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Você foi abraçado um dia e o abraço bastou

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Você foi abraçado um dia e o abraço bastou

Você foi abraçado um dia e o abraço bastou

Eu realmente não pretendo falar sobre o Drauzio ou sobre a Suzy, ao menos não diretamente. Até porque grande parte das discussões sequer foi sobre eles. Ao menos na repercussão no universo evangélico, as discussões se tornaram muito mais sobre os limites do perdão e do abraço, quem é digno deles e quem está no grupo do “lixo moral”, para usar uma expressão de Silas Malafaia sobre o caso. O abraço diz mais sobre o Drauzio do que sobre a Suzy. E desde o primeiro momento que o fetiche foi o abraço. Não foi sequer a história pregressa da Suzy, que até então ninguém conhecia. Foi o abraço.

E começando pelo abraço, vocês lembram da reação dos fariseus quando Jesus (Lucas 7) acolhe uma mulher que ousa entrar na sala do fariseu onde Jesus está? Sim, o fariseu comenta “se Jesus fosse de fato um profeta, ele saberia quem é essa mulher, como ela é pecadora”. O que ela havia feito? Naquele momento não interessava. Desconfortável era ver Jesus a abraçando. Mas, meu irmão, minha irmã, eu gostaria apenas de pedir para que nós fôssemos capazes de não perder a esperança, e não cair nas generalizações que querem turvar e deturpar o que a vida de Jesus nos inspira. Porque, sendo humana nossa imperfeição e passionalidade, a mensagem de Jesus é a coisa mais sensata que podemos ter para recorrer.

A maneira como muitas pessoas querem dar respaldo bíblico para justificar a vingança e restringir (porque é disso que se trata) o alcance do perdão que Jesus ordenou é um esforço triste, e em vão. Mesmo quando a vingança e o “perdão restrito-seletivo” parece razoável no Velho Testamento, o horizonte aponta para a individualização e a restrição da vingança, e não do perdão. Eu sei que para muitos isso é uma má notícia, mas é o que temos.

Podemos pensar na instituição das chamadas cidades refúgios (Deuteronômio 4, 19, Êxodo 35, Josué 20). Havia dois tipos de cidades refúgio: aquela para onde deveria ir aquele que matou alguém sem querer, e aquela para quem planejou o assassinato, premeditou, agiu deliberadamente e com ódio. Mesmo no último caso, o assassino, ao fugir para a cidade refúgio, deveria ser buscado e entregue para ser assassinado pelo “vingador da vítima”.

Isto quer dizer duas coisas importantes. A primeira é que o grupo que redigiu o texto desta tradição (ou, Deus, como queira) estava consciente da impossibilidade de ignorar, ou mesmo “romantizar” a indignação e o desejo de vingança de quem perde a pessoa que ama. A segunda é que ao dizer que o “direito” da vingança era do “vingador da vítima” (ou seja, seu próximo, seu parente), o redator, ou Deus, está dizendo que esta vingança é limitada e restrita. Ela não é, e não deve ser, um orientador social. A sociedade não deve ser orientada pela vingança.

Minha dor é compreensível, é humano que eu não controle minha indignação e queira se vingar de quem tirou alguém que eu amo de mim. Mas Jesus espera que isto não me torne um odiador de pessoas trans, que eu não me transforme em um perseguidor e agressor de pessoas trans, deduzindo que a comunidade trans, por definição, é pedófila, cruel e assassina. Isto seria perverso. E esta é a parte difícil do seguimento de Jesus.

Não é razoável que alguém espere que a trans da matéria do Dr. Drauzio receba um abraço da família do menino, que a mãe perdesse seu filho de uma maneira horrenda e levasse cartas e bombons na prisão. Pode não ser razoável sequer esperar que a família da própria Suzy a visite, tamanho trauma e decepção. Mas, na perspectiva de Jesus, também não é razoável que não haja ninguém, não envolvido com a história, que não esteja disposto a abraçá-la.

É um erro pensar no perdão como uma espécie de sentimento individual que devemos sentir por uns e não por outros. O perdão proposto por Jesus, na resposta à pergunta dos discípulos sobre quantas vezes devemos perdoar (Mateus 18), está muito mais para um instrumento cujo poder é capaz de interromper a espiral de violência. É só por isto que a resposta de Jesus tem relação com a afirmação de Lamec em Gênesis 4. O perdão e o abraço de Jesus são escandalosos, e a única maneira de pessoas que não suportam esta possibilidade do perdão irrestrito existir, é mudando o seu sentido. Malabarismos horrorosos para dar ao evangelho uma seletividade que ele não tem.

Meu irmão, minha irmã, a vida de Jesus traz desafios de amor e misericórdia que foram fundamentais para nós, mas que nos deixam muitas vezes desconfortáveis com relação a outros e outras. Porque, no fim, é muitas vezes perturbador saber que Jesus (ou que Deus) é incondicionalmente misericordioso com quem a gente acha que é pior do que nós. A Suzy foi pior, muito pior, que muitos e muitas de nós. E é duro às vezes saber que, ainda assim, Jesus estaria aberto ao seu arrependimento e abraço. Este seria um bom momento para dizer que seguir Jesus é demais para nós mesmos. Afinal, todo cristão, se cristão hoje, é porque foi abraçado um dia, por alguém que não pediu a sua ficha antes.

Ronilso Pacheco é de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Teólogo e pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo, é ativista no campo dos direitos humanos e colaborador de diversas organizações, igrejas e movimentos sociais. É formado em Teologia pela PUC-Rio e mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA). É autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão” (Novos Diálogos, 2016) e organizador do livro “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018.

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