Artigos
As águas estão divididas
Não me agradam as leituras maniqueístas, onde há nós e eles, branco e preto, como polos ou grupos fechados e absolutamente contrapostos uns aos outros. E continuo crendo na impossibilidade de pensar a realidade desta maneira. Mas há momentos onde o fio se tensiona demasiadamente pelas circunstâncias, onde os posicionamentos em questão se endurecem ou se legitimam de tal maneira que as zonas cinzentas ou leituras politicamente corretas não alcançam.
Isto é o que vem acontecendo no campo evangélico latino-americano faz já alguns anos. E como mencionamos, isto acontece na esteira dos conflitos e tensões sociopolíticas do continente. A igreja continua se pretendendo neutra ou apolítica? Porque os fatos a contradizem completamente. Na realidade, nunca foi assim: mas o aprofundamento dos conflitos que alcançaram uma visibilização pública o expôs ainda mais.
As tensões se deram tanto dentro como para fora da igreja. Por um lado, encontramos uma mobilização social cada vez mais notória por parte de agentes evangélicos para protestar contra projetos de lei, profissionais crentes que assumem um trabalho consciente e protocolar de lobby político, uma estratégia sistemática no modo como grupos de pastores operam e buscam apoio (logístico e financeiro) de organizações internacionais, entre outros elementos. Por outro lado, isto traiu os últimos suspiros dentro do mundinho eclesial: grupos “pró” e “anti” que emergem nas próprias comunidades, pastores expulsos de suas denominações por não apoiar discursos institucionais sobre temas sociais sensíveis, professores de teologia tirados de seminários por ensinar correntes teológicas “perigosas”, e até o cancelamento de conferências por temores de “subversão”, tal como o manifesta o acontecimento vergonhoso que hoje ocupa boa parte do mundo evangélico brasileiro, como foi a suspensão da conferência do reconhecido teólogo René Padilla em uma faculdade das Assembleias de Deus do Brasil sob a acusação de “marxista”.
Por isso, evangélicos e evangélicas, deixem para trás suas desculpas teológicas e assumam seu lugar. A igreja decidiu meter os pés na lama da política e terá que assumir a responsabilidade, já que seu nome já não será visto como a pobre vítima do catolicismo monopólico (com quem agora dão as mãos para as lutas das ruas), nem da “perseguição” das pessoas, já que foi a própria igreja que decidiu se expor diante da sociedade com suas demandas. Hoje, parte do campo evangélico decidiu se empoderar (um pouco mais que antes) e fazer-se ouvir. E é por isso mesmo que deve aceitar as regras do jogo dentro do espaço público.
E eis aqui, então, o grande problema: não se assume a responsabilidade que tal protagonismo implica. As igrejas falam de “democracia”, quando o fato de poder levantar sua voz é precisamente o resultado de tal dinâmica. Por que, então, lutar tão fervorosamente por calar e demonizar a demanda de outros/as? Isso não é antidemocrático? Dizem se sentir “discriminados” pelas leis que estão cuidando, já que desafiam as lições de moral tradicionais de suas instituições da própria “palavra de Deus. Mas acaso não estão fazendo exatamente o mesmo com relação a outras expressões e seus modos de legitimação? Falam de “imposição” do governo, mas na hora de defender sua visão, o fazem em nome da “verdade revelada”. Então, do que estamos falando?
A igreja quer se tornar um ator público mas boa parte de sua teologia e forma de se compreender lhe impede de agir de acordo. Pior ainda, boa parte da liderança é totalmente consciente disso e o está utilizando — a partir de suas publicações, púlpitos, ensinos etc. — para interesses totalmente pessoais, e mesmo ideológicos e até partidários.
Parte da igreja não quer se dar conta de que participar do espaço público é se encontrar com outros com quem deliberar pelo que há em comum, sem imposições, respeitando as vozes alheias, reconhecendo o direito dos outros e buscando conduzir um espaço de intercâmbio, que não deixará de ser conflitivo, mas não por isso carente de validade. Mas ainda, sem discordância não há debate! Se não se respeita a pluralidade inerente ao espaço público, então não há incidência mas uma tentativa de imposição autoritária (ou, sendo mais coerente com este caso, teocrática).
E neste sentido, a igreja também é um espaço público; logo, um ambiente plural e diverso de posicionamentos, teologias, opiniões, experiências etc. Isso é ser ekklesía. Parece que necessitamos voltar um pouco às origens. Ou simplesmente estudar mais a Bíblia e nossa teologia?
As águas estão divididas. O contexto sociopolítico assim o manifesta. E boa parte da igreja evangélica decidiu aprofundar tal fenda, embora diga não fazê-lo, acusando sempre “os outros”. Por tudo isto, hoje não há lugar para titubeios nem a diálogos teológicos que não queiram ferir suscetibilidades. Assim são as regras do jogo, gostemos ou não. E isso não é culpa de quem traga “vinhos novos”, mas de quem quer manter os “odres velhos” e ser parte da festa.
As acusações como as recebidas por René Padilla são uma clara demonstração de que usar de “meias palavras”— como a Missão Integral (MI) tem pregado por tanto tempo, por não querer aderir a nenhum grupo — não serve, e termina finalmente sendo ainda mais contraproducente, demarcando mais fortemente a divisão, a ponto de ser violentamente imposto o julgamento por ser parte dos “outros”, os errados, os maus, os extremistas etc. Finalmente, o politicamente correto e as imprecisões temerosas terminam afetando ainda mais. Hoje, a MI — na respeitável pessoa de René Padilla — foi vítima do vício perverso do fundamentalismo cristão evangélico. Mas a MI terá que reconhecer que ela mesma deu lugar a este jogo ao manter-se à margem de tantas discussões sensíveis. O rótulo que queria evitar, ao final, lhe foi dado à revelia.
Isto nos indica também que os posicionamentos não vêm do lado do “conteúdo” de seu discurso nem dos argumentos convincentes que possam ser dados, mas da radicalidade que assume um lugar. Não é uma questão de conteúdos; é uma questão de opção. Não uma opção simplesmente ideológica ou política. Antes, e precisamente por esses fatores, um posicionamento de fé. Todos os grupos em questão decidiram esticar ainda mais o fio, dividir as águas. Desse lugar, verão o outro como adversário, por mais que estes não queiram sê-lo. Isto é questão de articulação e identificação, não de discussão ou argumentação. Queiramos ou não, os “outros” emitirão juízo sobre nós.
Por isso, é responsabilizar-se, é não se ofender, é aprender a argumentar e a enfrentar o conflito instalado por todas as partes. Basta de silêncios, de politicagem barata e de verdades absolutas. Isto é incidência, queridas e queridos. Assumam. Porque enquanto isso, o sangue continua sendo derramado e ninguém quer se responsabilizar.
Fonte: http://ftl-al.org/las-aguas-estan-divididas/