Orações periféricas #3: Emicida
Por meio dos poetas marginais desse Brasil, misturamos ritmo com uma pitada de fé, seja ela qual for. Aqui, o Rap é lido como um dia foi sentido. Ou mesmo, é arrepio de uma alma vagabunda, da qual se lê, mesmo sem saber. Sensação de escrita, sensação do som, sensação do céu. Assim é o Mistério ancestral que jogado à água salgada, nos brinda com uma bebida doce e amarga, banana com denúncia, Oshun e Iemanjá, Hare Cristo. “Ritmo e Poesia e Mística” é um projeto semanal onde a oração, a prece, o ponto e a reza da rua, se apresentam em comunhão com a vida, cultura e política das periferias do Brasil.
Eminência parda
Eram rancores abissais (mas)
Fiz a fé ecoar como catedrais
Sacro igual Torás, mato igual corais
Tubarão voraz de saberes orientais
Meu cântico fez do Atlântico um detalhe quântico
Busque-me nos temporais (vozes ancestrais)
Num se mede coragem em tempo de paz
Estilo Jesus 2.0 (carai, Jesus 2.0)
Caminho sobre as água da mágoa dos pangua
Que caga essas regra que me impuseram
Era um nada, hoje eu guardo um infinito
Me sinto tipo a invenção do zero
Não sou convencido(não) sou convincente
Aí, vê na rua o que as rima fizeram
(…)
Então supera a tara velha nessa caravela
Sério, para, fella, escancara tela em perspectiva
Eu subo, quebro tudo e eles chama de conceito
Eu penso que de algum jeito trago a mão de Shiva
Isso é deus falando através dos mano
Sou eu mirando e matando a Klu
Só quem driblou a morte pela Norte saca
Que nunca foi sorte, sempre foi Exu
(Álbum Amarelo, 2019. Trecho da música: Eminência Parda)
O rapper Emicida, nascido e criado no Jardim Fontalis, periferia de São Paulo, ganha cada vez mais espaço não só dentro do rap, mas em outros meios sociais. Vindo de outra geração do rap nacional – destacando-se primeiramente nas batalhas de rima da capital paulistana – hoje é conhecido como um dos Mc’s com a carreira mais sólida da cena, tanto por sua vasta produção musical (6 álbuns, sendo o último “Amarelo”, 2019) quanto por sua projeção midiática, às vezes mal interpretada pelo público mais antigo do rap nacional.
Suas apresentações em programas televisivos, parcerias com músicos considerados “pop”, se somam a um grande acontecimento protagonizado pelo seu empreendimento coletivo “Laboratório Fantasma”: o desfile de sua marca de roupa na São Paulo Fashion Week, em 2016. Como ele mesmo fala na música Inácio da Catingueira: “Só no Fashion Week, nóiz empregou uma preta pra cada textão”.
Aclamado por rappers antigos, como, por exemplo, Mano Brown, Emicida evoca no rap aquilo que a “primeira escola” já buscava: o dinheiro que tira o homem da miséria. Sua representatividade política é potente, além de reivindicar uma espiritualidade afro-brasileira que ecoa no rap de diversos outros artistas de dentro ou fora da cultura.
“Axé pra quem é de axé/pra chegar bem vilão/independente da sua fé/música é nossa religião” (Emicida)