Por que a divisão da Igreja Metodista deveria acender um sinal de alerta para os americanos?
Por Sarah Barringer Gordon
A Igreja Metodista Unida, com cerca de 6,5 milhões de membros nos EUA, anunciou um plano para divisão da igreja por causa de amargas divergências sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a ordenação de clérigos abertamente gays. Para que se torne oficial, a Conferência Geral da igreja de 2020 – tais conferências são realizadas a cada quatro anos – precisará aprovar o plano. Igrejas individuais, então, votariam em que lado se unir, e a desagregação começaria.
Como os metodistas exaustos afirmariam, essa divisão entre igualdade e direitos civis na vida espiritual era esperada já faz muito tempo. Muitos protestantes traçam a origem desse ressentimento à liberalização nas decisões de ordenar mulheres, a partir da década de 1970. Desde então, o fosso entre aqueles que querem expandir a inclusão e aqueles que citam a “tradição” (no plano metodista, aqueles que votariam na separação criariam uma nova denominação chamada Metodista Tradicionalista) aumentou cada vez mais.
Esse tipo de cisma, no qual uma grande denominação governada centralmente se fragmenta voluntariamente (e permite que os que partem levem propriedades da igreja com eles), é raro. Ao confrontar a mesma divisão nas últimas décadas, por exemplo, a Igreja Episcopal (Anglicana) literalmente fincou o pé na sua posição. A igreja resistiu às tentativas dos dissidentes de tomar propriedades da igreja por meio de litígios extensos e dispendiosos – quase sempre com sucesso.
Os metodistas já tentaram isso antes. A última vez, em 1845, a questão era escravidão. Essa divisão também levou décadas.
Na sua fundação em 1785, a denominação metodista era explícita ao pedir a libertação dos escravos. Mas depois a igreja cresceu rapidamente. Tão rapidamente que era a maior denominação nos Estados Unidos em 1840. Ao evangelizarem nas áreas escravagistas, os metodistas capitularam – em 1800, a igreja passou a pedir “libertação gradual”, em 1808 as igrejas locais foram autorizadas a fazer suas próprias regras “Em relação à compra e venda de escravos” e, em 1824, os proprietários de escravos foram gentilmente incentivados a permitir que os escravos frequentassem a igreja.
Com crescente estridência, os clérigos pró-escravidão pressionavam por mais. Eles garantiram uma resolução em 1836 de que a igreja não tinha “direito, desejo ou intenção de interferir” na escravidão. Em 1840, a conferência condenou 10.000 petições abolicionistas, dizendo que os oponentes da escravidão transformavam escravos em vítimas “e os imolavam através do sucesso de sua bondade”.
Os clérigos pró-escravidão até exigiram a introdução de leis civis nos conselhos da igreja depois que um julgamento da igreja – de um congregante branco por sedução no final da década de 1830 – incluiu o testemunho de um homem negro. O ministro que conduziu o julgamento foi censurado e a conferência promulgou uma nova regra – os membros da igreja branca a partir de agora seriam julgados de acordo com as leis estaduais que proibiam o testemunho de todas as pessoas de origem africana. Em outra controvérsia, a lei da escravagista de um Estado foi utilizada para anular as regras de uma igreja local que não permitia pregadores proprietários de escravos.
Finalmente, os clérigos do norte reagiram. Eles desafiaram a legitimidade de um bispo proprietário de escravos na Conferência Geral de 1844. Durante dias, debates sobre a escravidão tomaram a plenária. As forças anti-escravidão argumentaram que a igreja não deve elevar os clérigos proprietários de escravos a essas posições de poder, como a de bispos. Os jornais começaram a falar abertamente sobre uma crise na igreja.
A causa da fissura: James Osgood Andrew, um bispo que afirmou que sua escrava “Kitty” recusou a liberdade porque amava seus donos com tanto carinho. Os nortistas argumentaram que um bispo proprietário de escravos era a gota d’água e a mais ofensiva de uma longa série de demandas dos escravagistas. Andrew respondeu que tinha um escravo “legalmente, mas não com o seu próprio consentimento”. Esse argumento ignorou – convenientemente – que Andrew tinha uma longa história de propriedade de escravos e naquele ano havia se casado com uma mulher que trouxe pelo menos 14 pessoas escravizadas adicionais para sua casa. No entanto, Andrew ficou ofendido porque seus assuntos particulares eram uma questão de discussão pública, objetando à “interferência impertinente [dos norte-americanos antiescravistas] nos meus arranjos domésticos”.
O debate foi mais do que uma desavença sobre a vida doméstica de Andrew. Seus defensores declararam que eles, e não a facção antiescravidão, estavam cedendo terreno há anos a intrometidos nortistas. Eles alegaram ter evitado fazer uma defesa aberta da escravidão em termos bíblicos, apesar do fato de a escravidão não ter sido condenada no Antigo ou no Novo Testamento. Mas, para eles, o ataque a Andrew havia sido uma traição à longa tradição de conciliação da igreja.
Eles também argumentaram – com força – que a escravidão era uma questão de política laica, estabelecendo um status civil e político, não de doutrina religiosa. A escravidão “pertence a César, não à igreja”, disse um delegado conciliar da Carolina do Sul. Uma pessoa escravizada – digamos, Kitty – pode ser uma cristã virtuosa e ao mesmo tempo não ser livre, por questão de direito civil. A virtude espiritual não dava direito à liberdade física.
Esse sofisma enfureceu os metodistas antiescravidão. A noção de que a liberdade poderia ser analisada para sustentar que um cristão não tinha direito à sua liberdade era um anátema para eles.
A delegação da Nova Inglaterra deixou claro que, a menos que fossem tomadas medidas contra Andrew, o Metodismo no Nordeste Americano estaria fundamentalmente comprometido. Dezenas de milhares de metodistas do norte já haviam deixado a igreja por sua posição cada vez mais pró-escravidão; muitos mais no Centro-Oeste os seguiram. Como o reverendo James Porter colocou, a história da igreja de se afastar da oposição à escravidão deixou claro que os proprietários de escravos “estavam conquistando o poder tanto na Igreja quanto no Estado, e deveriam ser detidos em algum momento, ou os brancos do norte teriam pouco mais liberdade do que os escravizados do sul”.
Finalmente, houve uma votação. Por uma contagem de 111 a 69, os delegados determinaram que o bispo Andrew “desistisse do exercício de seu cargo enquanto esse impedimento [posse de escravos] permanecesse”.
Imediatamente, os sulistas ameaçaram deixar a igreja. O “Protesto da Minoria no Caso do Bispo Andrew” invocou a tradição de conciliação da igreja e enfatizou a divisão entre preocupações seculares e religiosas. Mas a maioria votante do Norte se aprofundou, lamentando o que eles chamavam de sua anterior “indulgência” à escravidão.
Toda essa bagunça foi entregue nas mãos de um comitê que deveria estabelecer um plano com “bondade cristã e a mais estrita equidade” – para permitir uma divisão amigável. Como a proposta de 2020, o plano de 1844 permitiu que as igrejas escolhessem (por voto) se deveriam sair ou ficar; e permitia uma divisão de ativos, incluindo a possibilidade de pagamentos em dinheiro.
Mas o divórcio não foi harmonioso. As duas denominações resultantes se odiavam. O litígio levou até à uma decisão da Suprema Corte dos EUA (escrita por um juiz associado escravagista) que concedeu dinheiro substancial à facção do sul. Os nortistas se enfureceram.
Os principais estadistas – incluindo Daniel Webster, Henry Clay e John Calhoun, os três principais arquitetos do Compromisso de 1850 projetado para preservar o país – se pronunciaram publicamente temendo a cisão metodista. Eles viam nisso um sinal ameaçador para o futuro do país.
E, de fato, as novas denominações criaram alianças estreitas entre instituições religiosas e governamentais, forjando laços entre preocupações políticas e espirituais. Os sermões na década de 1860 glorificaram o derramamento de sangue e sustentaram o constante massacre da Guerra Civil Americana – até então a guerra mais mortal da história da humanidade. Como disse um estudioso, cada lado estava convencido de que esse era o único metodismo “verdadeiro” e que estavam travando uma guerra santa – até a morte.
As lições desta história não são reconfortantes. Por um lado, o plano de uma divisão cordial fez pouco para reparar os ressentimentos amargos dos leigos ou do clero. Como muitos divórcios, as brigas por dinheiro representavam desacordos mais antigos e mais profundos que surgiriam novamente na primeira oportunidade. Segundo, em vez de reparar a sociedade, o clero de cada lado liderou a articulação de identidades nacionais opostas, embebidas em sangue e sacrifício espiritual.
Tal reforço mútuo entre governo e instituições religiosas permitiu uma divisão ainda maior e mais perigosa. Isso põe em questão a suposição de que entidades religiosas e governos (ou partidos políticos) são elementos verdadeiramente distintos na vida americana, um objetivo fundamental da desestabilização da religião nos níveis estadual e nacional.
Como ilustra a história do primeiro plano de separação, um cisma conformado por divisões profundamente políticas e com elementos de violência e extremismo, pode ser destrutivo e perigoso. A separação da igreja e do Estado é projetada para reduzir esse conflito. Esta não estava à altura da tarefa na era da Guerra Civil. Embora hoje enfrentemos as novas divisões do século XXI, o aumento precipitado de crimes de ódio e discriminação religiosa devem nos alertar para o fracasso da separação anterior de reduzir as tensões existentes.
*Sarah Barringer Gordon é professora de direito constitucional e professora de história de Arlin M. Adams na Universidade da Pensilvânia. Seu projeto atual é “Luz Sagrada da Liberdade: Desestabilização na América, 1776-1876”, sobre o relacionamento histórico entre religião, política e direito.
Tradução Livre de Alexandre Pupo
**Publicado no The Washington Post em 16.01.2020. Link para o texto original [em inglês]: https://www.washingtonpost.com/outlook/2020/01/16/why-split-methodist-church-should-set-off-alarm-bells-americans/