy Graham — a figura mais emblemática do movimento no mundo — em relação ao lugar das mulheres e em questões de justiça racial. Graham entendia a participação mais ativa das mulheres na sociedade como parte da degradação da cultura americana. Nos anos 1950, ele lamentou o fato de que muitas mulheres “estão vestindo as calças da família”, apesar do princípio bíblico que diz que “o marido é o cabeça da casa”. Para Billy e Ruth Graham, a esposa cristã ideal deveria ser bela quando possível, mas sempre recatada e do lar.

 

No que diz respeito a questões de justiça racial, Graham, que ministrou ativamente durante o movimento de direitos civis americanos, expressou a esperada subordinação evangélica do estrutural ao existencial, quando disse: “Existe apenas uma solução para o problema racial, e essa solução é uma experiência pessoal vital com Cristo por parte de ambas as raças”. Jerry Falwell, pastor e fundador da Liberty University, chamou o movimento de direitos civis (civil rights) de movimento de erros civis (civil wrongs) e a revista Christianity Today publicou uma série de críticas ao movimento do qual Martin Luther King Jr. era o líder mais conhecido. As posturas tomadas por Graham, Falwell e a Christianity Today das décadas de 1950 e 1960 representam uma postura majoritária no meio evangélico de resistência a iniciativas de justiça social entendidas em termos de intervenção estatal e legislativa.

 

No âmago do paradoxo evangélico está a negociação entre as consequências sociais de uma imaginação apocalíptica, que prega a volta iminente de Cristo, e a tentação de usar o estado para legislar em prol da moralidade evangélica. O uso da estrutura estatal a favor de iniciativas sociais de inclusão, no entanto, foi criticada veementemente por evangélicos através da história — e o uso do termo “socialista” teve uma popularidade especial nessa dinâmica. O presidente americano Franklin Roosevelt foi alvo de constantes críticas vindas da parte de evangélicos e fundamentalistas, sendo chamado de socialista e até comunista devido a suas políticas econômicas e sociais. Mas Roosevelt não foi o único presidente taxado de socialista ou comunista por líderes evangélicos. Também foi concedida esta honra a Harry Truman, John Kennedy e Barack Obama, entre outros.

 

Harold Ockenga, outro gigante do movimento, afirmou que nas escrituras não existia espaço para um estado com fortes políticas sociais, e o movimento de direitos civis de Luther King também foi taxado de comunista. No centro da caracterização de movimentos sociais e intervenção estatal como socialista, ou comunista, está a preocupação com um aparato estatal abrangente. Preocupação que, apesar de ter seus méritos, foi usada, por exemplo, como argumento para a manutenção da escravidão nos Estados Unidos, tendo recebido roupagem nova e legitimação religiosa de teologias evangélicas informadas por leituras superficiais de Friedrich Hayek e Milton Friedman, por parte de líderes intelectuais evangélicos.

 

Em termos gerais, é difícil, se não impossível, identificar causas de justiça social estrutural que foram apoiadas largamente por líderes e instituições evangélicas. Isso não significa, é claro, que o apoio seja necessariamente maldoso — já que a esquerda também erra, e erra muito. Mas, se nos permitirem generalizar, podemos afirmar que, historicamente, evangélicos são de direita, mesmo quando a direita não reflete o evangelho. Para a minoria que se identifica com o evangelicalismo, mas não se encaixa nos parâmetros conservadores, simplistas e reacionários do evangelicalismo histórico, não basta fingir que é a vertente evangélica conservadora que está distorcendo o termo. Nesse movimento multifacetado, a expressão majoritária sempre foi essa — os distorcedores subversivos somos nós.

 

Essa postura minoritária, entretanto, não pode ter como ponto de partida a negação do problema. Ao contrário, como ocorre nos Alcoólicos Anônimos, é fundamental começar a mudança a partir do reconhecimento da condição atual. A maioria de nossos ancestrais, na fé evangélica, eram biblicistas, machistas, racistas, homofóbicos, e antigoverno — com muitas de suas posturas defendidas em nome de Deus. Por consequência, muitos de nossos irmãos e irmãs — consciente ou inconscientemente — compartilham de algumas características semelhantes. É impossível negar esse passado; é impossível negar esse presente. Aqueles como eu, evangélicos progressistas — que formamos uma minoria — podemos apenas dizer que amamos a maioria evangélica, mas que não vamos trabalhar com eles em prol da perpetuação de estruturas injustas.

 

Devemos muito, sem dúvida, aos nossos ancestrais evangélicos, mas somos devedores muito mais ao evangelho de Cristo e ao compromisso de ser e agir de maneira diferenciada. Ao olhar nossa condição evangélica histórica com seriedade, sem tentar negar o passado, estamos livres para afirmar que, deixando as coisas que ficaram no passado, avançamos para as que estão adiante… “Pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus,” aquele que veio para libertar os cativos não só do pecado, mas também da opressão.

Mestre em Teologia Histórica pelo George W. Truett Seminary e em Religião pela Baylor University, onde também concluiu seu doutorado em História do Cristianismo em 2017. É autor de "O Racismo na História Batista Brasileira: Uma memória inconveniente do legado missionário", e diversos artigos em inglês. Ele ensinou na Baptist University of the Américas em San Antonio, Texas, e foi Fellow da Hispanic Theological Initiative no Princeton Seminary, onde é atualmente seu Diretor Assistente. Também é editor associado do periódico Perspectivas e coordenador do GT Religiões Latinx da Academia Americana de Religião — Região Sudoeste.

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