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Maike Weber: do luteranismo popular à boleira selecionável

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Maike Weber: do luteranismo popular à boleira selecionável

Recentemente, a mídia destacou a trajetória da nova goleira da seleção brasileira de futebol, Maike Weber. Com uma história vitoriosa, os meios jornalísticos destacaram o fato de ela ser uma ex-assentada do MST, ter residido no assentamento em Araquari e, desde 2003, no assentamento Conquista, na Fronteira em Dionísio Cerqueira, Santa Catarina. Nas entrelinhas das matérias, um indisfarçável tom de questionamento. Como uma esportista de tanta qualificação poderia ter vindo de um assentamento? Como uma pessoa criada em condições tão adversas poderia chegar tão longe? Acontece que a família de assentados não tem só Maike como goleira em time de futebol de campo. Ao contrário: sua tia foi a famosa arqueira Maravilha da seleção brasileira na década de 1990; sua mãe, Ivone Weber, lembrou que sua irmã mais nova Maiquele Weber também é goleira, chegando a atuar no time feminino do Chapecoense.

Sobre a família de Maike, outro dado merece ser destacado: além do êxito nos esportes e da adesão ao MST, a família de assentados pertence a uma vertente protestante-evangélica, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Longe de ser uma exceção, a pertença religiosa da família Weber tem elos com os habitantes no interior de Santa Catarina. Mais um detalhe a ser mencionado: muitos segmentos da tradição luterana, não apenas no interior de Santa Catarina, mas também em outros Estados, demonstram uma atuação ativa nos movimentos sociais camponeses. Tanto que Maike e sua irmã Maiquele Weber foram batizadas pelo pastor Paulo Augusto Daenecke da IECLB, ligado à Pastoral Popular Luterana (PPL), movimento religioso de significativa atuação na luta pela terra. O próprio pastor Daenecke sempre apoiou a família Weber e a organização dos trabalhadores rurais junto ao MST na região. O pastor é membro histórico da pastoral popular, chegando a coordenar por anos o devocionário da PPL, o “Semente de Esperança”, que contém mensagens, orações, destaques e indicações históricas de engajamento dos cristãos.

Além disso, o pastor atuou junto à paróquia de Maravilha-SC, realizando os mais diversos trabalhos religiosos. Durante todo o período de luta pela terra contaram com o auxílio da PPL, do pastor Daenecke, da assessoria na reflexão e acompanhamento dos pastores Günter Wolff e Flavio Schmitt, bem como dos demais pastores, pastoras e lideranças do então Distrito Eclesiástico Uruguai. Considerando esse dado, a existência de luteranos ligados aos movimentos sociais da região Sul, é possível questionar a máxima, segundo a qual, o/a evangélico/a é sempre politicamente conservador e moralista.

De fato, esses evangélicos não estão nas lentes das mídias oficiais, o que dificulta o olhar mais detalhado para o campo cristão. Indica-se, portanto, que o campo seria mais complexo do que desenham. Temas como a igualdade de direitos, de etnias e de gêneros são pautas constantes da PPL, que pode ter auxiliado na formação de Maike Weber. Quanto à família Weber, os pais de Maike, Guilherme e Ivone Weber, ainda hoje fazem parte dos milhões de trabalhadores sem-terra do nosso país, que lutaram por um pedaço de terra. Viveram no assentamento em Araquari, um assentamento modelo, que tem mais ou menos 51 hectares, localiza-se na região norte-catarinense, a mais ou menos 20km de Joinville. Desde 2003, a família reside no assentamento Conquista na Fronteira, em Dionísio Cerqueira, que tem a cooperação agrícola como o símbolo do assentamento.

Maike Weber, mulher na luta pela terra e igualdade de condições

Sobre o fato de ter sido assentada, Maike contou que na infância “a luta pela terra foi grande, passamos a morar embaixo de uma lona preta no acampamento em Passos Maia durante um ano. Eu e meus irmãos éramos bem pequenos”. Disse que embora não lembre detalhadamente de muita coisa acredita que “não foi um ano muito fácil, até mudarmos para o assentamento em Araquari, onde moraram embaixo da lona até conseguirmos construir uma casa”. Mesmo com sua família tendo o apoio das lideranças do MST locais, as dificuldades não foram poucas até conseguirem a posse da terra, e, assim, conseguirem construir no lote. Durante todo o período contaram com auxílio da PPL, com o pastor Paulo, que ajudou no trabalho de enfrentamento e de apoio, unindo especialmente a expressão de fé evangélica ao encorajamento na luta pela terra.

Segundo Maike, no assentamento, praticava-se todo tipo de esportes, mas eram incentivadas pela família a jogarem futebol, pois, como já se disse, sua tia foi goleira da seleção brasileira de futebol feminino. Nisso, é fundamental a afirmação de sua mãe de que o futebol era “uma coisa que está no sangue, na família, mulheres jogadoras de futebol”. Maike não perdeu a oportunidade de expressar sua condição num mundo tão masculino, especialmente no setor futebolístico. Diz: “Nós mulheres temos uma luta constante pelo futebol feminino. Já temos um espaço na sociedade em geral, mas ainda é muito pouco”. Assim, a goleira ex-assentada destaca a falta de espaço não só da mulher, mas acima de tudo, do futebol praticado pelas mulheres. Em tom de denúncia, indica que precisam “de mais apoio, e de um espaço maior na mídia, através de divulgações, porque muitas pessoas gostariam de acompanhar um campeonato, mas ele não é divulgado. Geralmente ficam sabendo de alguma coisa quando a gente mesmo atleta posta alguma coisa de algum campeonato ou algo assim”.

As palavras de Maike trazem a força da família que lutou por anos para ter acesso à terra debaixo da lona do MST. Assim, a goleira fez parte das centenas de luteranos/as que participaram da luta por moradia, influenciados pela Pastoral Popular Luterana, que encarnava a fé por meio das lutas e disputas por terra, água e comida. Ao mesmo tempo, reflete o reconhecimento do ser humano na busca da equidade nas condições de homens e mulheres. A trajetória da boleira e suas raízes que a fortalecem como mulher e jogadora de futebol se contrapõem significativamente à caricatura que desenham sobre as mulheres da tradição protestante-evangélica no Brasil, como símbolos perfeitos das recatadas e do lar. Mulheres evangélicas, como quaisquer mulheres, são mais do que isso. Elas são o que quiserem: rezam, trabalham, vivem, amam. Maike Weber, com isso, ajuda a rachar ideias/regras e promove uma fusão de mundos.

500 anos da reforma luterana

A trajetória de Maike e da família expressam o quão longe foi a reforma luterana que comemora 500 anos em 2017. A reforma foi levada pelo monge Martin Luther, ele que ao longo da reforma passou a se designar “o liberto”, ou seja, Luther, Lutero. Mais do que uma simples troca de consoantes do sobrenome ocorrida no debate de Heidelberg em 1518, ela externa a metamorfose que passou em relação ao mundo do medievo. Em linhas gerais, a reforma de Lutero de 1517 foi um movimento cristão de contestação ao centro religioso católico-romano e foi fundamentada a partir da concepção de autonomia de consciência e na liberdade do cristão. Contestou pontos do catolicismo romano, como, por exemplo, a venda de indulgências e a simonia praticadas intraigreja. Mesmo não se tendo certeza se teria pregado as 95 teses na porta do castelo de Wittenberg, como o senso comum afirma, o conteúdo de suas teses externa o zelo pela defesa da igreja e do evangelho, ambos uma contração para glória divina, como escreve na tese número 62. Assim, as teses e os debates fizeram-se símbolos de sua reforma. O que por um lado, indica que se fizera em um processo desenvolvido ao longo da trajetória; e por outro, o coloca como típica expressão humanista centro europeia. Ou seja, sua reforma seria um vórtice de mentalidade humanista com operacionalização cristã.

Luteranos no Brasil, organicidade ecumênica e CPT

No Brasil a IECLB é uma das igrejas que responde ao nome da reforma germânica, conjuntamente com a IELB (Igreja Evangélica Luterana do Brasil), vinda do Sínodo de Missouri nos EUA. A IECLB tem perspectiva ecumênica, com seus membros tendo ascendência germânica. Tal igreja originalmente ocupou a região de Friburgo, no estado Rio de Janeiro, e em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, desde 1824. Ela era parte da expressão religiosa dos colonos alemães e helvécios que chegaram ao país por meio de financiamento do Estado brasileiro sob a pretensão de embranquecer e supostamente ilustrar o Brasil. Viviam em minifúndios, variando a produção e não tendo diretamente (tanto) trabalho escravo negro ou indígena. Nesse sentido, a IECLB sempre teve um braço importante de expressões agrárias, onde seus membros participaram ativamente dos pleitos das lutas de direitos dos trabalhadores camponeses.

Prova é que desde o início da formação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), membros e lideranças luteranas participaram de suas ações. Em linhas gerais, a CPT é um órgão da CNBB, criado a partir de 22 de junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, em Goiânia. Seu surgimento se deu em meio à grave situação dos trabalhadores rurais, posseiros e peões, fazendo com que se colocasse desde sua fundação contra o regime militar, que claramente representava os interesses capitalistas nacionais e transnacionais. A CPT passou a auxiliar paróquias de comunidades rurais por meio da interação com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), visando romper o isolamento do campo, tendo a preocupação de contribuir na organização dos camponeses. Por isso, redigiram uma série de documentos que apontavam os excessos praticados pelo regime militar. A CPT agremiou forças por meio de seus bispos mais emblemáticos, entre eles, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduíno. Assim, de forma direta, membros leigos e pastores da IECLB participaram ativamente do desenvolvimento da CPT. Entre eles, os pastores Gernote Kirinus (CPT Sul), Werner Fucks (CPT Paraná), Inácio Lemke (chegou a ser vice-diretor em 1985) e Sergio Sauer.

A pastoral luterana brota dentro da IECLB

A própria Pastoral Popular Luterana surge na experiência junto à CPT, ou a partir dessa experiência, no final do período da Ditadura Militar. No período da Ditadura, a PPL incentivou a formação, organização e o protagonismo popular, a partir de uma visão de fé motivada pela Teologia da Libertação e pela confessionalidade luterana. Surgiu no fim da década de 1970 junto a algumas comunidades do sul do Brasil, espalhando-se depois pelos Estados do sul até o Espírito Santo, Mato Grosso, Rondônia e Pará. Seus participantes eram pastores, pastoras, mas, logo depois, em torno de 1984, contou com o engajamento de leigos nas lutas sociais.

Como a IECLB, a pastoral luterana é ecumênica e visa somar forças nas ações concretas com pessoas e movimentos sociais organizados. Contém uma voz dissonante em que seu cristianismo se manifesta na prática da justiça e da solidariedade. Uma das características principais da PPL é o apoio aos camponeses e sua organização, assim, principalmente a partir de 1984, a PPL apoiou o MST e seus assentamentos que estavam iniciando, principalmente no Sul do Brasil. A fé necessita estar intrinsicamente ligada aos desafios da vida cotidiana para construção de um mundo de mais justo mediante os enfrentamentos sociais.

Claudete Beise Ulrich é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões na Faculdade Unida de Vitória (FUV).

Fábio Py é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais (PPGPS) na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).  

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Doutor em Teologia pela PUC-RIO, com ênfase em História da Igreja, Fé e Política. Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais na UENF. Membro da CPT do Norte Fluminense (RJ) e do Coletivo Casa Comum.

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